texto por Daniel Tavares
fotos por Jeff Marques
Enquanto hoje a música mais popular no Brasil está nas mãos de duplas sertanejas que jamais puseram os pés fora das capitais, artistas nem sempre talentosos que tomaram do funk apenas o nome (mas nada do ritmo), forró eletrônico e a tal da pisadinha que fariam Luís Gonzaga e Dominguinhos optarem por ser médicos, comerciantes, contadores ou advogados (mas jamais pegar numa sanfona) e mais uma celeuma pouco inspirada, houve um tempo em que a música popular do Brasil (não a que convencionamos chamar de MPB) fervilhava. Era um tempo de inocência, poucos recursos, romantismo exacerbado, mas sincero, alegria mesmo diante das circunstâncias, da pobreza generalizada e da terrível realidade sob uma ditadura de militares. E até um pouco de esculhambação também, “escandelo”, porque ninguém é de ferro.
Nomes como Genival Santos, Carlos Alexandre, Alípio Martins, Bartô Galeno, Raimundo Soldado, Evaldo Braga, Odair José, Reginaldo Rossi, Waldick Soriano eram vistos com preconceito pelas ditas classes mais abastadas da população, mas cultuados nas camadas mais populares dos rincões do Paraná, ao Norte exuberante, no forte, fiel, seco e sofrido Nordeste, nos Pampas e nas fábricas, trens, favelas e engarrafamentos de apartamentos no Sudeste. A explosão de sentimentos em suas músicas, a pouca qualidade dos arranjos, mas, sobretudo, a verdade em suas propostas conquistavam os corações e ouvidos dos trabalhadores, das donas de casa, das empregadas domésticas e, por conseguinte, das crianças que cresceram naqueles anos 70 e 80. Estas, hoje, relembram o renegado estilo com saudosismo.
Talvez tenha sido esse saudosismo que levou o vocalista dos Ratos de Porão, João Gordo, a entrar no projeto pensado pelo guitarrista Val Santos. Os dois lançaram o álbum “Brutal Brega” (2022) revisitando o repertório consagrado por alguns dos nomes citados acima. Mas, claro, como estamos falando de um ícone do punk rock nacional, do “traidor do movimento”, cada canção recebeu um verniz absolutamente punk. E muito instigante.
E em que lugar seria melhor para fazer o primeiro show (tomara que se transforme em turnê) apresentando ao vivo as canções bregas e brutais? Nada melhor do que ser “brega e chique”, como a novela (outra instituição nacional) e tomar o palco de um dos points mais requintados da capital de São Paulo, o Blue Note, filial da casa novaiorquina, templo do jazz, localizado bem no meio da Paulista, avenida que, perdoe-me o Caetano, significa e ressignifica São Paulo muito mais que aquela famosa esquina. O requinte do bar contrastava, ou talvez se casasse, com o “requinte” das roupas de João e Val, provavelmente conseguidas no brechó mais vagabundo da Paulicéia desvairada. Dois perfeitos discípulos do cearense Falcão. “Estamos chiquérrimos, mas também cafonérrimos”, assumiu Gordo logo ao início do show, aberto com o clássico da rejeição “Fuscão Preto”.
“Jamais pensei na minha vida cantar e gravar canções ‘sidneymagalescas’, disse ele antes de cantar “Tenho”, do Paul Stanley brasileiro, mas rende elogios a Carlos Alexandre e sua “Ciganinha”. É engraçado? Sim. Há uma boa dose de humor na atitude, na situação, no conjunto da obra, mas é também punk. É vibrante. Impressionante como o punk aceita tudo. Do ska, ao reggae, ao celta e folk de Dropkick Murphys, Flogging Molly e Gogol Bordello. Sendo bem feito (ou até mal feito mesmo), tudo pode virar punk rock.
Além de cantar, Gordo contou “causos” da infância. “Nessa época, meu apelido na escola era Dona Redonda (a personagem da novela ‘Saramandaia’). Foda, ser chamado de Dona Redonda é foda. Apelido de gordo nos anos 70 é mau. Jarrão. Tomate Pelado (porque tinha uma propaganda…). Mas o que mais me deixou puto foi Quina da Loto. Por que Quina da Loto? Porque tinha uma propaganda que tinha o terno, um saquinho fininho, a quadra, um saco maior, e a quina, um sacão, cara”. Foi a deixa para a primeira surpresa da noite, “Pavão Mysteriozo”, de Ednardo, que não faz parte da track list do CD (e nem se sabe ter sido classificada como brega junto aos outros sucessos da noite). “Essa música é linda, Ednardo é maravilhoso, Ednardo é demais”, arrematou o vocalista.
E tome mais uma de Magal (“Mais Sidney Magal, pra pagar meus pecados hoje”), com “Amante Latino”, seguida de “Domingo Feliz” (que, na verdade foi uma versão para “Beautiful Sunday”, de Daniel Boone). O quinteto (além de Gordo e Val, estavam no palco Guilherme Martin, do Viper, na bateria, Rogerio Wecko na outra guitarra e o baixista Daniel E.T – Muzzarellas) desenterrou não sei de onde “Pepino” (sertanejo cômico de Jacó e Jacozinho), que só Gordo lembrava. Carlos Alexandre é lembrado novamente com “Feiticeira” (igualzinho à “Ciganinha”, como disse Gordo). Embora todas as canções tenham ganho uma boa dose de velocidade (claro, ainda é um show de punk rock), “A Namorada Que Sonhei” preserva um pouco do tempo original, mas parecendo até mais pesada (o peso arrastado mais característico do metal).
“Vocês não tão com vergonha”, pergunta Gordo à plateia. “Vergonha alheia”, ele esclarece diante dos protestos (brincadeira) da banda por tocar mais uma de Sidney Magal (esta, exclusiva da vindoura versão física do disco). E mais uma surpresa, a carnavalesca “Atrás do Trio Elétrico”, de Caetano, iniciada jocosamente com um trecho de “O Leãozinho”. Um dos nomes mais reconhecidos do Brega não poderia faltar. O roqueiro (sim, o negócio dele era rock) Reginaldo Rossi foi homenageado com uma piada sobre o cabelo (“Dava pra chegar com um esquadro. É 90 graus o seu cabelo, Reginaldo) e “Tô Doidão”. Curiosidade: a canção é, na verdade, tema de um desenho francês chamado “Les Dalton” que não chegou por aqui.
Nem todas as músicas do CD foram tocadas, então, o show foi bem mais que uma simples apresentação do álbum (eu bem que queria ver o Gordo se derramando em “Os Verdes Campos da Minha Terra” – “Green, Green Grass of Home”, de Curly Putman, que já esteve até na voz de Presley, Cash e Joan Baez). “Quando o trem paraaar na estação…” Ainda fazendo o carnaval do Blue Note, “Pombo Correio”, de Moraes Moreira, que antecedeu “Morena Tropicana”, de Alceu Valença, que pôs fim à “vergonha alheia”, como tinha dito Gordo. Vergonha nada. Foi uma festa. Um karaokê. Não exatamente uma homenagem ao brega, mas uma homenagem ao rádio, e ao tempo em que éramos todos inocentes. E a vida não era tão brutal.
– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Colabora com o Scream & Yell desde 2014. A fotos – – – Jeff Marques é fotógrafo (instagram.com/mulekedoidomemo/) e cedeu cordialmente as fotos que foram feitas para o site Igor Miranda (leia o texto dele sobre o show aqui)
Eu sou deste tempo. Quando a música era arte e tinha sentido. Desculpe, mas sertaneja só as de raízes. O resto é ….
“Brutal Brega” é uma obra prima. Feito o João, essas músicas fizeram parte da minha vida.