por Robson de Paiva Leandro
Brian Ferry era um jovem nascido no nordeste da Inglaterra, filho de uma família com poucos recursos. Seu pai trabalhava em uma fazenda e sua mãe era dona de casa. Ainda criança passou a vender jornais para ajudar no orçamento familiar, mas com parte dos seus pequenos ganhos ele investia em música comprando discos de jazz. Ao escolher o curso universitário, decidiu por artes plásticas na Newcastle University. E nesse momento começa a nascer a estética que mudaria uma boa parte da história da música.
Ferry foi um ótimo estudante. Tinha interesse especial em pinturas e foi aluno e orientando de Richard Hamilton, fotógrafo, artista gráfico, gravurista e… um dos maiores artistas plásticos da história inglesa no século XX, responsável, entre outras coisas, pela capa do “Álbum Branco” dos Beatles. A prova de que Brian não era um aluno comum foi a de ter algumas de suas primeiras pinturas sendo expostas na Tate Gallery – ainda durante o curso!
Era o fim dos anos 1960, um período efervescente na cultura, e Brian Ferry o viveu intensamente. Além da pintura, conseguiu colocar em prática seu interesse por música e participou de três bandas: The Banshees, City Blues e The Gas Board, sendo essa última uma espécie de embrião para o início do Roxy Music porque dela fez parte o baixista Graham Simpson que estaria no começo da banda. Também estava John Porter que se tornou produtor do seu primeiro disco solo que sairia em 1973, além de ter produzido nomes como The Smiths, Billy Bragg, B. B. King, , Buddy Guy e Ryan Adams, entre outros.
O Roxy Music ainda não estava formado, mas a obsessão por música vinda de Brian Ferry era tamanha que ele perdeu um emprego por causa disso. Ele tinha passado a dar aulas de cerâmica para meninas em uma escola de Londres e foi demitido porque levava discos e, ao invés de ensinar o ofício para o qual foi contratado, fazia sessões ouvindo e discutindo música com as alunas.
Ainda naquele ano, Ferry fez um teste para ser vocalista do King Crimson, mas acabou não dando certo. Isso, no entanto, deu impulso para que ele começasse a levar a sério o projeto de ter uma banda própria. Reunido com Brian Eno, que tinha sido convidado pelo saxonofinsta Andy Mckay para ser uma espécie de engenheiro de som da banda e que, passado o tempo, passaria a assumir os teclados, o Roxy Music começou os ensaios em 1971 já com o baterista Paul Thompson assim como o guitarrista Phil Manzanera.
Seguros de que tinham boas composições em mãos, a banda começa a se preparar para gravar o primeiro disco nos primeiros meses de 1972. Conseguiram levantar 5 mil libras, assinaram um contrato com a gravadora Island e em uma semana apenas terminaram a gravação. A não aprovação de Ferry para ser vocalista do King Crimson não deixou mágoas. Tanto que Peter Sinfield, que havia saído da banda de Robert Fripp, foi convidado para ser o produtor do álbum (e aceitou).
A estética do disco era inovadora. As letras (todas assinadas por Brian Ferry, assim como as músicas) misturavam o glamour decadente que vigorava nos anos 50 com pitadas de surrealismo, o que tornaria o disco um dos marcos do que se convencionou chamar de glam rock. Dias antes do lançamento, em 16 de junho de 1972, o sexteto fez sua primeira aparição pública em um festival, com um figurino andrógino, que trouxe mais um elemento que compunha a estética da banda. Estava definido ali de forma cristalina os anos 1970.
A música de abertura é “Re-make, Re-model”, (“Refaça, remodele” em tradução livre), que começa com um som ambiente do que parece ser um salão de festas. Ouvimos mulheres e homens conversando, som de talheres em um crescendo de aproximadamente 20 segundos. Em seguida a banda entra com Brian Ferry cantando como se fosse um crooner mais do que animado liderando uma banda que vem de forma avassaladora com um rock ácido e intermitente. Há aqui um refrão que insiste em dizer “CPL593H” cujo significado foi explorado por anos até se descobrir que era a sequência de letras e números da placa de um Mini Cooper que Ferry tinha visto na rua e que levava uma garota. “A rainha mais doce que ele já tinha visto”, como diz a própria letra da música, que ainda emula o baixo de “Day Tripper” dos Beatles.
“Ladytron”, a música seguinte, se utiliza de oboé e mellotron além de sons processados por Brian Eno em seu sintetizador para fazer a cama na qual Brian Ferry posa como o sedutor Casanova – e, sim, a banda Ladytron tirou o nome dessa canção. “If There Is Something”, a seguinte, começa soando com uma brincadeira country até psicodelizar no meio da canção – os 6 minutos cravados no álbum se transformavam em 12 ao vivo devido a jams e improvisos. A letra já foi descrita como dividida em três partes: na primeira, um Brian Ferry jocoso traduz um jovem perguntando sobre o amor; a segunda, com vocal carregado de Ferry, flerta com um casal no calor da paixão; a terceira, de vocal mais apaixonado, traz o crooner, mais velho, relembrando um amor que passou.
“Virginia Plain”, o single que precedeu o álbum, ficou de fora das primeiras edições européias do debute, mas assim que o disco pousou nas Américas (Brasil incluso) já trazia a faixa, que compila uma boa parte da essência da banda, no lado A do vinil – reedições posteriores na terra da Rainha também acrescentaram a faixa. O clima de festa está ali, mas a decadência também permeia toda a letra. Ali vemos um Brian Ferry encarnando o crooner decadente nos convidando para balneários bregas em Acapulco e para voar até o Rio e dançar o “cha-cha-cha”. O tom canastrão com o qual ele canta combina perfeitamente e faz com que você visualize o cantor com um longo topete de gumex e vestindo um terno de oncinha. Porém, estranhamente, há um tom futurista nos teclados de Brian Eno.
Ainda no “lado A” temos a obra prima da banda e, para ser justo, de Brian Eno. “2HB” influenciou gerações e moldou muito do que se viu ao longo dos anos 70. O próprio Bowie ficou absolutamente fascinado com a música. Tanto que quando começou a compor as músicas de “Low” ele pensou em texturas como se fossem pinturas. E quando procurou como traduzir esse pensamento em música, recorreu às camadas de teclado extremamente elegantes de Eno, que toca em quase todas as faixas desse álbum e também dos outros dois da trilogia berlinense de Bowie (“Heroes” e “Lodger”).
Ainda sobre “2HB”: a sigla significa “to Humphrey Bogart”, ator que interpretou o personagem Rick Blaine no filme “Casablanca” (1942) e que se tornaria uma espécie de referência futura para o restante da carreira de Brian Ferry, que depois da fase glam e extravagante no sentido estético, incorporou a elegância dos ternos bem cortados tal qual o seu ídolo do cinema usava. As referências ao filme não param por aí. O solo de sax cita diretamente o clássico “As Times Goes By”.
A música ainda influenciou diretamente Ian Curtis, que era um fã da banda e levou o disco para que os restantes dos integrantes do Joy Division ouvissem. “2HB” inclusive, faz parte da trilha sonora e aparece em uma das cenas mais emocionantes de “Control”, a cinebiografia que conta sua história. Além disso, o supergrupo The Venus in Furs (Thom Yorke, Bernard Butler, Andy McKay e Johnny Greenwood), gravaram uma versão dela para o filme “Velvet Goldmine” de 1998 – que também destaca “Virginia Plain”.
Com sons de tiros e explosões de campos de batalha, “The BoB (Medley)” (acrônimo para Battle of Britain) abre o lado b do vinil seguida pela sinistra “Chance Meeting”, que começa poética ao som de piano limpo narrando um encontro casual, até receber microfonia e efeitos congelantes de sintetizador. “Would You Believe?” paga tributo ao rock dos anos 50 enquanto a lírica “Sea Breezes” começa com som de ondas se quebrando na areia mais a voz de Brian Ferry e o oboé de Andy Mackay para se transformar num art rock poderoso no meio, ser envenenada por riffs de guitarra e frases sujas de sintetizador, namorar o rock dos anos 50 e, enfim, voltar ao mar. Para fechar o disco, um doo wop farrista, “Bitter’s End”.
“Roxy Music”, o disco alcançou relativo sucesso comercial tendo chego na 10ª posição dos discos mais vendidos – o single “Virginia Plain” foi mais longe tocando a 4ª posição da parada inglesa – mas poderia ter ido mais longe caso não fosse ofuscado pela obra prima de Davie Bowie, “Ziggy Stardust And The Spiders From Mars”, que saiu exatamente no mesmo dia. Porém, já no lançamento ele adquiriu o respeito da crítica especializada e se tornou o “queridinho” da turma do glam rock. Mas ele só furaria a bolha com o passar dos anos, especialmente graças ao sucesso de Brian Ferry.
A capa daria início a uma série que durou toda a carreira da banda. Sempre com modelos deslumbrantes, o primeiro disco tinha como estrela fotografada a atriz e ex-bond girl Kari-Ann Muller (ela apareceu em “007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade”, de 1969). A modelo ostenta o exagero do glamour decadente que já mencionamos anteriormente: com um vestido azul e maquiagem pesada, em posição vulnerável fotografada de cima para baixo pelo fotógrafo Karl Stoecker e pelo qual recebeu um cachê de apenas £20.
Ponto de partida para a carreira de uma banda que lançaria outros discos brilhantes, de um vocalista que abraçaria o sucesso nos anos 80, e de um produtor que ajudaria a transformar a carreira de uma das maiores bandas do mundo, o U2, “Roxy Music” é um clássico absoluto que foi determinante para toda a cultura glam rock dos anos 70 e, que certa forma, ajudou a dar forma ao que viriam a ser os anos 1980. Tanto na estética visual quanto sonora. Um disco incônico que você precisa ouvir!
– Robson da Silva Leandro é fotógrafo. Conheça seu trabalho em instagram.com/robson.foto