por Marcelo Costa
“Sem desejo, a maioria dos problemas do mundo seriam resolvidos… e o mundo seria um lugar miserável para se viver”, diz a primeira frase do release de “Random Desire” (2020), primeiro disco solo de Greg Dulli, a voz, os berros, as letras e a alma do The Afghan Whigs e do Twilight Singers (descontado “Amber Highlights”, uma coletânea de sobras do Singers que ele lançou em 2005). Sozinho após um novo hiato dos Whigs (que deve voltar com disco novo em 2021), Greg Dulli gravou voz, baixo, guitarra, bateria, mellotron, piano, percussão e vibrafone enquanto alguns amigos apareciam para dar um colorido nos arranjos: Jon Skibic (Twilight Singers / Afghan Whigs) toca guitarra em 8 das 10 faixas; o baterista Jon Theodore (QOTSA) marca presença em duas; o indiano Avtar Khalsa vocaliza uma, e por ai vai.
Muitos artistas alegam que saem em carreira solo porque o som que estão buscando não cabe na prisão sonora que virou sua própria banda, alegação que quase sempre soa uma meia verdade, mas que não funciona para Greg Dulli, porque tudo que se ouve em “Random Desire” (até o trip hop “Lockless”) foi abordado de alguma maneira pelo artista nos mais de 15 discos que gravou com os Whigs, os Singers e, ainda, o Gutter Twins, projeto seu com o não menos atormentado Mark Lanegan. O que diferencia “Random Desire” dos trabalhos anteriores de Greg Dulli é a sensação marota de que ele está cantando, mais uma vez, sobre corações despedaçados… mas agora com um sorriso no rosto de quem aprendeu a assimilar a dor. E rir dela.
Não foi uma trajetória das mais fáceis. Após se autoproduzir prensando 2 mil cópias em vinil (numa época em que se buscava quem vendesse 2 milhões) de um surpreendente álbum de estreia, “Big Top Halloween” (1988), os Afghan Whigs foram chamados e domados pela Sub Pop, que lançou seu único disco que se aproxima de algo que possa ser chamado de grunge, “Up in It” (1990) – ao ser catapultada como a capital do rock no mundo no início dos anos 90, tudo que era de Seattle e da Sub Pop era “vendido” como grunge. Em “Congregation” (1992), ainda na Sub Pop, a banda já coloca as asinhas de fora buscando chocar rock barulhento com soul e um vocal dolorido que parece saído de um corpo crucificado.
Todo mundo que tivesse uma banda no começo dos anos 90 nos EUA com uma micro chance de virar sucesso assinou contrato com uma grande gravadora, e a Elektra Records, que menos de dois anos antes tinha lançado o “Black Album”, do Metallica (atualmente com 16 milhões de cópias vendidas), decidiu apostar no Afghan Whigs: o amado “Gentlemen” (1993), a obra prima da banda, um disco sobre infidelidade, arrogância e autoflagelação balizada por rock estridente e soul, nunca entrou nas paradas; o estupendo “Black Love” (1996) começou com uma trilha para um filme que Dulli queria fazer – e não fez – e soa ainda mais radical que o anterior, e fracassou ainda mais; dispensados pela Elektra e abraçados pela Columbia, o grupo tentou soar mais pop no belo “1965” (1998), o que melhor equilibra soul e guitarradas, e que enfim colocou o Afghan Whigs na Hot 200 da Billboard, mais precisamente na posição 176…
Enquanto se tratava contra depressão, Greg Dulli estreou seu novo projeto, o Twilight Singers, em 2000, com o groove eletrônico de “Twilight as Played by The Twilight Singers” (2000) e decidiu colocar um ponto final na carreira dos Whigs, que anunciou seu fim em 2001. Com os Singers, e após abandonar a fase eletrônica, Dulli se dedicou ao que sabe fazer melhor: cantar (e gritar) sobre perdedores, personagens de coração de pedra condenados a sofrer por algo que nem eles mesmos entendem. A partir de 2003, quando o Twilight Singers vira uma banda de rock’n’soul, discos como “Blackberry Belle” (2003) e “Powder Burns” (2006) se tornam obrigatórios para corações desesperados em busca de algo que os permitam olhar em um espelho para perceber que não estão sozinhos no mundo.
Após uma rápida reunião em 2006 para gravar duas músicas para a coletânea “Unbreakable”, o Afghan Whigs se juntou em 2011 e voltou para a estrada. Na sequencia vieram os álbuns “Do to the Beast” (2014), que bateu na posição 32 do ranking de vendas da Billboard (a melhor posição de um disco do Whigs), e “In Spades” (2017), dois registros mais rock, menos soul, mas, ainda assim, muito bons. Embalado por um novo hiato de sua banda mais famosa iniciado em 2018 (após o baterista Patrick Keeler ser recrutado pelos Raconteurs, o baixista co-fundador John Curley precisar lidar com a mudança de seu estúdio após 25 anos no mesmo lugar, e o recém admitido guitarrista Dave Rosser perder a batalha para um câncer), Greg Dulli entrega ao público “Random Desire”, mais um disco dolorosamente marcado pela dor, pelo desejo e pelo amor.
Lidar com as artimanhas do desejo quando se tem menos de 20 anos pode atormentar a vida de qualquer um, afinal, na adolescência, a dor parece infinita, interminável e aparentemente absolutamente impossível de suportar, o que, claro, na grandessíssima maioria das vezes é um tremendo exagero (que funciona de maneira maravilhosa para a arte) que rende embates intermináveis, dramas e memórias que sustentam fantasmas que não nos abandonam porque necessitam de nossas lágrimas para se embriagarem, enquanto nós necessitamos deles para não perdemos a conexão com o sofrimento (que a gente acredita ser) real e verdadeiro. Essa sensação de autoflagelação moveu (e move) Greg Dulli por três décadas, e só o tempo ensina a perceber quando um fantasma está falando a verdade ou apenas blefando.
Aos 55 anos, Greg Dulli abre “Random Desire” cantando, no primeiro verso, “desolação, venha e pegue”, sobre uma linha de baixo ágil que explodirá em guitarradas contagiantes alguns segundos depois. O clima alegre da gospel “Pantomima” traveste Greg Dulli, com a voz impecável, de pierrot no carnaval. Ele não se arrepende do coração partido, pede para que ela não se esqueça de que ele confiou nela, e ainda diz que aguarda que a febre o traga de volta vivo. Tudo que ele quer é que ela venha em paz… como uma brisa de verão. O amor tal qual uma droga, um vício que faz mal, mas do qual você não consegue fugir, nem negar um sorriso mesmo sabendo que o próximo passo pode leva-lo ao abismo.
Introduzida por violão, baixo e piano irresistíveis, o tema se repete em “Sempre”, que traz Greg cantando “você é tão cruel, e eu sabia” para concluir que mesmo se sentindo “apedrejado”, ela o ilumina como “uma luz, uma centelha, uma estrela, uma vida sombria, uma visão, um satélite de precisão máxima”. O clima de quem ri dos próprios dramas desaparece em “Marry Me”, provavelmente a grande canção do álbum, uma balada acústica sombria com backings fantasmagóricos distantes na mixagem e uma letra que fala em estar libertado, mas não se sentir livre, em ser enterrado após ver seu amor partir. Tristemente e ironicamente sem dizer em nenhum momento a frase que dá titulo a canção…
“Marry Me” termina ao som de ondas quebrando na praia, e sobre esse barulho um piano introduz “The Tied”, que logo mais explodirá – no melhor estilo Afghan Whigs de “Black Love” – num rock sujo, barulhento e resmungado com o personagem da letra avisando que ainda tem “algumas coisas para fazer antes de desaparecer” e recebendo o espirito de algum beatle repetindo “She’s so heavy” no final. Piano e mellotron fazem a cama romântica para outra das faixas mais doloridas do disco, “Scorpio”, uma baladaça repleta de declarações de amor apaixonadas que, no entanto, sabem o destino do romance: “Isso vai acabar. Acredite em mim”. O mau presságio segue em “It Falls Apart” e se amplifica em “A Ghost”, que flagra Greg Dulli como um Nick Cave bêbado num boteco mau-iluminado de New Orleans enquanto vende sua alma, por amor, ao demônio.
A metaleira brilha na fanfarra trip hop “Lockless”, que, segundo o release, “homenageia os benefícios criativos da solidão, o choque de que você ainda possui a capacidade de ser surpreendido e a revelação entorpecente de que suas piores suspeitas geralmente se tornam realidade”. Sabe qual a primeira frase que Greg canta nessa canção de vocal sofrido? “Você vai ser o meu fim”. O arranjo de mellotron faz estrelas flutuarem em “Black Moon”, outra faixa trágica e apaixonada. “Quando isso acaba? A sensação virá de novo?”, ele pergunta após um beijo em “Slow Pan”, a faixa de encerramento, e promete: “Eu quero sentir isso mesmo que precise roubar…”. O sol de verão está vencendo a noite, e tal qual um vampiro de 3 mil anos, o cavaleiro solitário se retira para o conforto de sua solidão com seu desejo aleatório. Ele está sofrendo, mas está vivo, e… aparentemente feliz.
“Random Desire” é um dos discos mais acessíveis que Greg Dulli já “filmou” (como ele costuma grafar “gravar” em seus discos, demonstrando que vê cada canção como uma pequena peça cinematográfica), e ainda que aparente que ele está dando uma piscadela para o sofrimento, o tema central segue sendo a busca incessante pela concretização do desejo, algo tão fugaz e insaciável que traz um neon na testa escrito “problema”. Nos anos 90, em meio ao turbilhão em que o Afghan Whigs foi arremessado conseguindo sair de lá com ao menos três álbuns maravilhosos, havia mais desespero, menos galhardia, mais ira, menos charme, mais violência, menos romance na maneira com que Greg Dulli lidava com seus “problemas”. Agora ele chama seus demônios pelo nome, serve-lhes uma taça de vinho, e sorri enquanto se prepara para a próxima queda lembrando que isso tudo faz do mundo um lugar muito melhor para se viver.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne