por Leonardo Vinhas
Gustavo Halfeld e Ayla Gresta são parceiros de criação artística e de vida. Conheceram-se quando foram escalados para interpretar músicos em um filme – no caso, “Ainda Temos a Imensidão da Noite” (2019), dirigido por Gustavo Galvão. Desse encontro veio a união deles, seu filho Nico, a banda Animal Interior e a agremiação mutante YPU, não necessariamente nessa ordem. O curioso é que o elemento em comum a isso tudo, para além do sentimento que os une, é a decisão de explorar caminhos criativos plurais, capazes de se comunicar com outros criadores e com as pessoas (ao menos, algumas pessoas) sem que só isso signifique deixar de atender suas inquietações pessoais.
Explicações necessárias: a Animal Interior era “a banda do filme”, criada pelo diretor Galvão para fazer “rock com vocal feminino e trompete” sob os auspícios de ninguém menos que Lee Ranaldo, que fez a direção musical da agremiação em estúdio: “Meu papel foi apenas trabalhar com eles para formatar a canção”, contou Ranaldo em entrevista ao Scream & Yell. Formada por Karen, Artur, Cícero e Lara – ou melhor, Gresta, Halfeld, Hélio Miranda e Vanessa Gusmão – a Animal entregou um som denso, sombrio, fortemente influenciado por pós-punk, no wave e outros digressores. As faixas produzidas com o ex-Sonic Youth foram disponibilizadas nas plataformas de streaming no começo desse ano, e os músicos-atores chegaram a se apresentar ao vivo. Já a YPU começou como um projeto de Ayla e Gustavo, ao qual logo se somou o tecladista Ramiro Galas. Vai aí um pouco de história para entender onde essas bandas se unem e se diferenciam:
“Ainda Temos a Imensidão da Noite” foi rodado em Brasília e em Berlim. Na etapa alemã, Ayla e Gustavo já eram um casal e, terminadas as filmagens, se bandearam pelo interior do país estrangeiro para se livrar um pouco da bad trip que praticamente tomaram emprestadas dos personagens que interpretavam – sem dar grandes spoilers, basta dizer que Karen e Artur se dão muito mal em sua jornada berlinense. A viagem teve uma passagem pelo Sudeste Asiático antes de retornar ao país. O sol e o mar da costa da Ásia podem ter curado as feridas, mas machucaram seriamente os bolsos. O casal voltou ao Brasil sem grana, sem trabalho e com várias canções compostas durante esse período todo.
Enquanto tentavam reorganizar a vida, acabaram agregando Ramiro e formatando as três canções que viraram o EP de estreia da YPU, com três faixas, lançado em 2018. A sonoridade resultante foi uma espécie de antiépico, canções de frustração e desencontro que se tornavam envolventes por uma dinâmica instrumental onde havia silêncios, frases de trompete e combinações eletroacústicas que lembram que “psicodelia” não é apenas sinônimo de empilhar efeitos de guitarra ou copiar as configurações dos pedais do Kevin Parker.
Hoje, YPU e Animal Interior continuam – da forma como é possível continuar em tempos de pandemia. A Animal estava buscando mais shows quando o Coronavírus marcou o maior rompimento de futuros presumidos das últimas décadas. Nisso, o lançamento de suas faixas nas plataformas de streaming passou praticamente batido.
“Acho que o trabalho com o filme e com a banda foi a experiência mais doida e inesperada da minha vida. Foi inusitada, em termos de música, tanto a proposta como o resultado. Nem falo do resultado material, mas em termos de relações, de encontros… Fugiram muito do que eu poderia planejar. Fugiram do senso comum. A sinergia funcionou tão bem entre nós quatro, vivemos tantas coisas que sinto que a banda tem a profundidade de uma banda com estrada de verdade”, avalia Halfeld.
Ayla concorda, e completa: “essas canções são muito o reflexo daquele momento, mas não deixam de fazer parte da gente, porque aquelas experiências foram realizações diferentes do meu campo habitual como musicista. Todas aquelas músicas se tornaram realizações de tudo o que ficou daquele período, das mudanças pelas quais passei. Todas as vezes em que a gente foi fazer show, eu sentia aquela energia de volta”.
Por ora, a Animal Interior segue engaiolada: não bastasse as dificuldades da pandemia, há a questão da distância geográfica, já que a baixista Vanessa Gusmão vive em São Paulo e os demais integrantes em Brasília. A banda inclusive está escalada para um projeto (ainda secreto) do selo Scream & Yell que aguarda o fim da pandemia para ser concluído. Mas com a YPU, os trabalhos seguem – e em parte ligados com a jornada berlinense.
O último lançamento da banda foi o single “In Circles”. “A música foi originalmente criada para fazer parte do filme, mas acabou não entrando. Ela ia para um lado totalmente diferente, mais melódico e quase sem groove”, conta Gustavo Halfeld. A composição renasceu totalmente modificada na versão do YPU e ainda ganhou um clipe que teve uma repercussão maior que todas as atividades pregressas da banda.
“Não sei dizer por que esse vídeo teve tanta aceitação. Às vezes você faz o trabalho e simplesmente dá retorno. Não dá para saber como”, avalia o guitarrista. Já Ayla tem suas suspeitas. “Calhou de ele ter sido feito em outro momento e lançado no meio do confinamento. Teve um trabalho muito bem pensado e muito bem-feito de todos os realizadores que se envolveram. Acho que vários elementos contribuíram, como o fato de ter as tentações da rua e acabar saindo quando a possibilidade de fazer escolhas fica em xeque”.
Filmado num beco entre as pistas W3 e W4 – “um fenômeno de ilegalidade urbana”, na avaliação de Ayla, também arquiteta – o clipe tem seus encantos, mas surpreende o quanto a canção mostra um lado mais rítmico e (um pouco) menos desencantado da banda. “O Ramiro passou a vida ouvindo coisas diferentes das que nós ouvimos, então quando ele manda o beat dá um choque na gente (risos). Mas compor com ele é muito fácil, e acho que a YPU está nesse caminho de testar nossos limites, experimentar mesmo”, diz Gustavo. “Nossa vida mudou muito, e musicalmente isso transparece. Nossa música não está presa a um gênero ou estética dominante, e essa possiblidade de fluir é o que me pilha”.
Parte desse fluir é possível porque a YPU tem esse trio que funciona como eixo, mas é entendido como um processo onde, de certo modo, qualquer um pode ser integrante da banda, desde que esteja no lugar e no momento certo. Tanto que a banda já gravou, ainda que à distância, com o mexicano Cesar Sáez (artista solo e também vocalista da banda norte-americana de synth rock Wallburds) e fez um projeto misturando artes visuais, performance e música com a banda Palamar.
As canções do YPU são sintomáticas desses tempos complicados. É a trilha sonora do – vale repetir a expressão – desencanto. Mas não da desesperança nem da apatia. É aquele som que traz a beleza do que foi vivido e também a tristeza do que se perdeu. E bem ali no fundo, o desejo de que haja algo mais além disso tudo.
“A criação é mais importante quando o contexto é cheio de limitações, de surpresas, de insegurança. Mas é também um lugar de presença, que tá sendo essencial no meio desse clima de tensão crescente e ausências. Ainda esses dias, eu estava ‘whatsappeando’ com uma que colaborou no clipe de ‘In Circles”. Ela dizia que estava cogitando mudar de vida, talvez estudar psicologia ou algo do tipo, porque sentia que tinha que ter uma ocupação que ajudasse mais aos outros do que um trabalho no ramo audiovisual. Entendo essa crise, mas ao mesmo tempo estamos vivendo esse momento de valorizar o artista, que foi tão mal visto nos últimos anos. Isso bate nas pessoas. A gente vive isso, de insistir no aparente absurdo que é estar fazendo arte agora, mas ao mesmo tempo, a gente precisa sair desse lugar e pensar em quais vozes a gente quer ouvir, como amplificar alguns sons, mensagens políticas, ondas, vibrações que devem ser aplicadas. Isso foge de ser do YPU ou da Animal, é uma viagem profunda e política que a gente precisa empreender”, finaliza Ayla.
Você ainda está comigo? Ótimo, porque já tem um tempo em que não se fala muito atentamente sobre se decepcionar, e é um pouco por causa disso que tem tanta gente frustrada por aí. Explico: muitos de nós crescemos ouvindo que o mundo era nosso, que podíamos fazer o que gostássemos – bastava querer e dar o primeiro passo “que o universo vai conspirar a seu favor”. Que não só é bacana, mas necessário viver segundo seus sonhos.
Só não falaram muito que isso tem preço, pode ser alto, e corre risco de dar em nada. Não sei se esse era o caso exato da Ayla Gresta e do Gustavo Halfeld. O que sei é que eles foram lá “viver o sonho”.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.