entrevista por João Paulo Barreto
“O inferno são os outros”. Com essa frase proferida por um personagem da peça “Entre Quatro Paredes” (1944), de Jean-Paul Sartre, o norte para a compreensão de “A Nuvem Rosa”, filme escrito e dirigido pela cineasta Iuli Gerbase, tem um primeiro passo em seu trilhar. Selecionado para a mostra competitiva World Cinema Dramatic, do prestigiado Sundance Festival, nos Estados Unidos, que vai até o dia 03 de fevereiro em plataforma digital, o longa de estreia da roteirista gaúcha aprofunda-se na ideia do isolamento físico e emocional de Giovana e Yago. Os dois formam um casal confinado tanto nos cômodos de uma casa quanto no desejo de libertação de suas angústias e sentimentos. Trata-se de um filme que traz a análise do equilíbrio de um relacionamento fadado ao fracasso pelas prisões que ele criou tanto para si próprio quanto aquelas às quais precisou se adaptar para continuar resistindo. O inferno está nos outros que nos cercam, bem como, dentro da sanidade de cada um, há, também, um inferno particular.
Trazendo a ideia de uma nuvem tóxica a manter as pessoas presas em casa sob o risco de morte caso tenham contato com o ambiente externo, o longa é baseado em estudos acerca do criação de personagens aprisionados, publicados em dissertação de mestrado escrita pela própria diretora, cuja defesa aconteceu em 2017. O roteiro escrito por Gerbase foi filmado em 2019, distante de qualquer ideia de que aquela realidade poderia ser a de todos nós em um futuro bem próximo quanto o de 2020 se apresentou. Sartre, com a peça “Entre Quatro Paredes” a abordar o contexto de isolamento, juntamente a Luis Buñuel e o seu marco “O Anjo Exterminador” (1962) a ilustrar outro exemplo de análise comportamental humana em situações de confinamento e tensão, são duas das outras obras trazidas pela cineasta na composição de seu texto.
“Eu queria explorar esses personagens em diferentes situações. Temos os protagonistas, um casal de que recém se formou. Temos uma amiga da Giovana, que, ao contrário, se separou, ficando trancada sozinha em casa. Temos uma menina com as amigas dela na casa dos pais destas. E a gente tem o pai idoso do Yago, preso com uma pessoa que ele já conhece, mas não gosta, que é o seu enfermeiro”, explica Iuli ao falar acerca da criação das dinâmicas comportamentais das pessoas que ela criou para seu roteiro.
No destrinchar de suas camadas, o texto de Gerbase permite análises desses aprisionamentos em variadas nuances. O desmoronar daquele relacionamento entre Yago e Giovana que, mesmo em suas diferenças, foi forçado a começar por conta da necessidade de se confinar ; a ideia de uma prisão dentro de uma infância alienada e distante de um mundo anterior que, para aquela criança, possui naquele estado de adaptação sua (única) realidade conhecida; a prisão física dentro de um corpo e mente a ceder para a degeneração de uma doença, com a inserção de uma personagem a perder seu discernimento e capacidades mentais. Em sua história, “A Nuvem Rosa” se torna uma concisa observação do humano como vitrine para diversos ímpetos, bem como para as limitações que contêm tais ímpetos.
“Nesse estudo, eu via muito, também, quais aprisionamentos temos na nossa vida antes do Covid, antes da nuvem rosa, antes deste aprisionamento de fato. Então, eu também quis explorar essas questões. O pai do Yago mostra um aprisionamento do corpo físico. Quando temos uma doença, ficamos limitados e presos a ela. Ou, enfim, o nosso corpo é mortal e a gente tem um limite de liberdades com o que fazer com ele “, pontua a diretora e roteirista.
Em nossas prisões, a adaptação e a recusa àquelas novas realidades parecem travar batalhas entre si. Do mesmo modo, aos poucos, as personagens criadas pela roteirista vão cedendo e se deixando levar por aquele “novo normal”, para usar um termo em voga no definir do que é essa maneira recém-chegada de se comunicar. “Recém-chegada”, inclusive, soa como um termo equivocado para citar esse novo padrão de contato social, à distância, travado apenas diante de telas, áudios, vídeos e palavras escritas. “Nós já estávamos em uma era muito virtual. Porque, às vezes, tem amigos que antes de ter tanto WhatsApp, Facebook e Zoom, a gente talvez já visse mais desse modo do que hoje em dia. Às vezes, falamos tanto e tão constantemente pelo celular com alguns amigos e acabamos vendo-os pouco. Claro, eu estou falando antes da pandemia. Mas houve essa adaptação para o virtual”, compara Iuli.
Em “A Nuvem Rosa”, a questão da perda desse contato, da resistência versus aceitação, é aprofundada, levando sua audiência a não somente penetrar naquela realidade do casal ficcional como, também, perceber-se vivendo dilemas semelhantes. “Tudo vai para o virtual, só que tem coisas que não se sustentam no virtual. E há outras que se sustentam. Eu imagino que para os adolescentes está sendo muito difícil. Imagina quem ia ter o seu primeiro ano na faculdade? Ou ia se formar no colégio, se formar na faculdade? Não vai ter aquele momento de celebração, aquele momento de conhecer as pessoas”, reflete a diretora. As lembranças que criamos durante fases da nossa vida em uma formação inicial, juvenil, são as que nos sustentam por anos a fio quando tormentos mentais podem surgir. Quando perdemos tais encontros, tais experiências, tais sensações geradas a partir da interação, a partir do contato com outros, como podemos nos tornar adultos saudáveis? Observando novas gerações perderem isso, pensar em um futuro menos pessimista se torna tarefa difícil.
É justamente nessa perda de tais momentos, nessa perda de liberdades, bem como em adaptações muitas vezes dolorosas que necessitam ser feitas e que atraem impulsos inertes de fuga, que se baseia “A Nuvem Rosa”. Como frisado anteriormente, a proposta do filme surgiu alguns anos antes de um confinamento real se tornar nosso futuro. Enxergar a nós mesmos dentro daquela realidade sartreana de inferno, poderia ser algo, talvez, impensável. A densidade dessa “nuvem” que nos sufoca é de um peso que contrasta com sua forma aparentemente inofensiva, mas perigosamente subestimada. Vai demorar a se dissipar, infelizmente.
Nessa entrevista ao Scream & Yell, Iuli aprofunda suas impressões acerca desse estudo de personagens, bem como o aspecto premonitório que seu filme, realizado antes de 2020, teve para o nosso atual presente (e futuro). Confira o papo!
Seu filme surge a partir de um estudo de 2017 acerca de personagens em situações de aprisionamento que você aprofundou em sua dissertação de mestrado. Na mesma dissertação, uma versão inicial do roteiro também foi apresentada. Na análise das situações envolvendo Giovana e Yago, poderia falar um pouco sobre esse desenvolvimento da escrita?
Eu queria explorar esses personagens em diferentes situações. Temos um casal que recém se formou. Temos a amiga da Giovana, a Sarah, que, ao contrário, se separou. Ela ficou trancada em casa e o namorado ficou trancado em uma padaria. A gente tem uma menina com as amigas dela. Temos o pai do Yago preso com uma pessoa que ele já conhece e não gosta, mas que é o enfermeiro dele. Então, eu queria ver a trajetória dessas pessoas em diferentes situações. Muitas vezes, pessoas me falaram que aquilo daria uma série de TV, porque se você pegar os coadjuvantes e aprofundar, dá uma série. Tanto que o primeiro tratamento tinha 250 páginas. As pessoas em minha banca leram uma versão de 250 páginas (risos). Dá muito o que pensar e o que falar. E nesse estudo, eu via muito também quais aprisionamentos a gente tem na nossa vida antes do Covid, antes da nuvem rosa, antes desse aprisionamento de fato. Eu também quis explorar essas questões. O pai do Yago mostra um aprisionamento do corpo físico. Quando a gente tem uma doença, ficamos limitados e presos a ela. Ou, enfim, o nosso corpo é mortal. Temos, também, um limite de liberdades com o que fazer com o nosso corpo. Mas com certeza o foco principal foi a trajetória emocional dessas pessoas que estão presas. A Giovana e o Yago. Elas estão há muito tempo juntas. Qual é a trajetória emocional deles? O Yago se adapta melhor e Giovana fica cada vez mais desesperada. Ela não gostaria de estar ali. Do começo ao fim, ela não queria estar com ele, não queria ter uma família, não queria estar nessa situação. Enquanto que ele se adapta, e chega a rezar para a nuvem em uma cena, ela vai, cada vez, se afundando mais.
Neste ponto no qual o personagem reza para a nuvem, você aborda de maneira bem sutil a questão religiosa atrelada àquela situação. Do mesmo modo, quando traz as redes sociais reagindo a tudo aquilo.
Sim. Eu queria deixar sutil, mas que fosse, também, um choque para justamente você indo aos poucos. Quando visse, pensasse: “opa, perai! Acho que ele está rezando para a nuvem”. E depois você vê que o mesmo colar que o Yago tinha em mãos quando rezou para a nuvem, ele já botou no filho. Então, também se estabelece esses dois times: pró-nuvem e contra nuvem dentro da casa. Porque o menino, quando ele cresce, ele está dizendo para a mãe que gosta da nuvem. Ele está mais no time do pai. E ela fica mais isolada ainda. Mas, assim como tem o Yago rezando para a nuvem, tem a YouTuber dizendo: “Ah, é preciso ver o lado bom da nuvem. A gente não tem mais assalto, a gente não tem mais acidente de avião”, umas coisas absurdas que ela fala, como quando diz das selfies que pode tirar. Uma coisa que vira meio uma lavagem cerebral, quase, pois tem uma família celebrando um ano da nuvem rosa com decoração da nuvem rosa. Dá para ver um lado mais macabro, meio tragicômico, que eu quis trazer, também. Acho que o filme tem uns pontos de comédia em alguns momentos.
“O inferno são os outros” é uma frase marcante da peça “Entre Quatro Paredes”, do Jean-Paul Sartre, na qual você se aprofundou na escrita de sua dissertação, e que ecoa, claro, no roteiro de “A Nuvem Rosa”. A tensão entre o casal Giovana e Yago cresce muito por conta do clausura. Você poderia falar sobre essa abordagem em seu roteiro?
O Sartre foi uma boa referência. Porque daí você vê que muitas pessoas viveram isso na vida real, agora. Por mais que você ame o seu companheiro, ou a pessoa com quem você vive, esse convívio ficou muito intenso em 2020. Tanto que houve muitos divórcios. Aumentou não sei quantos por cento a taxa de divórcios. Então, era explorar essa dinâmica. O quanto que a pessoa, por mais legal que seja, por mais boa vontade que ela tenha. A Giovana e o Yago estão em um apartamento grande. Tem dois andares. Mesmo assim, a convivência fica muito difícil. Vira essa tortura de estar com o outro e também se ver no outro. Acho que, também, o outro faz você ver os teus próprios defeitos de maneira mais evidente. Porque, quanto mais a Giovana está contra a nuvem, mais o Yago fica se mantendo positivo. Então, ela fica mais negativa e ele a chama de paranoica. O que essa dinâmica traz de tortura para nós, quase. O “Entre Quatro Paredes” foi uma boa referência.
“A Nuvem Rosa” foi realizado totalmente antes da pandemia, o que reforça esse tom premonitório. Teria alguma coisa que você faria diferente caso tivesse filmado em 2020?
O que eu faria diferente… Eu acho, sinceramente, se esse filme viesse depois de 2020, claro, se eu não tivesse o roteiro escrito, eu acho que eu não o faria porque, justamente, a ideia era fazer uma coisa fora da realidade. Com um “que” de ficção científica. Um dos nervosismos que me deu no começo da pandemia, com o filme já pronto, foi essa impressão de agora todo mundo ia fazer filme de pandemia. E eu pensava: “Eu tenho que lançar esse filme logo porque vão vir vários parecidos”. Por mais que não sejam inspirados no Covid, e os personagens ficam anos trancados e não tem nada de vírus, eu já fiquei achando que iria ter um monte de coisa parecida. Mas acho que o filme permanece único. E ele tem esse aspecto da nuvem rosa, que é diferente. Não tem o mesmo aspecto da pandemia real. Mas as pessoas vão se identificar com os dois. Mas o que eu faria de diferente, eu acho que eu não mudaria muita coisa porque o irônico é que parece que não teve nada no filme que, agora vivendo a quarentena, que você veja e pense: “ah, isso nunca seria feito. As pessoas nunca reagiriam assim”. Então, eu acho que até deu certo essa imaginação desse futuro pós apocalíptico.
Em um filme no qual diversas cenas requerem uma direção com atores infantis, você teve dificuldades? Como foi esse desafio?
Eu já trabalhei muito com crianças em curtas meus. No “Folha em Branco” e no “A Pedra”, a protagonista tem oito anos. Eu fiz uma série para uma canal regional aqui no Sul e que não foi lançada ainda, e que tem muitas crianças (N.E. A série chama-se ”Turma 5B”). Tinha cenas com trinta crianças. Mas sempre entre oito e dez anos. No mínimo sete. Em “A Nuvem Rosa”, o desafio era sempre assim: “ah, a gente tem muitas cenas com essa criança que tem três, quatro anos, que é o Lino já falando, mais crescidinho. Não o Lino de 9 anos que aparece depois”. Então, para esse, foi um… (pausa). Olha, foi uma mistura de sorte, porque o ator é muito bom, muito fofo. (N.E. O ator que interpreta o Lino aos 4 anos é o Gabriel Eringer). Ele estava na brincadeira, era muito solto conosco. Mas a gente, também, se esforçou para virar amigos dele. Fizemos vários ensaios que, para ele, eram brincadeiras. Em um momento, ele tinha que cantar a música da dona aranha que subiu pela parede, então a gente sempre reforçava que essa era a nossa música preferida. (risos). “Vamos cantar a música da aranha? A gente adora cantar essa música”. E aí todo mundo cantava a música da aranha. E fazíamos brincadeiras, também, de repetir o que o outro fala, para que a gente conseguisse umas frases específicas . “Ah, então vamos fazer aquela brincadeira de repetir o que o outro fala. Tu gosta da nuvem?” Aí tinha uma fala que era importante que ele dissesse. Aí um falava, o outro repetia, e o outro repetia. Aí a gente falava: “vamos brincar de fingir que estou chorando. Agora muito feliz. Agora muito triste. Agora bravo”. Então, assim, foi um esforço, mas eu tive muita sorte com essa criança. Ela fez tudo o que a gente precisava e um pouco mais. E eu me apaixonei por ele. Ele era fofo demais.
Sim. E é curioso observar como aquela criança, um pouco mais velha, se torna alguém com uma personalidade tão adulta.
Sim. Tínhamos essa diferença de que era uma criança que não conhece o exterior. Então, você pode ver que o Lino mais velho, ali com oito, nove anos, se porta um pouco como um adulto. Ele não é uma criança muito solta, muito animada, porque, bom, ele só conviveu com adultos. Imagina que é uma criança que nunca foi em uma creche, que nunca foi brincar em um parque. Então, ele tem uma personalidade meio adulta, e além disso ele está com a mãe super depressiva ali naquela idade. Então, ainda são adultos que estão em um momento sério. Um momento que já passou a graça de viver na Nuvem Rosa. Daí então foi que buscamos com o Lino mais velho essa construção. Ele é um pouquinho robotizado. Um pouco mais adulto e menos brincalhão.
Ao assistir ao filme e perceber se tratar de um obra de 100 minutos que se passa toda dentro de um apartamento, é pertinente pensar em como a montagem vai trabalhar aquelas elipses sutis com a passagem do tempo. A nuvem lá fora que é pontuada por uma trilha sonora específica a nos lembrar dela, e o tempo passando lentamente naquela confinamento. Como foram essas decisões na montagem do filme?
A gente até ficou em dúvida, na montagem, se colocaríamos cartelas do tipo: “Um mês de nuvem. Um ano. Três anos”. Mas com a criança, com o crescimento dela, isso nos facilitou muito. E antes, até é um pouco confuso quanto tempo se passou ali, sei lá, nas primeiras dez cenas. Começamos a montagem ainda antes da pandemia. Tínhamos já uns três cortes antes da pandemia, mas fechamos a montagem na pandemia. E a gente viu que o tempo fica confuso no enclausuramento. “Não sei se hoje é sábado, parece que passou dois dias, e se passou uma semana. Ou o tempo parece que está parado, não passa nunca”. Aquela coisa. Então, achamos um problema em ter essa confusão temporal. Quando a comida chega na janela, você pensa: “Bom, a comida chegou antes deles passarem fome”. Levou no máximo um mês até a comida chegar. Mas tivemos essas elipses com a nuvem, teve esses momentos chaves em que ela aparece, só nuvem no céu em diferentes formatos e cores para marcar a transição. E sim, como você viu, temos a trilha da nuvem. Aquela trilha que é uma presença que você sente: “Olha, a nuvem ainda está aí. A nuvem ainda está aí”. Marcando a presença. E às vezes tem a trilha e não tem a nuvem, mas você já entende que ela, inconscientemente, te faz lembrar da nuvem. Nós optamos por essas elipses mais sutis, e eu acho que muita coisa ao longo do filme, a gente prezou pela sutileza. A direção de arte perguntou se queríamos lixo espalhado pela casa, como se fosse virando um caos, e eu falei que não. É um filme que tem uma premissa de ficção científica, mas é um filme de relacionamento. É um drama focado no aspecto psicológico e emocional dos personagens. Sempre optou pelas sutilezas, assim. Você entra no filme e vai vendo que as coisas vão piorando. Que a Giovana vai fazendo coisas que ela não gostaria de fazer. Mas quando você vê, a porcaria está feita. Sutilmente você chega lá.
“A Nuvem Rosa” traz em sua premissa algo que exige de sua audiência a questão da suspensão da descrença. As perguntas vão surgir, mas é preciso manter o foco de que aquele é um filme, como você mesma pontuou, de relacionamentos. No aspecto da ficção científica, houve uma preocupação sua em relação a esses questionamentos que o roteiro traz para quem assiste?
Algumas pessoas que leram o roteiro questionaram: “Será que as pessoa não vão ficar se perguntando como é que a nuvem não entra pela fresta da janela, ou como é que plantaram os alimentos que eles comem?” No começo tem aquela fala da Giovana perguntando por que não entra pelas frestas, então isso já fica estabelecido. E além disso, o que eu quis explicar foi como a comida chega. A escolha era mostrar que ela vem de drone, chega por aquele tubo que tem aquele vácuo que não deixa a nuvem entrar. E eles pegam por ali. E eu só achei necessário explicar isso. Como é que eles não passam fome. Como é que chega a comida. O resto é aquela coisa: “aceite que é um filme surreal e o foco não é esse.” Porque, em muitos filmes de ficção científica, as pessoas ficam tentando entender o que é aquilo, o que está matando, qual a fonte desse problema. No caso de “A Nuvem Rosa”, não. Assim como em “O Anjo Exterminador”, você se pergunta o porque deles estarem presos, quando nem tentam abrir a porta. Você fica assim: “tá, mas por que eles não tentam abrir a porta?” De repente eles se soltam e você não entende muito bem porque. Então, essa foi a ideia. O espectador tem que realmente entrar no clima e não ficar se questionando muitas coisas, só acompanhando os personagens.
O filme aborda de maneira premonitória, também, os aspectos comunicacionais das pessoas que, mesmo antes da pandemia, já se comunicavam muito mais a distância, com aplicativos, telas, do que pessoalmente. A pandemia em 2020 escancarou isso, claro, mas ao ver os personagens buscarem outras formas de satisfação sexual, por exemplo, foi algo bem interessante de se notar. Como foi esse desenvolvimento para você na escrita?
A ideia é que o Yago consegue essa namorada on line, que eles se falam com bastante frequência. Já a Giovana, para mim, como ela está sempre negando essa situação, digo, não negando, mas querendo escapar de alguma forma, seja com um óculos de realidade virtual e de outras maneiras, um dos jeitos que ela não quer se dobrar para a nuvem, não quer entrar no que a nuvem possa fazer, é que ela não tem um namoro virtual. Ela vai é no vizinho, na janela. Ainda é um pouco mais real, mas, claro, ela não tem contato físico. Mas pelo menos é uma pessoa que ela está ali, há alguns metros de distância, e ela vai ter esse relacionamento de brincar, enfim, de ter uma relação sexual pela janela. Isso também é uma diferença importante para os dois. O Yago está assim: “não, eu vou me adaptar, vou lidar com o que tem. Agora é tudo tinder.” E a Giovana busca essa pessoa real nem que seja pela janela. Foi interessante que o Tinder, durante a pandemia, liberou a ferramenta passaporte. O que aconteceu muito foi que as pessoas podiam trocar de país no Tinder, podendo ver pessoas que estavam em outros continentes. Isso aconteceu porque estava todo mundo preso dentro de casa, não iam se ver. Então, que diferença faria falar com uma pessoa daqui ou alguém de outro país? Mas o filme traz isso. Nós já estávamos em uma era muito virtual. Porque, às vezes, tem amigos que antes de ter tanto WhatsApp, Facebook e Zoom, a gente talvez já visse mais desse modo do que hoje em dia. Às vezes, falamos tanto e tão constantemente pelo celular com alguns amigos e acabamos vendo-os pouco. Claro, eu estou falando antes da pandemia. Mas houve essa adaptação para o virtual. Tem uma cena que foi cortada, mas é com o Lino tendo aula on line, algo que também aconteceu na pandemia. Então, tudo assim, o que poderia ser adaptado? E também tem a dificuldade do Yago em continuar com a sua profissão. A Giovana é designer. Ela está bombando, porque todo mundo está precisando de um designer para fazer sites. Enquanto que o Yago que é quiroprata, não tem como trabalhar. Ele precisa tocar em pessoas, ele é bom nisso. Mas ele não acha uma profissão on line, e a Giovana fica sustentando. Tudo vai para o virtual, só que tem coisas que não se sustentam no virtual. E há outras que se sustentam. Eu imagino que para os adolescentes está sendo muito difícil. Imagina quem ia ter o seu primeiro ano na faculdade? Ou ia se formar no colégio, se formar na faculdade? Não vai ter aquele momento de celebração, aquele momento de conhecer as pessoas. Então, imagino que para os adolescentes deva ser uma das faixas etárias mais difíceis nessa pandemia. Os adultos, bom, vamos dizer, a gente já viveu bastante, mas os adolescentes têm aquela energia louca. O Lino é uma criança que não conhece o exterior. Então, como é que essa criança que nunca viu outra criança ao vivo, que não foi em um parque, que não foi na praia, como é que ela vai lidar? Quando a Giovana fala: “Lino, quando a gente sair daqui, eu vou te levar à praia.” E daí ele fala que não quer ir à praia. Ele tem medo desse mundo externo. Ele não sabe como vai reagir, como ele vai se sentir vendo uma onda no mar. Eu acho que o Lino, o personagem, ao invés dele ter esse desejo pelo mundo externo, esse desejo de viajar ou de conhecer lugares, ele tem é medo. Ele está confortável dentro do apartamento. Para ele, faz nove anos que ele conhece aquilo. É o apartamento, é o quarto do pai, é o quarto dele, a TV, os jogos, é esse o universo dele. Eu trabalhei mais esse aspecto do medo do que o do desejo.
Sundance é uma janela fantástica para os filmes. “A Nuvem Rosa” foi o único longa brasileiro selecionado. Uma pergunta um tanto clichê (risos), mas como foi receber essa notícia?
Quando eu soube da seleção, tive um ataque (risos). Eu estava do lado da minha irmã. Eu li no celular o e-mail e eu fiquei assim: “Não, lê pra mim isso. Vê se eu li certo”. Porque eu não estava acreditando que a gente entrou. E ainda assim na competitiva internacional. Então, foi incrível. E está sendo muito boa a resposta. Porque é um festival que atrai mídia, que atrai atenção para o filme, e quanto mais pessoas assistirem, melhor. Agora, em Sundance, só quem estiver nos Estados Unidos vai poder ver, porque eles têm o território bloqueado, e mesmo sendo na internet, vai estar aberto só para lá. Os festivais estão fazendo muito assim para ter a estreia em cada local. Estreia na Europa. Estreia na Ásia. Porque senão, não fica tão atraente para os outros festivais colocarem filmes que todo mundo já viu. Mas por ter o selo do festival, por ter a atenção que Sundance traz, espero que para os lançamentos depois no Brasil e nos outros países, que isso traga o interesse dos espectadores para o filme. E está sendo muito legal. Estou contando os dias para poder ver os filmes dos outros diretores que estão concorrendo. Estou muito curiosa.
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Gostaria de abordar com você a ideia do final em aberto. Como foi desenvolvida? Houve outras opções para aquele momento envolvendo a personagem da Giovana?
A ideia de como está agora nós estudamos na montagem. Buscamos o momento do corte para ficar em aberto o que aconteceu com a Giovana. Então, para mim, é um final aberto. Que a gente não vê. Acabou de contar os 10 segundos e termina. Logo que ela acaba de contar. Ela poderia morrer um segundo depois ou não. Nós não sabemos e, para mim, está aberto mesmo. E a ideia, para mim, não é a da Giovana se matar. Para mim, ela vê que o jeito que ela está, que a vida que ela está levando no apartamento, não dá. Ela não aguenta mais. Ela tem um dia sem o óculos virtual ali. O filho quebra o óculos para obrigá-la a ver a vida dela ali no apartamento. Quando percebe, um dia já basta para ela ver que o Yago está adaptado, o filho dela está adaptado, mas ela não vai se adaptar. Então, para mim, o jeito como ela encara a nuvem, ali, é um enfrentamento. A nuvem é um inimigo, ela vai enfrentar esse inimigo, e ver o que acontece. Claro, pode ser que ela morra, pode ser que não. Ela está disposta a isso. Mas ela sabe que dentro do apartamento, ela não vai ficar mais. Eu vejo esse final como um enfrentamento. Eu tinha versões mais pessimistas em que você via que ela morria e depois até eles achavam o corpo dela, mas eu achei melhor deixar em aberto esse final.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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