texto por João Paulo Barreto
Se a frase “Os Addams vêm aí…” lhe inspira a cantar no ritmo de uma famosa vinheta de abertura cuja letra dizia, em sua versão nacional, para “não ter medo, pois tudo é um brinquedo”, parabéns! Você está ficando vel…, quer dizer, você tem bagagem de cultura pop. Há quase sessenta anos, o estalar dos dedos a marcar o compasso da canção, juntamente ao seu tom encantador de comédia, tornou uma afetuosa família um dos mais queridos personagens em um programa de TV. No cinema, não foi diferente.
Mesmo com seus aspectos góticos de direção de arte, em cenários dominados por tons escuros e cores como cinza, roxo e preto atuando de modo preponderante; um humor pautado no absurdo e no tragicômico; figuras pálidas caminhando por uma linha tênue entre a comédia e a psicopatia. Suas aparências são bizarras, mas flertam com uma beleza ímpar dentro daquele universo bisonho que homenageia vários aspectos do cinema de horror clássico, notoriamente o da Universal Studios que, na primeira metade do século XX, deu vida a monstros conhecidos da literatura fantástica como Drácula, A Múmia e Frankenstein.
Todas as características descritas acima poderiam ser aplicadas a um filme dirigido pelo cineasta Tim Burton, como, por exemplo, “Beetlejuice” (1988). De fato, seria ele a dirigir, se o magnético sucesso de “Batman” (1989) não o tivesse atraído.
Assim, foi Barry Sonnenfeld, notório diretor de fotografia responsável pelas lentes de filmes como “Gosto de Sangue” (1984), “Arizona Nunca Mais!” (1987), ambos dos Irmãos Coen, e “Louca Obsessão” (1990), de Rob Reiner, que, em sua estreia como cineasta, articulou de maneira perfeita esse equilíbrio entre o cômico, o trágico, o macabro e o chocante ao adaptar para o cinema os adoráveis personagens criados pelo cartunista Charles Addams, cujas hilárias situações os tornaria um fenômeno cultural quando o produtor e roteirista David Levy as adaptou para a televisão em um seriado com 64 episódios exibidos pelo canal de televisão estadunidense ABC entre 1964 e 1966.
Com “A Família Adams” (1991), Sonnenfeld captou precisamente o tom do seriado sessentista, trazendo atuações já clássicas de nomes como Raul Julia, Anjelica Huston e um irreconhecível Christopher Lloyd. A sensação de que todos eles se divertiam horrores (trocadilho intencional) era evidente. O retorno para uma continuação de sucesso não tardaria a acontecer em 1993, com todo elenco voltando. Para o público, rever figuras como o cabeludo Primo It, Tropeço (o mordomo da mansão na clássica referência ao monstro de Frankenstein) e Coisa (no Brasil, carinhosamente conhecida como Mãozinha) era delicioso.
Mas uma das personagens que mais chamou a atenção da audiência há três décadas era uma pálida garotinha de personalidade decidida e ironia e sarcasmo sagazes. Na pele de Wednesday (no Brasil, Wandinha), Christina Ricci, à época da gravação com apenas dez anos de idade, trazia para si muito do brilho que a comédia destacava. Trinta anos depois, os holofotes são da mesma personagem que ela imortalizou.
Dessa vez, coube ao citado Tim Burton trazer suas apropriadas marcas soturnas à história desenvolvida pela dupla Alfred Gough e Miles Millar, conhecida por aprofundar na televisão a história de Clark Kent antes dele se tornar o Superman no sucesso de vinte anos atrás, “Smallville” (2001). Em “Wandinha” (2022), série em oito episódios da Netflix, a jovem Jenna Ortega assume o protagonismo na pele de Wednesday, a rebelde colocada em um reformatório voltado para alunos problemáticos.
Seus pais, aqui vividos por Catherine Zeta-Jone e Luiz Guzmán (que recriam de modo honesto a química perfeita de Raul e Anjelica), enxergam o local como último refúgio para seu rebento conseguir socializar. Ortega, aliás, é de uma perspicácia notável em sua caracterização. A começar pelo modo como consegue transmitir ao público a jovialidade de uma adolescente de 14 anos ou menos (a atriz nasceu em 2002) e em como seu carisma blasé constrói de modo eficiente seu personagem de forma a não replicar a criação nos mesmos maneirismos de Ricci, mas firmar-se como sua própria. Obviamente, o olhar de indiferença e o tom irônico e repleto de observações sagazes, marcas da personagem em todas as suas encarnações (de novo, trocadilho intencional) se fazem presentes.
Mas é nas marcas de Tim Burton que reside a beleza plástica de “Wandinha” – auxiliado aqui pelo parceiro de décadas, o compositor Danny Elfman, que cria uma atmosfera envolvente. Claro, estão ali alguns dramas frágeis e adolescentes, como a questão da adaptação e a necessidade de aceitação social. Mas é na crítica a essa mesma necessidade, característica que transparece em sua protagonista, bem como na análise da mesma sobre a dependência de sua geração para com redes sociais, que o texto de “Wandinha” se destaca.
Óbvio que abrir o episódio-piloto com um ataque de piranhas assassinas a um grupo de adolescentes abusadores que cometeram o fatal erro de fazer bullying com o querido irmão de Wednesday, ajuda a estabelecer o tom da série. Um deles, inclusive, perde um testículo e a garota comemora o fato de que o rapaz não trará descendentes ao planeta. E quando a jovem toca “Paint it, Black”, dos Stones, no seu violoncelo, bom, este é o exato momento em que percebemos estar diante de algo que Tim Burton deve ter salivado ao ler e imaginar as possibilidades do que poderia trazer ao, por vezes, entediante streaming.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.