texto por Renan Guerra
A Noite Friccione surgiu como um evento de celebração de lançamento da Friccione Produções, agência de produção cultural e gestão de carreira fundada pelo produtor executivo Thiago Felix. O line up reuniu o casting completo da agência em cima do palco: Assucena, Jup do Bairro e Linn da Quebrada. Segundo o texto de apresentação, “a Friccione Produções busca realizar trabalhos que se desenvolvam a partir da pluralidade de corpos, ideias, gêneros musicais e linguagens artísticas, gerando fricções de ideias e práticas numa área que não para nunca de se transformar”. Todas essas definições foram mostradas de forma palpável na sexta-feira, dia 19 de agosto, no Cine Joia, em São Paulo. O evento intercalava os shows das três artistas principais com DJ sets de Periferia Preta, Paulete Lindacelva, EVEHIVE e AYA. Nesse texto vamos nos concentrar nos três shows da noite.
A abertura foi de Assucena, artista que integrava a banda As Baías (anteriormente conhecida como As Bahias e a Cozinha Mineira). Em 2022, a artista já lançou dois singles, o cover de “Ela” (Aldir Blanc / César Costa Filho), música do repertório de Elis Regina, e a faixa autoral “Partido Alto”. No palco, ela ainda baseia seu repertório essencialmente nas canções que compõem “Fa-Tal”, disco de 1971 de Gal Costa que Assucena vem homenageando nos palcos, em espetáculo chamado “Rio e Também Posso Chorar – Fatal 50”, em celebração aos 50 anos do disco, comemorado em 2021.
É preciso coragem e voz para se aventurar nesse repertório de Gal Costa (que a baiana, inclusive, reviverá em show especial no Primavera Sound São Paulo), pois é fácil cair num resultado comum e banal dessas canções. Porém, Assucena mostra sua força e sua criatividade em um show que é sempre surpreendente, por seu destemor ao passear por canções como “Dê um Rolê””, “Mal Secreto” e “Como 2 e 2”. Com banda diminuta e arranjos que celebram a verve roqueira de Gal, Assucena mostra uma desenvoltura de quem tem um conhecimento amplo do palco e das nuances de sua própria voz. Vê-la desbravar esse repertório apenas atiça ainda mais a nossa curiosidade sobre o que ela pretende trilhar a partir de agora em sua carreira solo.
Madrugada adentro foi a vez de Jup do Bairro subir ao palco e apresentar o show do álbum “Corpo Sem Juízo”, o mesmo que ela havia apresentado (e sido elogiada) esse ano no Lollapalooza Brasil. Com uma banda poderosa que inclui nomes como Malka Julieta, EVEHYVE e Apeles, o show de Jup é sempre uma surpresa interessante e, com o andar de sua turnê, a trupe no palco parece cada vez mais entrosada, o que se torna um deleite para o público. É interessante como eles passeiam da conexão com o pop em “All You Need Is Love” até um diálogo com o nu metal na roqueira “Pelo Amor de Deize”, tudo de forma natural e com o carisma sedutor de Jup do Bairro.
O momento mais forte da apresentação sempre fica na intensa performance de “Luta Por Mim”, com participação do rapper Mulambo, em uma faixa que representa bem a lírica e a complexidade dos discursos de Jup, uma artista que usa do humor e da sagacidade para tensionar as feridas mais complexas do nosso tempo. Prova desse bom humor foi a inserção no set list da faixa “Jup-me”, espécie de bootleg do repertório da cantora que nunca foi lançada oficialmente e que apareceu em um medley de funk, com outras faixas que inspiram a artista, como “Prostituto”, de Deize Tigrona.
Para fechar a noite, o esperado show de Linn da Quebrada, apresentando seu disco “Trava Línguas”. O álbum saiu em 2021 e com a lenta retomada dos eventos, acabou não sendo apresentado ao vivo. Logo na sequência, a artista entrou para o Big Brother Brasil 2022, da TV Globo, e de lá pra cá havia uma ansiedade dos fãs pelo momento em que ela levaria essas canções para o palco. E essa ansiedade tem motivo: “Trava Línguas” é um trabalho maduro e complexo de Linn, que apresenta a sua evolução enquanto compositora e mostra um domínio cada vez maior dela da linguagem musical, conseguindo fazer um casamento interessantíssimo de referências e sons.
Tudo isso apenas se engrandece no palco, com um show que passeia do rock à música eletrônica de forma natural, criando um experiência quase teatral, em que Linn está a serviço daquelas canções, como uma atriz com seu texto. “I Míssil”, “Cobra Rasteira” e “Medrosa” parecem ganhar ainda mais tenacidade no palco, provando-se cada vez mais interessantes e tocantes. Brincando entre o drama e a sensualidade, Linn se mostra grandiosa em cena e isso foi respondido pelo público de forma intensa. Num dos momentos mais interessantes da noite, ela inclusive desce do palco e desfila entre ouvintes apaixonados que parecem seduzidos por seu corpo e sua voz.
No final das contas, essa primeira Noite Friccione celebra muito bem a pluralidade artística desses três nomes que passaram pelo Cine Joia. Assucena, Jup e Linn são três mulheres trans, três corpos travestis e, muitas vezes, isso é utilizado como forma de categorização de suas artes, porém é interessante ver como no palco elas são díspares, distintas e cativantes em suas diferenças. MPB, rock, funk, música eletrônica e outros tantos gêneros se aglutinaram e passaram pelo palco do antigo cinema, em uma noite que celebrou a música em suas diferentes frentes.
Linn da Quebrada
Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. Todas as fotos são de @vxldinei / Divulgação