entrevista por Leonardo Vinhas
Desde 2009 o Acorazado Potemkin vem entregando álbuns onde cada canção soa como trilha sonora para uma determinada ideia. São criações muito particulares dentro da estética direta e nada banal que a banda escolheu, complexas o bastante para não permitir associação com nenhuma cena ou “turma”, e assimiláveis e enérgicas o suficiente para se enquadrarem, sem drama, no que chamamos de rock.
Juan Pablo Fernández (voz e guitarra), Luciano “Lulo” Esain (bateria) e Federico Ghazarossian (baixo) já tinham uma trajetória digna de nota nas fileiras da música argentina. Fernández vinha de quase 15 anos com a banda cult Pequeña Orquesta Reincidentes enquanto Esain vinha de passagens pelo igualmente cultuado projeto Flopa-Manza-Minimal e pela emblemática agremiação rockabilly Motorama, além de formar parte, até hoje, do quarteto indie Valle de Muñecas e da Delta Jazz Band. Já Ghazarossian vinha de um universo mais amplo, que lhe permitiu circular do tango ao pós-punk (às vezes juntando as duas coisas) em grupos como Me Darás Mil Hijos, Los Visitantes, Los Crayones e Don Cornelio.
Lançaram quatro álbuns em seus 11 anos de trajetória: “Mugre” (2011), “Remolino” (2014), “Labios del Río” (2017) e “Piel” (2019), os três últimos produzidos por Mariano Esain, irmão de Lulo e seu parceiro no Valle de Muñecas. Os discos parecem seguir uma progressão natural de um som que busca a síntese de cada canção via um processo que acontece não necessariamente pelo minimalismo, mas pela depuração de tudo que não é essencial. Como se a busca fosse chegar à versão definitiva de cada tema.
Dito dessa forma, parece algo muito etéreo, mas não é. Pense em quantas bandas você conhece – bandas boas, inclusive – cujos temas se prestam a muitas recriações, a ganhar cadências ou versões diferentes com relativa facilidade. No caso do Acorazado Potemkin, simplesmente não dá. Tentar desconstruir qualquer canção da banda, mesmo as mais ligeiras, é tão descabido quanto, digamos, pegar a trilha sonora de “Apocalypse Now” e usá-la para sonorizar uma daquelas comédias-padrão do Adam Sandler.
“Piel” é um passo adiante nessa construção, um álbum mais denso, de velocidade reduzida, mas com uma dinâmica mais ampla. É, também, um disco que só foi apresentado ao vivo uma única vez, por conta da pandemia do coronavírus. Se tudo correr como planejado, terá sua segunda execução nos palcos em novembro, em uma live transmitida a partir de Niceto, uma das mais resilientes casas de shows da noite de Buenos Aires.
Numa noite de quarta-feira bem no meio de setembro, Juan Pablo, Fede e Lulo conversaram, por videoconferência, pelo Scream & Yell. A conversa repassou a trajetória da banda, a importância do palco para a existência de sua música, o processo compositivo e como decidiram fazer uma versão de uma composição de Adriana Calcanhotto (!).
Vocês viveram um momento de grande impacto na música argentina, que foi o choque pós-Cromañon. Era um período no qual muitos clubes fecharam e organizar shows era dificílimo. E hoje estão passando por um momento em que simplesmente não há como tocar para o público. Guardadas as devidas proporções, vocês veem semelhanças entre os desafios de ambos os momentos?
Fede Ghazarossian: O pós-Cromañon não me parecia tão esquisito porque comecei a tocar tango bem nessa época, ou seja, estava tocando música acústica em lugares como centros culturais ou nas ruas. Eram locais para 50 pessoas, então não posso dizer que vivi uma dificuldade nessa época. Mas não dá para comparar com hoje: já são seis meses sem tocar, e sem perspectiva de voltar a fazê-lo a não ser nesses shows por streaming ou em drive-ins, o que não cogito fazer. Que loucura que é isso de 2020, um ano de não poder se abraçar, não ter contato de pele!
Lulo Esain: Hoje é como em uma guerra: você coloca sua vida em standby por alguns anos. Estamos todos esperando em uma espécie de “enquanto isso” gigantesco e temos que fazer coisas para suportar esse “enquanto isso”. Nunca fiquei tanto tempo sem tocar bateria. Em algum momento a música ao vivo vai voltar e vai vir algo diferente, como sempre acontece depois de crises grandes. Mas em 2006 foi algo bem diferente de hoje. Era outra situação.
E diante disso, o que está no futuro de curto prazo para o Acorazado Potemkin? Afinal, vocês são uma banda para a qual o palco é um espaço fundamental. Por outro lado, vocês ainda estão trabalhando “Piel”, lançando vídeos para as canções do disco…
(Há um instante de silêncio e hesitação, no qual um integrante procura na tela alguma cumplicidade entre os demais)
Fede: Eu não sei. Estamos esperando e vendo no que vai dar o dia a dia. Eu, pessoalmente, acho que se isso continuar por muito mais tempo, vou querer sentar para compor, porque a única coisa que pode fluir nesse momento é a música. É isso: acho que em algum momento vai bater um “pico” de composição e talvez tentemos fazer algo.
Lulo: Eu concordo. Tocamos uma única vez esse disco, e felizmente foi no Niceto. Tocaremos novamente em novembro, vai ser a segunda apresentação do disco – só que em uma live sem público, claro. Esses vídeos que estamos lançando eram para acompanhar os shows, em projeções. Agora estamos mudando o uso deles.
Música não precisa ser algo de turma, de cenas, mas admito que me intriga bastante ouvir a banda e perceber o que o som do Acorazado Potemkin é tão característico que não dá para associar com nada do que está estabelecido na música argentina.
Juan Pablo Fernández: Foi muito bom ouvir isso (risos) Creio que existe uma identidade que se constrói disco a disco, que é mais que simplesmente um estilo. Nós três somos bem curiosos e viemos de ambientes musicais bem distintos, tocando em projetos bem diferentes, e para conciliar isso usamos uma estrutura cada vez mais aberta [para compor]. Por outro lado, somos um trio, e existe a busca por fazer o máximo com uma formação mais enxuta. O resultado não é um clichê, não soa como o som do Río Plata (nota: mal comparado, o equivalente argentino para nossa MPB), nem como indie, nem como coisas mais tangueras.
E se vocês pudessem imaginar um festival dos sonhos, com quem vocês gostariam de estar? Quem vocês veriam ou como pares, ou como gente com quem vocês poderiam se relacionar musicalmente?
Juan Pablo: Nick Cave, Leonard Cohen.
Fede (rindo): O Cohen está morto! (risos)
Tá valendo! (risos)
Juan Pablo (sério): É que eu gostaria de tocar com alguém com quem eu pudesse aprender. Poderia ser um grupo pequeno que está começando ou um velho clássico. Poderia ser o Flaming Lips.
Lulo: Para tocar dentro de bolhas? (risos)
Juan: Isso! Assim eu aprendo! (risos)
Fede: Estou com o Juan. Eu quero estar ao lado de gente com quem posso aprender, e que tenha a ver com o que faço. Posso tocar com uma sinfônica ao meu lado… tocar Villa Lobos!
Lulo: Ou talvez… (cantarola a Marcha Imperial de “Star Wars”)
Juan Pablo: Eu escuto muito Tinariwen e Max Riechter e adoraria tocar com eles, não porque tenho como aportar algo ao que eles fazem ou porque os vejo como semelhantes, mas porque tenho o que aprender deles. E no caso do Nick Cave, abriríamos para ele para economizar o dinheiro dos ingressos (risos).
Lulo: Eu gostaria de tocar com o Neil Young.
“Piel” tem uma densidade que os outros álbuns não tinham. Apesar de ter algumas canções bem diretas, como “A La Encandilada” ou “Pank”, ele traz o baixo desempenhando um papel diferente, a guitarra soa mais grave, há outros caminhos harmônicos. É difícil encontrar uma referência para o que está no disco, foi um aprofundamento em elementos que eram mais sutis nos álbuns anteriores. O que provocou essa mudança?
Fede: Eu vejo “Piel” como um disco muito rápido. Não na velocidade das canções, mas da feitura mesmo, porque foi feito muito rapidamente. Ensaiamos três ou quatro meses como loucos e entramos para gravar. Mas de fato, os outros três são mais ligeiros musicalmente, e fico feliz de termos conseguido mudar, porque o mais difícil como trio é encontrar essa dinâmica de não se repetir cada disco e conseguir encontrar coisas novas.
Lulo: Está bom que te custe encontrar um parentesco ou uma referência direta para o som. Porque não somos paraquedistas. Eu e Juan Pablo escutamos muita música daqui e de fora, mas não é como se procurássemos referências conscientes em meio a tudo que ouvimos. O que acontece nesse disco é uma busca mais consciente por outros espaços sonoros. Nos três anteriores existia uma interpretação do Manza (nota: apelido pelo qual Mariano Esain é conhecido) sobre o que poderia ser feito em termos de sonoridade, e nesse tivemos uma ideia mais própria de como cada um queria fazer seu instrumento soar.
A turnê de “Labios del Rio” foi bem grande e passou por outros países. Ter tocado para públicos novos pode ter feito vocês repensarem a própria música?
Juan Pablo: Pode ser. Nunca tinha pensado nisso, mas vendo agora, me parece que é algo que realmente mudou nossa forma de trabalhar. Quando você começa a trabalhar muito na estrutura de show para que seja, entre aspas, mais profissional, você começa a pensar mais sobre as etapas da composição, sobre o que acontece da porta pra dentro na sala de ensaio. Acho que esse vai ser o desafio quando voltarmos a nos encontrar. Potemkin sempre teve a ver com trabalho em grupo, e agora não estamos compondo juntos. Então creio que o próximo momento vai ser de tocar e se conectar. Não que existam jams e improvisos, não compomos assim. Mas ninguém vem com uma ideia já fechada. Às vezes a gente começa com uma célula rítmica e a partir dela trabalhamos até achar o que queremos fazer.
Como se fosse encontrar a essência compositiva da canção. Uma trilha sonora para uma ideia específica, que só pode ser executada daquela forma.
Juan Pablo: Isso mesmo! É você quem está dizendo, mas pode dizer que fomos nós, porque gostei disso. (risos)
Lulo: Tinha uma época em que o Fede dizia que nossas canções eram como bolhas fechadas em si. É uma definição da qual sempre gostamos, mas vamos nos apropriar dessa da trilha sonora para uma ideia (risos).
Todos vocês tocam em muitos outros projetos. Ainda assim, o Potemkin parece ocupar um espaço especial na atividade musical de vocês. Ele é a prioridade de todos, musicalmente falando?
Juan Pablo: No meu caso, sim. Sinto que é o meu projeto e que é o lugar onde coloco as coisas que estou pensando, e que tem essa personalidade que se forma coletivamente. Se algum dia tenho uma ideia meio experimental ou meio esquisita, não acho que vou levar a banda nessa direção. Nós não somos músicos de acompanhamento, somos de intervenção, de composição. Geramos nosso próprio arranjo, nossa própria proposta. Eu posso dizer que quero um baixo assim ou uma bateria assado, mas quando entramos na sala de ensaio e vamos tocar essa ideia, tudo muda totalmente. Existe muito respeito e muita generosidade, existe amor e carinho entre os companheiros. Quando isso acontece, qualquer ideia fica melhor. E na verdade, as melhores ideias são as que chegam mais abertas para criação pelos três.
Fede: Eu trabalho como músico, toco com outras bandas e toco tango, toco com bandas que misturam tango com outros gêneros. Isso é meu ganha-pão, mas o Potemkin é uma questão pessoal, é como um casamento: trabalhamos em três de uma maneira muito próxima. Todos temos uma fome individual de buscar o que não é autorrepetição, jogamos coisas diferentes e pessoais no processo criativo, e isso só é possível porque, como disse o Juan Pablo, existe amor no caminho. Estamos sempre gerando aquilo que é o máximo possível para nós, que nos faz sair dos nossos lugares cômodos, das nossas zonas de conforto. Acho que é por isso que não nos veem como uma banda tipicamente argentina.
Lulo: Como músico de várias bandas simultâneas que chegou a ter três projetos principais, precisei me equilibrar. O que fiz foi não guardar nada: “ah, isso é para o Motorama, isso é para o Valle de Muñecas, isso é para o Acorazado Potemkin…” Jamais faço isso. O meu tocar está a serviço da música que estou fazendo no momento. E nesse momento, o Potemkin é meu grupo principal, porque os integrantes do Motorama se dispersaram e o Manza (que é frontman do Valle de Muñecas) está mais dedicado ao projeto solo dele. Mas [tocar com o Acorazado Potemkin] é tipo um fogo que já estava aceso, e se reaqueceu quando nos aproximamos. Não é difícil dizer que é nosso projeto mais afetivo.
Já que estamos falando bastante do Manza, acho que vale perguntar: pelo fato de ele ter tido um papel mais decisivo na sonoridade dos discos e ser um colaborador frequente, vocês o diriam que – no melhor clichê roqueiro – ele é quase um quarto integrante da banda?
Juan Pablo: Não sei se ele é o quarto integrante, porque a composição vem antes da sonoridade e ele não participa da composição. O que ele faz conosco é traduzir as ideias de forma que consigamos plasmá-las, e ele opina nas letras, às vezes. Mas cada vez mais temos mais confiança para falar com ele, para ser mais assertivos no que queremos. Por outro lado, o Potemkin é uma célula com várias pessoas trabalhando, trazemos os músicos convidados para essas células e eles se somam às nossas entregas. Então existem muitos “quartos integrantes” nessa hora.
Lulo: Cada disco que fizemos com ele teve um approach diferente, ele sabia entender nossas aspirações e conduzir tanto uma gravação no Ion (nota: célebre estúdio de Buenos Aires) quanto uma gravação com todos tocando juntos em uma única sala. São diferentes maneiras de ir chegando ao que queremos. Ele nos ajuda não com o que dizer, mas com como dizê-lo.
Para encerrar, queria saber como vocês chegaram à ideia de fazer uma versão de “Uns Versos”, da Adriana Calcanhotto.
Juan Pablo: Veio por nossa conta. Em geral, algum de nós propõe um cover, e aí não pensamos muitos, vamos e fazemos. Mas esse decidimos gravar. Eu escutava muito o disco “Público”, da Calcanhotto, em dado momento da minha vida – um momento bem triste, como você pode imaginar. Eu estava deprê, chorava muito, buá (os outros riem). Para a versão, fizemos um exercício de manter o tempo e a melodia tais como eram, mas todo o resto era o som do Potemkin: com volume, com delay, potência. Para mim, foi um importante fechamento de uma etapa pessoal e também trouxe o desafio de cantar uma música escrita por uma mulher. Eu diria que também envolveu o desafio de nos apropriarmos de um estilo de música muito diferente do nosso, mas pensando bem, vejo que ela (Adriana Calcanhotto) tem uma dívida muito grande com a música gaúcha. Não com a música caipira, mas tem muito mais a ver com a gente do que com a música que se faz no Rio de Janeiro, por exemplo.
Fede: Eu vejo a Calcanhotto como mais portenha e mais moderna em sua musicalidade, se for comparar com outros nomes da música brasileira. Mas não sou o maior conhecedor do que se faz no Brasil, escutei coisas pontuais de música brasileira, como Baden Powell, Milton, Egberto Gismonti – quase tudo erudito, se você for ver.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.