por Yuri de Castro
É bem provável que o seu rádio-relógio, numa manhã de 1996, se programado em alguma FM brasileira, estivesse te dando bom dia com uma canção de estribilho assim: “Mama África / A minha mãe / É mãe solteira / E tem que fazer mamadeira todo dia / Além de trabalhar como empacotadeira nas Casas Bahia”. Considerando você um sujeito mais velho e que gostava de sintonizar na rádio adulta que mesclava sucessos do passado com sucessos atuais de gente do passado, é possível que você tenha acordado algumas vezes com Daniela Mercury entoando outros versos dos 90: “Quando não tinha nada, eu quis / Quando tudo era ausência, esperei / Quando tive frio, tremi / Quando tive coragem, liguei”.
Pouca coisa mudou nas estruturas das rádios especializadas em reproduzir sucessos das novelas das oito – agora, das nove. Chico César, compositor de “Mama África” e “À Primeira Vista”, citadas acima, ainda arrecada os respectivos direitos dessas canções. Facilmente reconhecido por ostentar um penteado conhecido como “coqueiro” e espinafrado por boa parte do jornalismo musical de meados da década de 90 pra cá, Chico César, fosse um sujeito resignado, poderia tranquilamente soltar a frase dita por suspeitos na hora da acusação de um crime: “ainda vou rir disso tudo”.
A crítica não sabia, você não sabia e cá estamos em 2011; mais precisamente, em um verão típico do Rio de Janeiro. Lotado, o Teatro Oi Casa Grande ia curtindo uma quase versão extraordinária do programa Ronca Ronca, de Maurício Valladares, enquanto Marcelo Jeneci se aquecia no camarim junto a sua sanfona e na companhia de Tulipa Ruiz, Marcelo Camelo e Arthur Verocai, outros que protagonizariam ótimos momentos show abaixo. Na platéia, casais ouvintes da MPB FM se juntavam a uma garotada; e era isso que criava certa expectativa em cima dos minutos antecedentes do primeiro show de Marcelo Jeneci no Rio de Janeiro.
Foram esses mesmos casais que consumiram Chico César nos anos 90, Ana Carolina e Vanessa da Mata nos 2000, e, agora, estavam consumindo Jeneci. Não há nenhuma coincidência. Ao observador, estranho deve ser perceber que parte dessa garotada provavelmente desprezou um hit de 2008 composto por Jeneci, “Amado” sucesso na voz de Vanessa e vencedora do Prêmio Multishow na categoria Melhor Música de 2008. Não daria cinco minutos para ouvir a expressão “brega demais” caso a brincadeira fosse uma cabra-cega improvisada em algum iPod tocando o hit da cantora mato-grossense.
Os aplausos comedidos dos cariocas – ainda que não fossem frios – receberam o menino prodígio da Zona Leste de São Paulo para uma noite que seria incrível. Hoje com 28 anos, Marcelo Jeneci ainda empunha a sanfona que o levou à carreira profissional de músico e, sua banda, uma destra habilidade que, música a música, foram levando uma possível timidez, um possível acanhamento, um talvez show apenas legal para bem longe do Casa Grande.
Enfileirando canções que crescem surpreendentemente ao vivo, o show de “Feito Pra Acabar” surgiu com “Copo D’agua” (dos versos “O meu cabelo, jeito, cheiro, dedo, pele / No seu orkut, e-mail, skype, net, messenger” que antecipam o refrão “Quando um não quer / os dois não fazem tempestade em copo d’água”) e a incansável e leve “Felicidade”. A cada minuto e música, o show ia se transformando em um espetáculo bem à parte do álbum (um dos mais citados nas listas de melhores do ano passado). A idéia de que um show pode ser uma experiência complementar da audição de um álbum não poderia ser afirmada naquela noite tamanha a diferença de emoção transbordada no palco. Singelo, “Feito pra Acabar” pode passar em branco para ouvintes já calejados das FMs tradicionais. Mas o show, não. Não havia nada bonitinho ali.
Principalmente após o anúncio de que Arthur Verocai e uma orquestra de câmara deveriam comparecer ao palco. Arranjador e instrumentista, Verocai é o responsável por alguns dos belos arranjos no álbum de Jeneci e, mais do que pisando outra vez no palco do Casa Grande, comandou uma orquestra que incendiou o show de Marcelo Jeneci durante a execução de todas as músicas presentes no álbum e também acompanhando a inédita “Dia a Dia, Lado a Lado” (que pode ser baixada aqui) parceria de Jeneci com Tulipa Ruiz. Ela, dona também de um dos discos de 2010 e que subiria ao palco para cantar também “Copo D’agua” no bis, soube engrandecer ainda mais a apresentação e mostrar-se, enfim, para os casais que tanto ouviram falar de seu nome por aí, mas que não conseguiram encontrar nos dials as músicas do álbum “Efêmera”.
De ponta a ponta de “Feito pra Acabar”, Jeneci, ora no piano, ora na sanfona, ora no violão, ia espalhando simpatia e alguns sorrisos enquanto dividia a glória de uma noite (que já podia ser anunciada como bacana) com Laura Lavieri (voz, muito menos insossa ao vivo, diga-se, e piano), Regis Damasceno (baixo – também guitarra do Cidadão Instigado), Estevan Sinkovitz (guitarra e violão), João Erbetta (guitarra, violão e bandolim – também Los Pirata) e Richard Ribeiro (bateria). Mas, talvez, até ali, a maior glória do show era alardear, sem orgulho baixo, algum tipo de vitória disfarçada.
Com ecos escrachadamentes embebecidos em sucessos de Roberto e Erasmo e do cancioneiro que dominou nossas AMs na década de 80, as parcerias de Jeneci com Zélia Duncan (“Borboleta”), Arnaldo Antunes (“Quarto de Dormir”, “Jardim do Éden” e “Longe”, também com Betão Aguiar, “Café Com Leite de Rosas”, também com Ortinho) e Luiz Tatit (“Por que Nós?”), além das supracitadas “Felicidade” (dele com Chico César) e “Copo D’agua” (esta em parceria com Arnaldo Antunes, Chico Salem e Pedro Baley), pareciam ser claras em relação a seus objetivos tanto quanto eram algumas músicas desses mesmos parceiros os quais Jeneci admira e, com os quais, deve ter aprendido que refrão é bom, assobiar canções também é legal e ser brega pode ser apenas um modo de classificação que soa como ataque pessoal no Brasil. Qualquer uma dessas citadas poderiam estar no repertório de qualquer artista que hoje é medalhão em rádios populares. “Longe”, por exemplo, foi gravada pelo cantor Leonardo (e também por Arnaldo Antunes) e seu fonograma usado na novela “Paraíso”, da Rede Globo.
Se boa parte dos artistas dos 90 já podia ver em Jeneci um ponto de partida para novas discussões, logo eles, classificados pela crítica como insignificantes (um exagero, de certo), o que dizer do show ainda provocaria? Prometido para a noite, a participação de Marcelo Camelo ainda não havia sido chamada e, no palco, Marcelo Jeneci e banda com a orquestra regida por Verocai pareciam estar em outro lugar do planeta na execução da faixa que encerra e dá título ao álbum, “Feito pra Acabar”. Dilacerante, a canção, que parece inserida em algum filme da Disney por culpa de sua introdução e dos primeiros versos, explode em seu refrão e junto leva cordas, guitarras, bateria, piano e toda a platéia para uma comoção que, em terras cariocas, há muito tempo não se via. Inevitável não perceber que após o estampido final da canção, todo o teatro já aplaudia de pé e por alguns minutos a performance que parecia ter encerrado ali mesmo o show. De pé, todos da banda e também da orquestra recebiam ainda intrigados as palmas que vinham da audiência.
Mas o show não acabou. Podia acabar ali, mas Marcelo Jeneci emendou no piano, em tom intimista, uma canção ainda não acabada antes de chamar ao palco seu chará Camelo, outro que encontra na critica nacional outros tantos adjetivos ranzinzas para com sua obra e sua pessoa em um ponto impossível, para alguns, desassociar um e outro. No palco, apenas os dois. E foram três da obra do ex-hermano: “Doce Solidão” (com Jeneci e Laura ao piano), “Liberdade” (com Jeneci na sanfona) e “Pois é” (esta remanescente do último álbum do Los Hermanos e executada em um improviso, com Jeneci ao piano), todas cantadas em uníssono pela platéia. Não restava muita coisa. A platéia que já tinha decretado uma linha de chegada imaginária parecia jogar champagne no pódio.
Jeneci ainda cometeu a provocação de uma declaração que pode parecer exagerada. “Eu só escrevi todas as minhas músicas por causa das músicas desse cara”, dizia olhando para Camelo. Não é tão exagerado assim. Um ás da sanfona, Jeneci só compôs o repertório de “Feito pra Acabar” ao escutar “Ventura”, último sopro da obra hermana, enquanto excursionava com Vanessa da Mata. Foi por essas bandas de tempo que resolveu abraçar o violão e a guitarra. E foi a guitarra a bola da vez em um encerramento com ecos de Mutantes e Jovem Guarda em “Pense Duas Vezes” (parceria dele com Arnaldo Antunes e Ortinho) e “Do Outro Lado da Cidade”, este um cover clássico de Roberto Carlos. Haveria um bis, haveria até Tulipa Ruiz novamente no palco (para dividir “Copo D’agua”), mas dúvidas, essas se dissiparam.
Em êxtase, o casal que se beija agora sabe quem é Marcelo Jeneci, um cara que começou a tocar há pouco nas rádios adultas. Onde estivesse, Chico César talvez se lembrasse de quando um moleque, virtuose na sanfona, com seus 17 anos, substitiu um de seus músicos, na turnê subsequente ao sucesso de “Mama África”. Colocando os fones do iPod no ouvido e rumando porta à fora, a molecada, que já sabia, pelo YouTube, por blogs e por listas, quem era Marcelo Jeneci, saiu com cara de que, do Teatro Oi Casa Grande pra frente, muitas avaliações dali pra frente não serão as mesmas. Afinal, ao contrário das músicas, algumas opiniões são feitas pra acabar.
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Yuri Castro é jornalista e produtor das rádios Litoral FM e Gazeta AM
Fotos do site do Ronca Ronca. Veja mais fotos da noite aqui
Verocai é o mestre que criou o clima que eu tanto venero em faixas de Jorge Ben, Ivan Lins, Tim Maia, entre outros durante a década de 70. O nome de Verocai na boca da mulecada indie devido seus arranjos no Feito pra Acabar não poderia ser mais apropriado no momento atual da cena brasileira. Pouco a pouco voltamos a uma sofisticação que o rock oitentista, e o rapcore noventista, afastaram de nossos artistas do underground.
O singelo Jeneci, amparado pelos potentes arranjos de Verocai, composições de Camelo, Arnaldo, Tulipa, tem de tudo pra arrebentar com seu primeiro trabalho solo. Vai andar bem acompanhado assim lá na tropicália…
Conheci o trabalho deste querido rapaz a pouco tempo. Não houve ninguém que eu tenha apresentado-o e não dissesse que há muito não escutava algo tão forte, doce, brasileiro… Realmente: os tempos de ouro da música nacional parecem estar de volta. Tomara que venha para POA rápido, diferente do Lucas Santtana que espero há um bom tempo.Mas sei que um dia eles descem aqui.
Helder, não faz isso, cara!
Não se coloca numa mesma frase Jorge Ben, Ivan Lins e Tim Maia.
Consultando o livro sagrado da música brasileira, vi que sua penitência é de 100 audições de Madalena. Boa sorte.
PS: Não ouvi direito esse rapaz(Janeci), mas o que ouvi achei tão trivial. Vou ouvir de novo.
Ahh, pô, Vanessa da Mata é MUITO melhor que Ana Carolina.
haha
Pô, Zé. Complicado ter de defender o Ivan com essa roupagem novela-de-manoel-carlos que ele ganhou pós anos 70. Mas seus discos da década de 70 possuem uma sonoridade muito trincada, complexa e agradável a ouvidos que não moram no eixo Ipanema-Leblon, nem são vizinhos do Zé Mayer.
O Verocai é responsável por essa sonoridade diferenciada dos discos do Ivan Lins na década de 70. Você ouve o Agora de 1970, com sua versão de Madalena, e desconhece completamente aquele artista em vista do que se tornou depois de anos de exibição na novela das oito.
E apesar de todo esse tempo ainda é um artista contundente, vide sua última parceria com a The Metropole Orchestra que lembra seus grandes momentos com o Verocai.
O que você diz aí sobre o Jeneci, acho basicamente o mesmo. Acho um artista trivial, porém completo. Tem capacidade ímpar de tornar sua simplicidade em sensações pro ouvinte. E a parceria com Verocai dá um ganho ainda maior em seu trabalho, dá grandiosidade às composições por vezes simples. Quem sabe o Jeneci não é o novo Ivan Lins? Capacidade de tocar na novela das oito sem perder a contundência ele tem, não duvido.
Que belissimo texto, cara. Deu vontade de mandar pra Chico (sou da Paraíba, onde ele hj é secretário estadual de cultura).
Um texto apaixonado, raro de se ler hj em dia. Desses que vão arrancar ódio de gente que acha q vc está exagerando.
Vou na outra linha. Abs.
O texto esta excelente. putz!!!! esse Zé Henrique e bem chatinho, né
Fala, Helder, vc falou com tanta propriedade que vou dá um crédito ao Ivan dos anos 70.
Tb, existia música ruim nos anos 70? rsrsr
Eu curto muito aqueles discos que ele gravou com a obra do Noel, justamente porque ali ele não tá parecendo com o Ivan Lins que conheço.
Sobre o Janeci, já disseram – inclusive acho que até o próprio corroborou – que era o novo Guilherme Arantes. O Guilherme do comecinho dos anos 80 tb tinha músicas intricadas, mas acho que vou passar do Janeci, cara. Essas referências não me animam muito.
PS: Paulo, mil vezes ser chatinho que bozinho.
Abraço
bonzinho
Bom texto.
Não me encheu os olhos – ou os ouvidos, como queiram – a estréia de Jeneci na bolachinha. Obviamente, não é ruim – e está longe de ser. Mas não passou de bonitinho, como usei o termo no texto acima. Estranhei muito o fato de Arnaldo Antunes ser tão presente no cd. Sou fã do Arnaldo, mas achei estranho eu perceber muito mais os ecos deles (não somente nas composições, obviamente, já que é o principal parceiro do Jeneci), mas no jeito de cantar e de pronunciar algumas silabas. Me pareceu uma influencia desmedida. Não acho que isso tire o brilho (ainda que de produção opaca, vai ver por essa onda retro das produções brasileiras) do álbum. Mas, ao vivo, Feito Pra Acabar é ainda mais pop, ainda mais radiofonico e menos chapado do que no álbum. O show me surpreendeu muito por causa da impressão (talvez até) precipitada que tive do disco, coisas do hype.
só escutei o cd 2 vêzes. não gostei. vou escutar de novo. a música brasileira tá cheia de janecis. um dia um aprova.
gostei do zé henrique, mas gosto demais do ivan lins anos 70, bem melhor que o janeci 00.
Gostei bastante do disco do Jeneci, mas é lógico que não trata-se de nada original. Ao longo do disco várias influências me pareceram bem nítidas: Los Hermanos, Roberto Carlos, Guilherme Arantes, sunshine pop, Pato Fu, Mutantes, etc…
Eu ouvi 1 vez em casa e outra no headphone, indo trabalhar. É algo de categoria, mas não da minha(da que me atrai). Preferiria mil vezes mais se fosse um DVD do Jeneci do que esse horrendo da tal de Paula Fernandes que me inferniza todos os dias, o dia todo, aqui no trabalho. O album do Jeneci Tem qualidade, é bem composto, escrito(nada espetacular, frise-se); agradável, em síntese. Mas em mim soou insosso. De repente ao vivo comova, mas ainda assim é o tipo de música que não me dá ereção alguma. Enalteço o trabalho apenas por achar bacana que seja essa, enfim, a nossa música de rádio atual. Escutem, cantem, toquem isso, juventude. MAs eu vou mudar de estação.