entrevista por Alexandre Lopes
Imagine o seguinte enredo: um cangaceiro tem uma premonição ruim durante um sonho e tenta alterar seu futuro na base da matança. Porém, ao perceber que cada morte piora a própria situação e a do planeta em que vive, ele decide vender a alma ao demônio para tentar impedir o apocalipse. Esta bem poderia ser a sinopse de uma obra perdida de João Cabral de Melo Neto, mas na verdade é o conceito por trás de “Holoceno” (2021), o disco de estreia do quarteto paraibano Papangu.
Formada por Marco Mayer (baixo, synth e voz), Hector Ruslan (guitarra e voz), Raí Accioly (guitarra, voz) e Nichollas Jaques (bateria e voz), a banda de João Pessoa lançou no final de junho seu primeiro álbum, após sete anos de maturação. Ao longo de 45 minutos, o grupo mostra em sete faixas um sludge metal semelhante aos momentos mais agressivos do Mastodon, com inserções que fazem jus à fase setentista do King Crimson e uma forte influência de zeuhl – mistura de rock progressivo, jazz e música clássica cunhada pelos franceses do Magma –, tudo isso com letras em português, elementos de literatura modernista do Nordeste e de ‘escatologia ecológica’ (o estudo das coisas que devem acontecer no final dos tempos, com ênfase no meio ambiente).
Um caldeirão de referências a princípio tão diferentes poderia mais confundir do que entreter, mas o efeito foi justamente o contrário; apesar de ainda não ter furado a bolha do underground, “Holoceno” tem despertado a atenção de ouvintes fora do Brasil e arrancado elogios de fóruns e sites estrangeiros ligados a rock progressivo, metal experimental e música alternativa como Metal Storm, Prog Archives e TrebleZine. E esse interesse é chancelado também pelas participações ilustres do baterista Torstein Lofthus (membro de conjuntos como Shining e Elephant9), Benjamin Mekki Widerøe (saxofonista da banda norueguesa Seven Impale), Uaná Barreto (músico paraibano de formação clássica), e Luís Souto Maior nas gravações.
Em entrevista por e-mail ao Scream & Yell, a Papangu conta mais sobre a formação da banda, o processo e o conceito que deu origem a “Holoceno”. Confira abaixo o lyric video de “Bacia das Almas” e o papo com o grupo.
Primeiramente: como foi que os membros da Papangu se conheceram?
É engraçado porque todos nós somos amigos de longa data, e nossas histórias se cruzam em pontos distintos porém conexos. Todos éramos aquele tipo de moleque roqueiro e nerd, então com pouca idade já estávamos focados em aprender a tocar instrumentos e montar bandas de rock. Hector (guitarra e voz) e Raí (guitarra e voz) se conheceram estudando na mesma escola, ainda no ensino fundamental. Marco (baixo, synth e voz) e Raí se conheceram através de uma viagem em comum que fizeram ainda quando adolescentes. Marco pôs um anúncio de venda de uma guitarra nos classificados de um jornal local que chamou a atenção de Hector, e assim eles se conheceram. Marco e Nichollas (bateria) se conheceram após uma amiga em comum fazer a ponte num festival de música em 2012. A banda em si começou quando Hector e Marco procuraram montar uma banda de stoner rock/metal. Marco sugeriu que Nichollas fosse o baterista e, após um primeiro ensaio em que tocamos apenas covers e umas jams, a banda nasceu. Logo nas primeiras tentativas de composição própria, o som da banda foi se distanciando do stoner rock e se aproximando de um som mais progressivo e experimental, e logo veio a ideia de acrescentar elementos de música regional nordestina no caldeirão de influências. Ainda como trio, fizemos alguns shows na cidade, mas a vontade de expandir o leque sonoro nos incentivou a buscar um segundo guitarrista, e Raí foi a escolha natural.
A banda existe desde 2012, mas o primeiro álbum só foi lançado agora em 2021 (depois de um período de 7 anos sendo trabalhado). Vocês conseguem resumir o que aconteceu com o grupo ao longo desse tempo todo?
O primeiro grande desafio foi aprender a compor. Com exceção de Raí, que já havia gravado um EP de thrash metal com uma banda que fundou no Canadá, nenhum de nós possuía experiência prévia com música autoral. A criação de estruturas musicais mais complexas e coesas, melodias vocais e letras foi algo que nós precisamos estudar e praticar bastante ao longo desse tempo. Algumas das músicas do disco já estavam mais ou menos prontas em 2014, mas foram ajustadas ao longo dos anos com a experiência que adquirimos em composição. O segundo grande desafio foi aprender a utilizar ferramentas de gravação, montando nossos pequenos estúdios caseiros para que pudéssemos testar ideias e estruturar as composições de forma mais dinâmica e organizada. A partir do momento que sentimos que estávamos prontos para materializar o som de Papangu, com a segurança de que as pessoas poderiam ouvir nossas músicas exatamente como queríamos que soasse, decidimos entrar em estúdio para gravar “Holoceno”.
O disco traz o Torstein Lofthus como baterista. Como aconteceu a participação de um instrumentista tão influente logo no primeiro disco de vocês?
Bem, a participação de Torstein decorreu de uma sequência de fatos até que um tanto preocupantes, mas que se encerraram na feliz inclusão dele em nosso disco. Nós iniciamos a gravação do material em meados de julho de 2019. Em razão de nossos empregos e orçamento, nós não conseguimos passar um longo tempo enfurnados dentro do estúdio para finalizar as gravações, razão pela qual fizemos seis sessões de meio expediente entre julho e novembro de 2019. A finalização da gravação das cordas, vozes e teclas coincidiu com a conclusão do mestrado de Nichollas, e nós só conseguimos marcar o início das gravações de bateria em março de 2020. Foi aí que a pandemia atingiu o Brasil com força total e acabou destruindo todo o nosso cronograma. Ocorre que Marco conhecera Torstein em uma viagem que fez à Noruega ainda em 2019, em janeiro, para ver três shows da banda norueguesa Elephant9, que vieram a ser lançados como o disco ao vivo “Psychedelic Backfire”. Fanboy do jeito que é, ele foi convidado para entrar no backstage e manteve contato com Torstein desde então. Frente às dificuldades em gravar Nichollas no Brasil, perguntamos a Torstein se ele toparia gravar as baterias de “Holoceno” na Noruega, que estava em uma situação epidemiológica bem melhor do que a do Brasil. Quando soubemos do aceite, ficamos muito animados e ansiosos. O cara é sem dúvida um dos melhores bateristas do mundo e ouvi-lo em ação em “Holoceno” é verdadeiramente emocionante pra gente.
E as participações de Uaná Barreto, Benjamin Mekki Widerøe e Luís Souto Maior, como surgiram?
Uaná é um músico daqui de João Pessoa que tanto tem formação clássica quanto profundo conhecimento de música brasileira e de jazz. Na hora de gravar “Água Branca”, queríamos usar o Minimoog do estúdio para um solo de sintetizador, e surgiu na cabeça a ideia de chamar Uaná para dar um pulinho rápido na gravação antes de ir tocar num show. Ele escutou “Água Branca” uma única vez e tocou fogo em tudo num take só. Mesmo com todos da banda impressionados, ele pediu um segundo take, já que o primeiro fora só para aquecer, e é esse o solo que entrou no disco. O cara é incrível. A gente ficou tão animado que pedimos para repetir o procedimento em “Bacia das Almas”. Benjamin toca sax numa banda norueguesa chamada Seven Impale. Marco sugeriu incluir saxofone para dar uma colorida em “Lobisomem” e nós adoramos a ideia. Quando estávamos prestes a mixar, decidimos pedir o repeteco da contribuição na faixa-título, e o resultado é esse final maravilhoso. Pouco antes de mandar os arquivos para mixagem, falamos com Luís Souto Maior, que é primo de Marco e um expert em synths analógicos, e pedimos para que incrementasse a introdução da faixa-título com algumas faixas de Prophet-6. Achamos que aquela seção pedia essa textura um tanto setentista.
Procurando pela definição de ‘Papangu’, encontrei algumas versões. Questionando uma amiga cearense, a primeira explicação que ela me deu foi sobre as pessoas que usam máscaras de monstros e demônios no carnaval nordestino. Qual é a inspiração real para a banda?
Hector deu nome à banda. A definição de Papangu que batiza nosso grupo vem justamente da ideia de uma criatura folclórica assustadora do Nordeste brasileiro. O Papangu é uma figura típica do carnaval da cidade de Bezerros, no interior de Pernambuco. São pessoas que se vestem como monstros e saem às ruas para pregar peças. O imaginário folclórico nordestino é uma das maiores influências estéticas da nossa banda.
A Papangu lembra algo da agressividade do Mastodon com algo de King Crimson e o zeuhl inventado pelo Magma. Além desses nomes, o que acham que influencia vocês e não estaria tão aparente no som que fazem?
Os quatro membros da banda possuem bagagens musicais distintas e que não necessariamente são refletidas no som de Papangu a todo momento. Raí é um grande fã de thrash metal, Hector é vidrado em punk e hardcore, Nichollas já tocou com bandas de death metal locais e Marco, além de uma enciclopédia do rock progressivo, curte um bom city pop japonês, por exemplo. A linguagem da nossa banda, contudo, é um ponto de confluência entre todos nós. A mistura de sludge metal, rock progressivo, zeuhl e música nordestina é algo que todos amamos. O objetivo sempre foi fazer música autoral com a nossa cara, algo que nos desse prazer e que pudéssemos chamar de nosso.
A banda se diz influenciada também pela literatura modernista do Nordeste e pela ‘escatologia ecológica’. Pelo que pesquisei e entendi, imagino que o conceito do disco dialoga com ambas as ideias trazendo um cangaceiro (personagem característico da região nordeste) que, ao tentar mudar seu destino, acidentalmente causa um desastre ambiental (daí a noção de ‘escatologia ecológica’). Seria isso?
A narrativa, em resumo, trata de um cangaceiro que se depara com um mau agouro num sonho e tenta mudar o futuro na base da matança. Quando ele percebe que cada morte matada piora a situação, o cangaceiro vende a alma para o Cão achando que vai conseguir impedir o fim do mundo de ocorrer. Além do imaginário folclórico popular do Nordeste, nós somos influenciados por obras como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, a poesia de Ariano Suassuna e de Augusto dos Anjos, e pela arte plástica de Flávio Tavares. É importante, ainda que não essencial para ouvir o disco, frisar que “Holoceno” é um disco conceitual e que cada uma de suas músicas funciona como um capítulo de um livro. A narrativa se assemelha ao realismo mágico, que busca, através de elementos fantásticos, contar histórias que são bem reais e relacionáveis para nós. A fome do retirante que foge da seca e do desastre ambiental, o conflito entre a oligarquia detentora de terras e aqueles que verdadeiramente vivem dela. “Holoceno” contém mensagens políticas que, ainda que não cantadas através de slogans e palavras de ordem, estão bem presentes.
A arte da capa (muito boa por sinal) é assinada por Ars Moriendee, pseudônimo de Pedro Felipe, um artista e músico de Belo Horizonte (que também já fez capas para outros projetos musicais). Como foi a criação dessa arte?
A capa de “Holoceno”, encomendada por nós, é realmente fantástica e somos muito gratos ao Pedro por isso. Falamos com o artista sobre nossas aspirações para o disco e, em seguida, enviamos algumas demos. A arte de Ars Moriendee complementa muito bem a estética sonora e visual que nós buscamos implementar em “Holoceno”, e a forma como ele interpretou tudo serve como realce de seu talento.
A pandemia atrapalhou vocês na gravação do “Holoceno” de alguma forma? Ou a estratégia de divulgação/lançamento?
Como mencionamos, a pandemia atrapalhou o cronograma das gravações da bateria, mas as dificuldades não se limitaram a apenas isso. Com o fechamento de estúdios em nossa cidade, nós tivemos que fazer alguns poucos overdubs em nossos estúdios caseiros. A pandemia também afetou diretamente a mixagem. Como nós não nos sentíamos seguros em estar no estúdio presencialmente, nós acabamos iniciando o processo com um engenheiro de som local (não creditado no disco) e podemos dizer que tivemos problemas de todas as ordens com ele. Por conta disso, rompemos o contrato com ele e buscamos alternativas. A primeira opção foi um engenheiro de som nos Estados Unidos. Embora o trabalho dele fosse excepcional, a expertise dele não se adaptou bem à estética que nós procurávamos. Em seguida, mandamos o disco para Jørgen, o engenheiro responsável pela gravação da bateria de Torstein, que fez um excelente trabalho ao conseguir traduzir o som que a banda queria expressar com as músicas. Se tivéssemos mais experiência com produção musical, nós teríamos procurado Jørgen já no início e economizado bastante tempo e paciência.
Vocês tem algum plano de fazer shows ou turnês com a mesma formação que gravou o disco?
Planejamos fazer turnê sim, mas acreditamos que em shows no Brasil não conseguiríamos contar com a participação de Torstein ou Benjamin. Em uma eventual turnê europeia, faremos de tudo para trazer o sax de Benjamin e juntar as forças de Nichollas e Torstein no palco.
Além do lyric video de “Bacia das Almas”, vocês têm mais algum material relacionado ao “Holoceno” em mente para lançar?
Temos, mas não daremos spoilers agora.
E quais são os próximos planos da Papangu?
Bem, temos algumas composições que ficaram fora de “Holoceno” pois não casavam com a estética e a narrativa do disco. Essas composições já tinham um conceito maior em mente e estão aos poucos se somando a outras idéias, e já vislumbramos a espinha dorsal do próximo disco. A gente não quer que o galo cante antes do amanhecer, mas já deixamos claro que pretendemos fazer algumas coisas diferentes no próximo álbum. A ideia é gravar a maior parte dos instrumentos ao vivo no estúdio e usar boa parte do tempo para experimentar coisas novas que possam incrementar as músicas. Também pensamos em trazer a participação de um produtor experiente que vai poder nos oferecer um norte mais claro, respeitando a nossa visão artística.
– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br
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