entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
No universo musical de Joana Espadinha convivem várias referências. Na adolescência, apaixonou-se pela música dos anos 1990 e, em particular, por cantoras como Sheryl Crow e Alanis Morissette. O jazz desempenhou um papel decisivo na formação de Joana, que iniciou os seus estudos musicais em Lisboa, no Hot Clube de Portugal e no ano de 2010 concluiu uma licenciatura em jazz, no Conservatório de Amsterdã, na Holanda. A música de Chico Buarque e Milton Nascimento também a marcou.
Enquanto mantemos uma conversa animada pelo Skype, Joana Espadinha confessa igualmente o seu interesse por artistas como O Terno e Cícero. “Agrada-me o contraste musical e a ideia de que a felicidade não é completa. São influências importantes, porque eu gosto dessa característica nas minhas canções”, explica. Ao nível estético, a cantautora alentejana elege ainda o indie rock de Angel Olsen e Melody Echo Chamber como referências para o trabalho que desenvolve.
O seu álbum de estreia, “Avesso” (2014), embora melancólico e ancorado numa sonoridade jazzística, incluiu alguns momentos interessantes que seriam explorados mais tarde. Algum tempo depois, Joana Espadinha participou no Festival RTP da Canção com a canção “Zero a Zero” e no mesmo ano (2018) seria lançado o disco “O Material Tem Sempre Razão”, produzido por Benjamim.
Em “O Material Tem Sempre Razão” predomina um pop personalizado, com referências aos anos 1980, e algumas baladas. A tónica do álbum é otimista e percorre faixas como “Leva-me A Dançar” ou “Pensa Bem”. Para o impacto positivo do disco contribuiu também o timbre sedutor de Joana e o papel de Benjamim, como produtor. “Na altura, eu estava algo perdida e tinha pouca experiência na produção e instrumentação pop, mas o Benjamim teve muita paciência e gozo para descobrir e experimentar com vista a termos opções, tal como os instrumentos e as linhas de baixo que pretendíamos para o trabalho”, conta.
“Ninguém Nos Vai Tirar O Sol” (2021), o seu mais recente álbum, que também contou com a produção de Benjamim, mantém a ponte com o trabalho anterior, mas exibe mais soluções e confiança interpretativa, aludindo aos anos 1990 (“Dar Resposta”), mostrando que o faro pop de Joana continua apurado (“Mau Feitio”), evidenciando a presença latente do soul e dos blues (“Queda Prá Desgraça”) e aproximando-se do indie pop da cantora e guitarrista canadense Leslie Feist na belíssima faixa-título.
Sobre a possibilidade do disco ter sucesso, Joana Espadinha revela alguma prudência e formula um desejo: “Uma das coisas que mais me agrada na composição é que as canções ganham novos significados quando chegam às pessoas e passam a ser delas. Para mim, um bom impacto permite-me tocar ao vivo esses temas e continuar nesta profissão, porque sou apaixonada por fazer música”.
Relativamente à sua maior ambição profissional, Joana não hesita: “Gostaria que a música não fosse só um hobby, mas sim a minha atividade profissional. Claro que fazer um dueto com o Chico Buarque será sempre uma grande aspiração como artista e intérprete (risos)”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Joana Espadinha conversou com o Scream & Yell. Confira:
Você tem uma formação ligada ao jazz e essa influência refletiu-se no seu disco de estreia, “Avesso” (2014). Em que momento sentiu vontade de abraçar uma sonoridade mais imediata?
Foi quando senti que prejudicava as minhas canções com uma estética desajustada. A música mostrou-me esse caminho. O “Avesso” é muito especial para mim, porque marcou essa transição. Comecei a escrever música quando estudava jazz e trabalhava com músicos de jazz, na Holanda. A nossa abordagem estava orientada para que as canções servissem de plataforma para a improvisação, Por vezes sugeriam trilhas sonoras com várias partes. Por isso, não eram temas num formato mais compacto ou imediato. Num dado momento, percebi que as músicas precisavam de perder as pontas soltas e tudo o que não fosse essencial. Por isso, comecei a por de lado tudo o que não fizesse falta até chegar ao núcleo da canção. Acabei por aprender com os erros, que se cometem em todos os discos. Relativamente ao “Avesso”, essas falhas deveram-se à falta de produção, ou seja, uma entidade externa que me desse alguma perspetiva sobre os arranjos e a aparência. Mas, a escrita também importava, porque eu compunha livremente e deixava estar o que fazia. Agora há um trabalho posterior em que a canção é refinada e percebo como vou melhorá-la. Quando colaborei com o Benjamim (produtor) no segundo disco, “O Material Tem Sempre Razão” (2018), tive mais cuidado e compreendi que a minha música precisava de uma estética e de um formato diferente.
Falemos agora do seu novo álbum (“Ninguém Nos Vai Tirar O Sol”). O efeito da pandemia e o fato de você ter sido mãe foram os principais aspectos dominantes na sua elaboração ou existiram outros conceitos presentes?
Quando começo a escrever para um novo trabalho descarto, à partida, o lado conceitual. É algo que vai acontecendo. Depois olho para as músicas que compus e apercebo-me de uma linha condutora com aspectos que se repetem. Mas, inevitavelmente, as canções refletem aquilo que vivi e a minha verdade. Não abdico disso. Este disco, em particular, atravessou as duas grandes transformações que aconteceram quase em simultâneo. Durante o confinamento, eu já tinha escrito algumas músicas para este álbum. Essas canções não estavam terminadas, porque tenho um processo de composição caótico. Avanço numa canção depois regresso a outra e só no final é que faço os acertos e fica tudo pronto ao mesma tempo. No momento em que se iniciou o confinamento, e assistimos a todas estas transformações no mundo, fiquei com a sensação de que as músicas poderiam estar datadas e comecei a pensar se ainda faziam sentido. Uma canção como “Mau Feitio” (das primeiras a serem escritas) que é alegre, por oposição ao momento que vivíamos, colocava-se a questão do sentido que fazia cantá-la e tive muitas dúvidas. Para além disso, decidi que iria continuar a compor, mas questionava-me sobre quais seriam as pessoas que iriam receber a minha música e como estaria o mundo quando o disco fosse lançado. Era um exercício de futurologia que não fazia sentido fazer. Se há alguma coisa que aprendi neste ano e meio foi que a incerteza existe e tudo muda. Viver esta fase e engravidar é surreal. A gravidez e a maternidade são coisas que nos transformam para sempre e viram a nossa vida do avesso, tal como o isolamento. Mas, aconteceu uma situação engraçada. As músicas antigas, que fiz antes da pandemia, ganharam novos sentidos. Na faixa “Quem Me Dera Saber Que Sou Feliz” há uma estrofe que diz: “Eu fui para casa ver o sol no televisor”. Enquanto eu dizia para mim própria: “Não acredito que escrevi isto”. Porque, durante o confinamento, foi o que me aconteceu. Senti muita falta do sol, daí que uma das últimas canções seja a “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol”. Claro que a pandemia e a maternidade foram duas grandes influências, porque vivi essas situações. Também existem as dinâmicas nas relações e aquilo que é o amor real, por oposição ao amor romanciado, e alguma melancolia acompanhada por um toque de humor para que me consiga rir das coisas menos boas. É quase como se fosse uma terapia.
Você citou “Mau Feitio” e “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol”. Ambas as faixas exibem caraterísticas sonoras e líricas particularmente interessantes. Em que se inspirou para compor estas canções?
“Mau Feitio” nasceu num pós-concerto em que eu estava num dj set com amigos, antes desta loucura toda, que nos impede de estarmos juntos e descontrairmos. De repente, alguém passa “Lança Perfume”, da Rita Lee. Que canção deliciosa! Tem um gosto especial, mas é pop e dá vontade de dançar. Eu adoro Rita Lee. A partir daí fiquei com vontade de fazer uma música que tivesse a mesma onda. Foi isso que me motivou a compor a canção e depois pensei em fazer algo que estivesse relacionado com o mau feitio e as oscilações de humor, que toda a gente tem (risos). Não sendo completamente autobiográfica, “Mau Feitio” é a canção mais premeditada, na medida em que eu criei-a para encontrar esse balanço e humor e, claro, fazer com que as pessoas se sintam bem a escutá-la e a dançá-la. Foi das primeiras músicas a serem escritas e tocadas ao vivo, mas depois foi rearranjada e prefiro a estética que ficou. “Ninguém Nos Vai Tirar O Sol” apareceu no final e é das mais terapêuticas. Escrevi-a para mim mesma, no sentido de lidar com a incerteza que eu estava a viver e para tentar concentrar-me nas coisas simples e importantes que nos fazem sentir bem. Por mais ingénuo que seja este pensamento, ninguém nos vai tirar o sol. É das poucas certezas que temos (risos). Foi como se tratasse de um mantra para encarar um dia de cada vez e ter alguma serenidade.
As suas canções abordam histórias de amor, temas existencialistas, bem como reflexões pessoais mas, nelas, você mantém um grau de otimismo apreciável. Esse frescor resulta da tentativa de incutir positividade nas canções ou é algo inerente à sua maneira de ser?
Eu sou uma pessoa positiva. Mesmo que tenha os meus momentos de melancolia, acabo sempre por funcionar na base do ‘wishful thinking’, ou seja, se direcionarmos a vida dessa forma as coisas acontecem mas facilmente para nós. É um pouco ingénuo e a vida mostra-nos que nem sempre é assim, mas quando se concretiza é bom. A canção “A História do Pé de Feijão”, por exemplo, que escrevi para o meu filho, comecei a compô-la antes de engravidar. Acabei quando estava grávida e é uma das músicas mais especiais do disco. Relativamente ao álbum “Avesso”, que era algo melancólico, houve alguém que me disse: “Tu és uma pessoa alegre. Porque é que estás a escrever coisas tristes?”. Gradualmente, percebi a razão disso acontecer. Para mim, é mais difícil compor canções alegres, que me façam sentir animada sem ser forçada, porque isso soa-me a falso. Foi uma aventura descobrir a forma para fazer canções vibrantes, mas reais e não ilusórias. Nessa busca tive que procurar o meu objetivo.
Como avalia o atual panorama musical português?
Acho que há muitos projetos novos interessantes e sinto que o público já começou a escutar coisas que não são tão comerciais. Há lugar para todos, mas houve uma altura em que senti que só passavam os mesmos seis artistas e havia um mundo maior para descobrir. Considero que as pessoas estão a desfrutar da música e a descobrir novos projetos. Nesse sentido, a rádio lisboeta Antena 3 tem feito um trabalho importante de divulgação, ajudando os músicos emergentes. Para mim, existem muitos artistas que me inspiram. O Samuel Úria é um cantautor excecional e original, o trabalho da Capicua interessa-me bastante (ainda para mais porque ela foi mãe antes de mim e eu acompanhei o processo do álbum “Madrepérola”, de 2020), a Luísa Sobral também faz ótimas canções, tal como a Márcia e a Beatriz Pessoa. Destaco ainda o Benjamim, o Filipe Sambado e os Cassete Pirata que eu integro. A música portuguesa está bem e recomenda-se. São precisas mais estruturas para apoiar os artistas de uma forma consistente e não apenas pontual. Relativamente à internacionalização dos músicos portugueses, sinto que tem sido mais fácil na música tradicional, porque o fado é mais exportável do que outros estilos musicais. Mas, cada vez mais, o panorama está a mudar. No mercado brasileiro, nota-se mais intercâmbio e abertura. Eu sinto que O Terno e o Cícero são artistas que fazem parte da minha geração e a língua portuguesa favorece uma internacionalização mais fácil no Brasil. Admito, no entanto, que nos faça falta arriscar, mas temos de ter estruturas que apoiem um tour no exterior, porque nós não temos recursos disponíveis.
Você gostaria de deixar uma mensagem para os leitores do Scream & Yell?
Eu sou apaixonada pelo Brasil e pela sua música, mas nunca estive ai. É um sonho que quero concretizar. Posso lhe dizer que a música brasileira me influenciou muito e de maneira positiva. Mas, acho que as canções que eu compus são originais e autênticas, porque a única música que eu podia fazer é esta. É um reflexo do que nós somos e é assim que a vejo. A minha música apela a um lado mais pessoal e íntimo para quem a escuta. Por isso, ela tem um impacto mais emotivo no público.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.