entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
A música fez sempre parte do percurso de Selma Uamusse. Interessada desde a infância por rádio, discos e as fitas k7 que escutava em casa (a televisão chegaria mais tarde), Selma seria também influenciada pelo pai (que fazia parte de um grupo de canto e dança) e pela mãe (foi diretora de um museu de arte). Como moçambicana, absorveu igualmente elementos musicais ligados às tradições do seu país. Em 1999, aos 18 anos, após receber diversos elogios à sua voz, Selma Uamusse aceitou o convite para integrar um grupo coral de gospel lisboeta, que lhe proporcionou algumas aparições na televisão.
Sobre a sua prática como cantora de gospel, Selma destaca vários aspectos positivos nessa experiência: “Aprendi muito, porque além da espiritualidade, existe um lado de técnica vocal que é bastante completo. Havia ali uma grande riqueza que depois me transportou para outros universos musicais”, conta. Posteriormente, integrou a banda de rock WrayGunn (de Paulo Furtado aka The Legendary Tigerman), de Coimbra, realizando vários shows e tocando na França com regularidade. A visibilidade do projeto possibilitou o estabelecimento de parcerias com Buraka Som Sistema, Cacique ’97, Rita Redshoes e Rodrigo Leão, entre outros. A vontade de desenvolver os seus conhecimentos musicais levou-a a estudar na escola do Hot Clube de Portugal, em Lisboa, e em seguida formou diversos agrupamentos que consolidaram a sua proposta artística e incentivaram-na a iniciar uma carreira solo.
O álbum de estreia, “Mati” (2018), embora indiciasse uma procura de identidade musical, já espelhava a qualidade da artista. A voz ora expressiva ora criativa de Selma e o valor das canções, como o afro gospel “Funkier Than A Mosquito´s Tweeter”, bem como o bom cruzamento de sonoridades apresentado no disco, mostravam que ela poderia atingir um grau mais elevado, futuramente. “A minha música tem um ponto de partida moçambicano, mas tenta chegar a mais lugares e reúne várias camadas. Eu utilizo a guitarra elétrica como se estivesse numa banda de rock, gosto de introduzir os coros que vêm da minha escola do gospel e incluo diversos registros vocais ligados ao jazz. Ao nível do palco e da expressão uso elementos que aprendi no afrobeat”, explica.
“Liwoningo” (2020), o disco mais recente de Selma Uamusse (leia resenha no Scream & Yell), começou a ser gravado em Julho de 2018 numa residência artística com o produtor brasileiro Guilherme Kastrup (que produziu o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, de Elza Soares, entre outros), na qual os músicos gravaram todos ao mesmo tempo. O trabalho seria desenvolvido ao longo de 2019 e foi concluído, com as gravações das vozes, em finais de novembro daquele ano. Globalmente, o disco revela maior amplitude sonora e Selma exibe uma confiança interpretativa que se manifesta em faixas como “No Guns” ou “Mbilo”. Abordando o processo de gravação, Selma Uamusse recorda os objetivos traçados com Kastrup e o ambiente agradável que rodeou as sessões. “Eu e o Guilherme queríamos alcançar um patamar novo com o ‘Liwoningo’. Sinto que vivi um sonho meio tropicalista e enquanto fizemos o álbum apareceram as maiores figuras da música para escutar as canções, tocar, cantar ou dar sugestões e isso é o sonho de qualquer músico”.
Essa diversidade de músicos participantes é outra das características de “Liwoningo”, incluindo os brasileiros Bixiga 70, um quarteto de cordas, o moçambicano Chenny Wa Gune e o corista Mbye Ebrima, da Gâmbia, entre outros. O processo de seleção das colaborações, feito em concordância com Guilherme Kastrup, elevou a música e garantiu um espectro sonoro adequado às canções. Embora estejam em discos diferentes, os temas “Malian” e “Hoyo Hoyo” aproximam-se do experimentalismo, da viagem sonora e são representativas das preferências de Selma Uamusse. “Esses conceitos agradam-me muito. Eu não sou uma compositora de refrãos, das canções e repetições, mas também o faço. Gosto de coisas meio desrepetidas que começam num lugar e acabam noutro. Se eu pudesse compunha as músicas todas assim”, revela.
Para além de cantar, Selma também é atriz e tem recebido vários convites para participar em peças de teatro, normalmente associadas à música, mas sente mais prazer na interpretação de canções do que na representação teatral. “Vejo-me a dinamizar programas culturais porque agrada-me conversar e debater, mas o meu palco é mesmo a música”, explica. Relativamente aos objetivos futuros, a cantora salienta a sua proximidade com a consciência climática, uma plataforma para promover a justiça social e pretende expandir o seu leque de colaborações. “Seria ótimo que a minha música nos próximos anos me permitisse trabalhar numa rede humanitária. Acredito que a conservação do planeta irá trazer uma mudança global e positiva na questão das igualdades sociais, nas oportunidades para as mulheres e para quem tenha menos recursos. Além disso, tenciono trabalhar com músicos internacionais, que tenham a mesma vontade e desígnio”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Selma Uamusse conversou com o Scream & Yell. Confira:
A boa receptividade do seu disco de estreia, “Mati” (2018), deu-lhe a possibilidade de se apresentar em quatro continentes e realizar muitos shows. O que recorda de mais marcante nesse período?
O poder transformador e de aproximação das pessoas à música tornou-se mais evidente. Canto em línguas de Moçambique, que a maior parte do público não conhece, mas faço questão de explicar do que se trata a canção e tocou-me imenso a sensibilização do público, mesmo que a atuação fosse no Brasil, Estados Unidos, na Polónia ou na República Tcheca. A música é realmente a linguagem universal e as minhas canções têm um caráter espiritual, pela forma como eu me exprimo e pelas próprias letras. Sinto que existe uma camada acima da língua que toca o coração da audiência. Enquanto espectadora de concertos tive sempre esse sentimento, independentemente das músicas serem cantadas em polaco ou em outro idioma. Como artista, foi algo que se tornou evidente e palpável. Isso fez-me perceber que a música pode transformar a sociedade, pelo menos no momento em que as coisas estão acontecendo, e influir na forma de ser e estar.
O seu novo álbum, “Liwoningo”, engloba o espírito de fusão sonora e a africanidade que caracteriza a sua música. No entanto, a ousadia vocal e a forma confiante como você interpretou as canções sugerem uma renovação artística. Concorda?
Concordo. Foi um trabalho feito com o Guilherme Kastrup, que é um produtor maravilhoso e uma pessoa bastante querida. Ele desafiou-me muito a encontrar uma única voz. No álbum “Mati” (2018) notam-se mais as diferenças vocais em determinados pontos e no “Liwoningo” (2020) existe maior segurança interpretativa. Isso não significa que saiba quem sou, porque estamos sempre a recriar-nos. De qualquer modo, eu já estava com menos receios do que no disco anterior, em que as pessoas perguntavam: “O que é que ela vai fazer?”. Neste trabalho, tive um apoio fantástico do Guilherme para encontrar uma forma tímbrica que exprimisse essa confiança. Trabalhamos durante um ano (pelo menos) e tive de fazer várias gravações para conseguir a melhor voz. Durante bastante tempo cantei e interpretei canções de outros artistas. Foi o caso de músicas do Rodrigo Leão que eu estreei e reproduzi. Também interpretei o repertório da Nina Simone e no WrayGunn havia um modo de fazer as coisas muito ligado ao soul. Isso estava muito incutido em mim e se sentisse que a música ia para um lado ou outro a minha voz também tomava esse caminho. Agora passou a ser o timbre a determinar as canções, não o contrário, e eu sinto maior conforto quando escuto a minha voz.
Globalmente, o disco aborda a paz, bem como a esperança e a espiritualidade. Estes conceitos sugerem uma mensagem universal. Foi com essa disposição que compôs os temas?
Sim. As músicas começaram a ser compostas em 2018 ou se calhar um pouco antes. Mas os temas estão associados a algo que eu via como sintomático da vida e das pessoas (nas quais eu me incluo), pela indiferença perante a dor alheia, por causa dos computadores, da televisão, etc. Habituamo-nos, facilmente, a ver o terrorismo, a violência e as mortes em nossas casas. Estas coisas banalizaram-se sem nos incomodarmos nem fazermos alguma coisa relativamente a isso. Quando vemos os raios de luz que emanam de mim (na capa do “Liwoningo”), não significa que eu seja iluminada (risos). Mas, relaciona-se com o potencial que cada um de nós tem e do poder, através da luz, que possuímos para transbordar e iluminar lugares de escuridão. No meu entender a temática estava associada ao que eu via no mundo: a falta de preocupação com o ambiente, a minha experiência pessoal sobre as cheias em Moçambique e as guerras. Costumo falar com amigos que não conhecem os vizinhos, sejam eles de frente, cima ou de baixo do prédio e essa falta de empatia mexe muito comigo. De que vale ser espiritual em benefício próprio? O bem-estar só faz sentido se for irradiado para mais pessoas e essa ideia concreta e prática está presente no “Liwoningo”. Na faixa “No Guns”, por exemplo, eu aponto o dedo aos governantes, presidentes e a quem dirige o mundo. Por um lado, eu apelo à consciência dos líderes. Por outro lado, eu, você e todas as outras pessoas estão incluídas, porque nós também temos deveres cívicos quando votamos ou lemos os programas eleitorais. Somos parte de um movimento de responsabilidade social.
Diversos músicos contam que se sentiram mais ativos e criativos durante o confinamento. Inclui-se nesse grupo?
Sinto-me obrigada a ser mais ativa e criativa do que numa situação normal. Neste momento, tenho cinco canções que preciso acabar e algumas propostas que me pediram e ainda não pude avançar. No entanto, já realizei várias coisas, inclusive com meu marido (fizemos música que nunca tínhamos feito juntos). Tem sido um exercício para colmatar toda esta incerteza sobre o que vai acontecer. Acho que é tempo de produzir. Pode haver vontade de hibernar e só voltar quando isto tudo terminar mas, a partir do momento em que a pessoa percebe que não resulta, devemos nos adaptar e acabamos por sentir uma urgência para fazer várias coisas e compor. Este ano, porque normalmente estou ocupada com os shows e viagens, escrevi e compus muito mais do que em qualquer ano da minha vida. Por isso, acabou por ser um período rentável em termos de composições, mas também de colaborações. Eu concretizei algumas parcerias com os Caramelows (Brasil), os They Must Be Crazy (uma banda de afrobeat portuguesa) e o Moullinex (Portugal). Tenho igualmente uma colaboração com o músico Júlio Pereira, que irá sair em breve, fiz uma parceria com o saxofonista João Cabrita e há mais trabalhos que serão editados dentro de pouco tempo. Está sendo um ano muito fértil ao nível de criações e escrita de canções.
A canção “Pote de Cores”, em colaboração com os brasileiros Caramelows alcançou recentemente a hot list da revista brasileira Rolling Stone e esta publicação classificou a sua voz como “um espetáculo”. Considera que estes fatos justificam um investimento maior, da sua parte, no Brasil?
Estou investindo no Brasil desde 2017. Tenho um grande desejo de atuar mais no país. Infelizmente, a pandemia interrompeu o percurso de crescimento que eu tenho vindo a fazer no mercado brasileiro. É um segmento muito rico, mas torna-se complicado entrar no circuito. No entanto, penso que existem vantagens para além dessa parte da apreciação de voz, porque o Brasil tem cantores e cantoras maravilhosas. Penso que não será por aí que os brasileiros me irão querer. No entanto, há alguma mística pelo fato de eu ser negra, mas africana, de ter um lugar na diáspora europeia, exibir um lado de fusão e conciliar as tradições com a urbanidade. Por estas razões, sinto que a espiritualidade e o ativismo, que estão presentes na minha música, e a forma como me exprimo têm cativado o povo brasileiro. Para além disso, a vantagem do elemento feminino e de ser uma mulher negra, que é algo importante no contexto brasileiro, criam uma representatividade importante no momento em que estamos vivendo. Fico feliz com o elogio da Rolling Stone, mas trabalhar no Brasil está mais relacionado com a minha história e a forma como me exprimo, do que com o fato de eu cantar bem ou mal. Os meus valores, a mensagem e a imagem são os aspetos mais importantes nesse trajeto.
Gostaria de deixar uma mensagem para os leitores do Scream & Yell?
Agradeço a você e ao Scream & Yell por reconhecerem a validade do meu trabalho e gostaria que escutassem a minha música com interesse, os ouvidos abertos e que o “Liwoningo” (significa “luz” em chope, uma língua de Moçambique), possa tocar os corações das pessoas, mas que elas não retenham isso para si mesmas e façam a luz brilhar em seu redor.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Luís S. Tavares.
Leia também:
– Leia no Scream & Yell mais de 100 reportagens sobre a nova música portuguesa