por Marcelo Costa
“Persuasão”, de Carrie Cracknell (2022)
Jane Austen é uma entidade quase religiosa na Inglaterra (e no mundo). Como pontuado no texto sobre a adaptação de “Orgulho e Preconceito” com o belo nariz de Keira Knightley, 16 anos atrás, Jane é constantemente considerada a segunda figura mais importante da literatura inglesa, ficando atrás apenas de Shakespeare. Por isso, as adaptações de seus seis livros sempre seguem na via segura da representação correta (“Razão e Sensibilidade”, “Emma”, “Orgulho e Preconceito”) mesmo quando tentam atualizar a história (“As Patricinhas de Beverly Hills”). Ou seja, ninguém quer cutucar vespeiro. Bem, ninguém queria. Filme de estreia da jovem diretora britânica de teatro Carrie Cracknell, “Persuasão” (2022), disponível no Netflix, é uma versão “Fleabag” de Jane Austen (sem sexo anal, romance com padres e Phoebe Waller-Bridge) com quebra da quarta parede, muita ironia e Dakota Johnson flanando espirituosa com um coração despedaçado abraçada a uma garrafa de vinho afundada em uma banheira (de lágrimas). Ela vive Anne Elliot, que foi persuadida a não se casar com o homem que amava porque ele era pobre. Oito anos depois (sem se falarem), o homem retorna após obter muitos triunfos no mar para a Coroa, o que o tornou rico. Não é preciso pensar muito para descobrir o que o destino reserva para os dois pombinhos, mas a primeira coisa que você precisa saber sobre o filme que todos amam odiar em 2022 é: não o leve a sério (mesmo que seja fã da escritora, é bom aprender a rir de si mesmo). Cracknell se propõe a satirizar “Persuasão”, e mergulha de maneira tão confiante na “adaptação” que, tirando Anne (personagem de Dakota) e a paixão de sua vida, o (cigano Igor) Capitão Wentworth (Cosmo Jarvis nunca será Hugh Grant porque lhe falta humor, algo que, ainda mais aqui, faz uma falta danada), praticamente todos os personagens secundários são tão caricaturais e exagerados que soam ainda mais engraçados do que as sutis espetadas que Austen os dispensa originalmente em seu livro. Paródia leviana (se não fosse leviana não seria paródia), “Persuasão” é uma bobagenzinha que diverte por sua coragem e sagacidade.
Nota: 6
“Paradise – Uma Nova Vida”, de Davide Del Degan (2019)
Calogero é um simplório vendedor de raspadinhas siciliano que, com a esposa grávida carregando na barriga sua primeira filha, deu o grande azar de presenciar um assassinato da máfia a sangue frio em plena luz do dia: pai e filho estavam comprando raspadinhas com ele quando levaram chumbo de um mafioso. Ele, claro, viu o rosto do assassino, e está disposto a testemunhar. A decisão faz com que ele necessite entrar em um programa de proteção de testemunhas, o que o separa da esposa grávida – que não concorda com o testemunho dele – e o leva para Sauris, uma pequena vila aninhada nos Alpes italianos onde não só a neve irá dificultar com que ele exerça seu ofício (vendedor de raspadinhas, lembra?), como também as estranhas rotinas folclóricas não irão atrai-lo. Esses, porém, se tornaram problemas menores, pois o assassino que ele entregou para a Justiça também decidiu colaborar com a polícia e, por um erro do departamento, foi enviado pelo programa de proteção a testemunhas ao mesmo hotel em que ele está – e com o mesmo nome: Calogero! Da proximidade nascerá uma amizade que irá mudar a vida dos dois, um tema que foi muito melhor desenvolvido no excelente “Tangerines”, delicada fabula antiguerra indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2015 (perdeu para o maravilhoso “Ida”), mas que aqui aprofunda outras questões: vale realmente arriscar a sua vida e a vida de sua família para fazer o que é certo? Ou, como comumente acontece, é melhor se fingir de surdo, cego e mudo, e levar a vida adiante como se nada tivesse acontecido? O roteiro provocativo de Andrea Magnani baseado no argumento do diretor Davide Del Degan não alivia para quem tem dúvidas, e as atuações convincentes de Vincenzo Nemolato, como o desajeitado vendedor de raspadinhas, e, principalmente, de Giovanni Calcagno (único ponto positivo de “Morrison”), como o seríssimo e contido vegetariano gay mafioso, acrescentando ainda a loura Katarina Cas (de “O Lobo de Wall Street”), fazem de “Paradise – Uma Nova Vida” um pequeno bom filme, que surpreende o espectador.
Nota: 7
“Boa Sorte, Leo Grande”, de Sophie Hyde (2022)
Nancy Stokes é uma professora de 55 anos que acabou de se aposentar (ahhh, o primeiro mundo). Ela perdeu o marido dois anos antes, e apesar de alguns (amigos dele) pretendentes, preferiu ficar sozinha, afinal, a chance deles serem igual ao marido era de 99,9%, o que não ajudaria Nancy a resolver algo que a atormenta: ela nunca teve um orgasmo, nem acredita que isso possa ser possível. “Esqueça o orgasmo”, ela diz em certo momento para Leo, o garoto de programa que ela contratou. Na verdade, o que ela quer é ter prazer no sexo, algo que lhe foi negado em 30 anos de casamento: “Ele não fazia sexo oral porque achava humilhante. E não deixava que eu fizesse porque dizia que eu iria me humilhar. Era só deitar em cima de mim, ‘fazer’, virar para o lado e dormir”, ela confessa. Coitado desse(s) marido(s)… “Good Luck to You, Leo Grande” parte dessa premissa franca para conquistar o coração do espectador com um roteiro básico, mas bem escrito, e atuações passionais da duas vezes ganhadora do Oscar Emma Thompson (Melhor Atriz por “Retorno a Howard’s End”, de 1993, e Melhor Roteiro Adaptado por “Razão e Sensibilidade”, de 1996), num papel deliciosamente inseguro, e de Daryl McCormack, como o sagaz “garoto de programa” que, como todos nós, acha Nigella Lawson empiricamente deliciosa em qualquer circunstância, certo? Como você pode imaginar, caro leitor, Nancy e Leo não são os verdadeiros nomes deles (a citação a “Mrs Robison” é adorável), mas sim personagens que eles criaram para viver essa fábula de sexo e confidências que surpreende pela leveza dos diálogos, pelo respeito à profissão “mais antiga do mundo” e, sobretudo, pela defesa de que o sexo é o começo de algo, não o fim como todos, ok, muitos erroneamente acreditam. Há um clímax de tensão muito bem construído e, principalmente, muito bem finalizado num filme que trata o sexo com uma leveza rara no cinema (e no mundo moderno), e que se valoriza pela extrema naturalidade que defende que facilitaria muito se amassemos a nós mesmos do jeitinho que somos: belos e malditos. Ahhh, Emma, só você mesma para viver Vivienne Rook e Nancy Stokes (e nos conquistar) com tanta naturalidade…
Nota: 7.5
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne