entrevista por João Paulo Barreto
O diretor e roteirista baiano Geraldo Sarno nos deixou em 22 de fevereiro aos 83 anos. “Viramundo” (1965) e “Auto da Vitória” (1966), seus primeiros filmes de uma filmografia com quase 20 longas-metragens entre 1963 e 2020, serviram de inspiração por abordar temas da cultura popular do sertão nordestino, o que também esteve presente em trabalhos seguintes como “Os Imaginários” (1970), e “O Engenho” (1970).
Dois anos atrás, lançando “Sertânia” (2020), seu último filme, na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, um Geraldo Sarno empolgado falava com satisfação sobre sua obra derradeira, e revelava: “No fundo, ‘Sertânia’ tem uma ligação com ‘Viramundo’. O herói do ‘Sertânia’ é um viramundo”. “Sertânia” é um brutal estudo da identidade do povo brasileiro através do olhar de um imigrante que escapa, ainda criança, junto à mãe, do massacre de Canudos.
Como forma de homenagear o grande cineasta Geraldo Sarno, o jornalista João Paulo Barreto resgata essa entrevista de 2020, publicada originalmente no jornal baiano A Tarde. Sarno foi dono de uma longa e brilhante carreira em que abordou através de documentários essa peleja do imigrante do nordeste em terras sudestinas. Abaixo, falando sobre “Sertânia”, ele rememora “Viramundo”, o tema do exílio e da migração, entre outras coisas. Leia a entrevista e mergulho na obra desse grande cineasta brasileiro.
Meio século depois de “Viramundo”, é curioso encontrar uma rima entre seu primeiro filme e “Sertânia”.
No fundo, “Sertânia” tem uma ligação com “Viramundo”. O herói do “Sertânia” é um viramundo. É um migrante que sai da Canudos derrotada. Canudos de Antonio Conselheiro. Com a mãe, ele é levado para São Paulo. E depois volta. Formado pelo padrasto na carreira militar, ele volta para o sertão e se encontra em um grupo de jagunços. Portanto, tem a ver com primeiro filme que eu fiz. Esse é um dos temas, o tema do exílio, da migração. Que é uma questão social central nesse país. Como a maior parte da população brasileira em grande parte do território nacional não tem uma viabilidade econômica e social, este acaba sendo um país de tangidos pela sorte. A migração não é em uma direção única. Uma migração, na verdade, é uma circulação. A população brasileira, em milhares e milhões, circula ao Deus dará pelo território nacional. A depender da sorte. Choveu, tem como plantar no sertão e milhares voltam para plantar. Tem uma seca de cinco anos, eles vão para o sul ou vão para a Amazônia, ou vão para onde for, e para que? Para encontrar uma maneira de sobreviver. Essa é a vida. E ficam nessa circulação. Aí perde o emprego, a idade não permite mais. Não encontram um emprego qualquer que seja em SP ou onde for. Pela idade ou pela doença ou pelo que seja, o cara volta. E volta pior do que quando saiu, às vezes.
Na figura de Antão em sua volta ao sertão e busca pelo pai, há muito dessa questão que você aborda de um povo sem raízes, sem um passado, e que vive a migrar.
Antão volta porque ele quer procurar pelo pai. Este é outro tema presente no filme: o da paternidade. Ele tem vários pais no filme. O próprio chefe dele, o Jesuíno, é o mesmo ator que faz a figura do pai dele. É o Julio Adrião. E não é por acaso que a gente botou o Julio Adrião para fazer o papel do cangaceiro chefe e o papel do pai dele, real, da vida quando ele era menino. O outro, evidentemente, é o major que o leva para São Paulo. A mãe vai trabalhar de empregada na casa do major, e o filho passa a ser criado por ele até a morte da mulher. Após isso, ele vai em busca do pai no sertão. A pergunta constante é aquela: “Cadê o pai, mãe? Cadê o pai? O pai morreu?” Ele quer o pai, o pai que ele viu ser morto, mas que foi reprimido. Ele passou a vida sem saber o que aconteceu ao pai e a mãe não contou. Sua volta ao sertão em busca do pai é um segundo tema do filme. E é um tema universal na cultura humana. A questão da paternidade no Brasil, por exemplo, é uma questão gravíssima. Quantos milhões de brasileiros não conhecem o pai? Não viveram em uma família que tem pai? São milhões. O pai é a mãe. Nós temos historicamente uma questão de construção da família junto ao povo brasileiro que é muito séria.
Tendo o olhar do protagonista como sendo o olhar da própria câmera, é pertinente observar como a obra tem na imagem fílmica esse aprofundamento do seu personagem principal.
Sim. Este é o tema do ver, do olhar. O cinema entra aí. O tema do olhar. Quando ele vê o pai, ele não vê apenas o pai ser morto. A partir daí, ele perde um véu de relação ao real, ao mundo. Ele começa a ver as coisas como são. É quando ele vê o que acontece com os retirantes. Ele os vê, e acaba vendo, também, a morte do pai, fato que ele tinha reprimido. Ele se vê criança junto à mãe vendo o pai ser morto. Esse é um tema central para mim. O tema do “Ver”. Isso em várias sequências. Por exemplo, as duas meninas, cegas e surdas, que nunca vão ouvir ou ver nada na vida. Um cérebro humano sem visão e sem audição. Isso é uma tragédia terrível. Chegamos a isso. A gente vai até esse ponto. Nós vemos essa questão do ver na luta de cangaceiros e policiais, em que a cegueira dos dois lados faz com que eles se matem em algo sem sentido. São as lutas e as repressões que não têm sentido. Que são feitas do povo contra o povo, mesmo. Enfim, é a cegueira. Cegueira política, cegueira social. É uma forma de cegueira porque o olhar é mental. Você olha com a mente. Sua mente, seu cérebro, sua formação cultural, sua formação humana, sua formação ética e social. É o que te faz ver. Porque, ver, você vê a partir de uma perspectiva. Todo olhar tem uma perspectiva. Essa perspectiva é cultural. O mesmo fato pode levar duas pessoas diferentes a conclusões completamente opostas. É a sua educação, a sua formação cultural que te permite ver. A humanidade no homem só surge dessa formação cultural. Educacional. O homem é um ser social. É aí que se forma o ser humano.
“Sertânia” traz momentos de quebra da quarta parede do cinema, algo que nos faz adentrar naquele universo que, somado ao fato de que o longa é uma subjetiva, gera essa reflexão da construção fílmica. Foi essa a intenção?
A quebra de quarta parede, quebrar o ilusionismo da narração que está se desenvolvendo, para mim, tem como objetivo trazer para dentro do filme uma reflexão sobre o cinema. Sobre a arte do cinema. Sobre linguagem cinematográfica. O filme, nesse momento, indaga o cinema. Indaga o cinema que está sendo feito. O filme indaga o filme. Lembrando, sim, que a obra toda é uma subjetiva. Toda ela se passa na cabeça do Antão. É ele ferido que pensa aquele filme, que pensa aqueles momentos. Que pensa aquele mundo que o filme tenta traduzir em imagens. E essa mente pensa como? Pensa como cinema. O cineasta é a cabeça dele, que faz o filme. Então, para poder tirar a ilusão cinematográfica, para que o cinema adquira uma personalidade mais forte, para que se perceba que aquilo é um filme, é um filme que está narrando, você tem que sair dessa bobajada desse cinema comercial, pura ilusão. O filme tem quebras. Uma quebra é essa.
Como se dá esse planejamento de montagem?
No set, eu não vejo o que eu filmo. Depois que acabou a filmagem do dia, a equipe vai ver, o fotógrafo vai revisar, tudo vai ser visto. Mas eu só vejo depois, lá na montagem. Eu não perco nenhum plano que está sendo filmado. Mas depois só vejo na montagem. Isso foi uma prática minha que exercitei durante muitos anos desde o primeiro filme que eu fiz no sertão. Porque eu tinha viajar 1500km, ida e volta, ficar uma semana, um mês, para fazer os filmes documentários, e era tudo em película. Não tinha tempo de mandar revelar e voltar para ver. Então, isso me fez exercitar a mente. Fui me habituando a filmar sem precisar ver a imagem.