entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Encontro-me com Débora Umbelino (a artista conhecida como Surma) no Estúdio Haus, em Lisboa, na véspera do lançamento do seu novo álbum, “Alla” (que significa “Todos” em sueco). No ar há uma palpável sensação de otimismo quanto à atual fase da cantautora leiriense, que marcará o decorrer da nossa conversa. Para trás, no período de cinco anos que sucedeu à edição do disco de estreia, “Antwerpen” (2017), ficaram cinco anos de intensa atividade, nos quais Surma fez canções para diversos projetos, estabeleceu parcerias com outros músicos, atuou em Portugal e em quatro continentes e participou no Festival RTP da Canção de 2019 com o tema “Pugna”.
A torrente produtiva seria interrompida, em grande parte, durante a pandemia. “Eu estava habituada a fazer muitos shows, trilhas sonoras e a explorar vários mundos. Quando eclodiu o surto pandêmico foi complicado ficar sem nada para fazer”, conta. Mesmo assim, no período de confinamento, Surma manteve o espírito criativo que a caracteriza e decidiu compor uma música de raiz, masterizá-la, fazer a mixagem e produzir o clipe. Nascia dessa forma o tema “Sybille” (2020), ligado à solidão e à falta de contato, influenciado pela exploração do corpo da cantora e atriz americana Miranda July, pelo impactante teatro Kabuki e pelo trabalho de Kate Bush.
O single e o clipe de “Islet”, editado a 7 de Outubro de 2022, abriram caminho para o álbum “Alla” que, na prática, representa uma declaração simbólica de libertação e auto-determinação individual, procurando derrubar barreiras e dar ânimo a quem passa por situações de bullying, vivencia a androgenia ou enfrenta outro tipo de questões ligadas à sua afirmação pessoal. O novo trabalho, onde a artista leiriense assume a sua identidade sem rodeios, acentua o aventureirismo sonoro de “Antwerpen”, assente em vários temas experimentalistas, incursões no rock (“Tous Les Nuages”), no pop (“Aida”), em cruzamentos sonoros exuberantes (“Nyanyana”), finalizando a viagem musical com uma homenagem aos Velvet Underground na mega lo-fi “Nico, My Love”.
No disco, destacam-se igualmente músicos convidados como Cabrita, Selma Uamusse, Ana Deus, Noiserv e Angélica Salvi, entre outros. O processo colaborativo resultou num claro enriquecimento do trabalho e Surma assume a importância do encontro artístico que daí resultou. “Eu e o Rui Gaspar (compositor, produtor e baixista da banda leiriense First Breath After Coma), demos as canções aos nossos colaboradores e eles fizeram a sua parte. Não me intrometi na parte da composição desses artistas. No final, juntámo-nos em estúdio e gerou-se uma partilha de ideias muito bonita. Eles trouxeram imenso valor e amor a este álbum”, explica.
Sobre os objetivos que lhe faltam alcançar, Surma refere que já fez inúmeros trabalhos e que se sente bastante realizada com o percurso seguido, mas manifesta um desejo sincero e concreto de colaborar com a cantora americana St. Vincent: “Sou uma grande fã do seu trabalho. Ela inspira-me imenso. Em cada disco ela vai buscar um género diferente sem alterar a sua personalidade. É isso que eu quero fazer enquanto Surma, ou seja, criar um mundo e uma atmosfera minha. A St. Vincent é uma deusa para mim”.
Para apresentar “Alla”, a artista leiriense fará cinco concertos, que se iniciam a 6 de Dezembro, em Leiria (Teatro José Lúcio da Silva), passando por Braga (Gnration), Porto (Novo Ático – Coliseu), Aveiro (GrETUA) e terminando a tour a 17 de Dezembro, em Lisboa, com uma atuação na Culturgest. Será a primeira vez que Surma irá se apresentar com banda, mais concretamente com os músicos Pedro Alves (percussões e eletrônicas) e João Hasselberg (contrabaixo, eletrônicas, baixo elétrico e guitarra). Embora ainda não esteja totalmente definido o papel de cada um dos músicos, a vontade da artista é que os espetáculos contem também com um coro de três vozes e mais um instrumentista. Os shows terão ainda uma cenografia e uma performance incluída na apresentação. “Mesmo que as pessoas não gostem do concerto quero que o espetáculo cause impacto nelas”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Surma conversou com o Scream & Yell. Confira:
O seu álbum de estreia, “Antwerpen”, foi editado em 2017. Pelo meio ocorreu a pandemia, mas você manteve sempre uma atividade bastante produtiva. Ao longo deste período de cinco anos qual foi o momento com mais significado para si?
Desde 2017 até hoje tive concertos incríveis, conheci pessoas inacreditáveis e percorri metade do mundo como Surma (é uma estrelinha que tenho tido). O que mais me agrada é tocar todos os dias, relacionar-me com pessoas novas e aprender com elas. Mas, não consigo definir um momento especialmente marcante, porque todas as fases que eu vivi contribuíram para o meu crescimento e para aquilo que sou hoje. Acho que foi uma generalização dessas etapas. A participação no Festival RTP da Canção, em 2019, foi um desses períodos, pela visibilidade, pelo desafio de cantar em português, por ter criado uma equipe de raiz pela primeira vez e por tocar ao vivo para milhares de portugueses no horário nobre da televisão. Foi uma pressão um pouco agressiva (risos), mas deu-me alento para lidar com outras situações enquanto artista como é o caso dos concertos, porque o mundo da televisão mostrou-me outras formas de ver a realidade.
O seu novo trabalho, “Alla”, tematicamente, parece sugerir uma ideia de coletivo bastante vincada. Trata-se de uma observação sobre os tempos em que vivemos?
Sim. Com a pandemia ficamos mais solitários e eu senti muito a falta das pessoas. Eu sou um pouco “bicho do mato”, mas a pandemia fez-me abrir os olhos e percebi que gosto mesmo é de estar com pessoas. Embora não estivesse planejado, eu decidi que este disco tinha que ser feito com amigos e fazia todo o sentido partilhar a música com eles e com artistas que me inspiram todos os dias. Pensei em pessoas que me eram muito queridas como o Pedro Melo Alves, tal como o João Hasselberg, que vão tocar comigo ao vivo num formato de trio. Assim com a Selma Uamusse, o Cabrita, o Victor Torpedo ou a Ecstasya. Todos eles são completamente distintos uns dos outros. Procurei dar esse ambiente diversificado ao álbum. A junção das várias influências que eu tinha há imenso tempo deu cor ao disco. O processo colaborativo é essencial para qualquer pessoa que faça arte seja na música, no teatro ou no cinema. Acho que sozinhos não temos assim tanta piada. Sinto que vamos beber muito às diversas pessoas que conhecemos.
Verifico igualmente que há um aprofundamento do experimentalismo que definia o seu álbum anterior e esse aspeto é visível em temas como “Nyanyana”, “Huvasti” ou “Did I Drop Acid And This Is My Ego Death?” Foi esse pensamento que norteou o seu processo de composição ou decorreu da gravação deste disco?
Eu não costumo pensar se vou fazer um álbum jazz, pop ou rock quando me dirijo ao estúdio. No entanto, a composição deste disco divertiu-me muito, porque eu tinha demos muito cruas em casa. A “Islet”era uma dessas demos e foi dos primeiros temas a serem acabados e recordo que comecei a gravar tudo durante a pandemia. Depois fui para o estúdio com o Rui Gaspar. Era uma salinha muito acolhedora com vários instrumentos, baterias, Casios muito velhos e quando acabamos de rever as demos, perguntamos: “O que é que o disco vai ser?”. Nós não sabíamos qual seria o caminho a seguir. Foi um trabalho de equipe entre mim e o Rui. Portanto, acabou por ser a exploração dos instrumentos que estavam na sala. Na “Islet”, por exemplo, só de bateria há quase 200 faixas porque cada um de nós ia tocar uma coisa diferente, já que não somos bateristas. Montamos a percussão como se fosse um puzzle e isso é muito divertido de fazer porque os resultados nunca são iguais. Houve vários instrumentos que não pensamos que entrariam assim tão bem nas músicas e acabaram por ser a peça fundamental. Na faixa “Did I Drop Acid And This Is My Ego Death?”, o Rui usou um tubo de ar e é esse elemento que agarra a canção do princípio ao fim. São esses experimentalismos que dão magia ao trabalho, mas foi tudo feito no momento.
O vídeo de “Islet” (realizado pela produtora audiovisual leiriense Casota Collective), transmite uma ideia de superação e de libertação em contraponto com a aparente resignação que define o seu clipe antigo “Maasai”. Podemos dizer que estamos na presença de uma nova Surma?
Sem sombra de dúvidas. Foram cinco anos que me deram a maturação suficiente para falar de temas que eu já queria ter abordado no álbum “Antwerpen” mas, na época, eu não tinha o amadurecimento necessário para falar sobre eles. A inspiração para este álbum veio de muitos livros que eu li e de vários filmes que vi. Mas, com a falta de tempo, nunca pude desenvolver muito bem o que pretendia fazer enquanto Surma. O disco “Alla” e a faixa “Islet” são o resultado da exploração daquilo que eu sempre ambicionei, ou seja, tirar a máscara e assumir-me a 100%. Com esse clipe quis mostrar às pessoas que não estamos sozinhos no mundo e representa também uma fase muito específica da minha vida em que o bullying e a androgenia me dizem muito. Estar num certo pacote ou numa caixinha agradando a toda a gente é algo que eu não desejo. Li uma entrevista do Nick Cave há alguns anos em que ele dizia: “Usei uma máscara durante tanto tempo e quando a tirei não me conhecia”. Eu não tenho a intenção de me identificar com quem não sou. Quero ser eu mesma. No disco “Antwerpen” eu estava mais retraída mas, no vídeo de “Islet”, digo às pessoas que estou aqui realmente, porque as falsidades não fazem bem a quem me rodeia nem a mim. Este trabalho é meu, mas é para todos vós e digo claramente: “Sejam vocês mesmos sem gêneros, barreiras ou qualquer risco!”. É a transparência total (sorrisos).
A Surma tocou no Festival SIM em São Paulo a 6 de Dezembro de 2018. Qual é a sua recordação mais vívida desse show?
Eu trouxe recordações tão bonitas de São Paulo… Lembro-me de estar a tocar num pequeno auditório que fazia lembrar uma cave ou um bunker. O público estava sentado e a meio do show as pessoas levantaram-se todas foram para o pé de mim. Senti um vínculo familiar e de união inacreditável. Esse momento marcou-me bastante. Lembro-me também de ter ido com os meus amigos brasileiros de lá a uma tasquinha regional beber cerveja em copinhos da avó e comer pão de queijo logo pela manhã. Eu adorei (risos). Foi uma experiência fascinante. Trago memórias incríveis de São Paulo, relativamente às pessoas e à cultura musical. Inspirou-me bastante. A Gal Costa que infelizmente faleceu ontem (nota do editor: a entrevista foi realizada um dia após a morte de Gal) é uma pessoa que me influenciou muito e também a nível pessoal, porque era uma mulher com uma força inacreditável. A Elza Soares era extraordinária, mas também gosto de coisas mais recentes. A Labaq é minha amiga e vive em Portugal neste momento. Estivemos lá as duas uma semana e foi fantástico. Outro amigo meu de São Paulo é o Victor Araújo e há vários músicos de grande valor como o Tim Bernardes. Fui ver o show dele no Coliseu de Lisboa recentemente e posso-lhe dizer que sou louca pela música do Tim. Sou muito inspirada pela cultura brasileira, seja pela música ou a gastronomia. Quero voltar ao Brasil porque senti imenso amor em São Paulo.
Qual é a sua mensagem para os leitores do Scream & Yell?
Em primeiro lugar dou os meus parabéns aos brasileiros pela eleição de Lula. Estou muito feliz e acho que vai ser ótimo para eles. Espero que este período seguinte seja melhor para o Brasil. Faço votos de que gostem do meu novo disco (foi editado a 11 de Novembro). Vai ser uma fase nova para mim e para quem acompanha a minha música. Desejo também que seja uma experiência muito bonita para quem escutar as canções de “Alla” e que tenha um significado positivo para todas as pessoas. Muito obrigado por todo o apoio que me têm dado durante o meu trajeto artístico.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.