entrevista por Bruno Lisboa
Fruto da efervescente cena pernambucana dos anos 90, o Sheik Tosado fez barulho dos bons ao unir punk, hardcore com elementos regionais que marcaram o seu álbum de estreia, “Som de Caráter Urbano e de Salão” (Trama), de 1999. Mas de forma repentina o grupo encerrou as atividades e esta foi a deixa para que o vocalista China seguisse seus próprios caminhos.
De lá para cá ele tem se firmado não só na ala musical, tendo cinco discos solo e diversas parcerias com outros artistas (incluindo o Del Rey, grupo que China mantém paralelamente com membros do Mombojó recriando canções do Rei Roberto Carlos), como também tem mostrado a sua versatilidade na TV, com trabalhos realizados na MTV e, atualmente, na cobertura de festivais musicais pelo Multishow.
Rompendo um hiato de cinco anos, período em que se dedicou a “rever rumos”, China retorna ao universo pop como “Manual de Sobrevivência para Dias Mortos” (2019), seu quinto disco solo. Neste novo álbum, o músico faz uma ode raivosa a esses tempos marcados por inúmeros retrocessos, protagonizados pelos tidos “cidadãos de bem”.
Em entrevista concedida por e-mail, China fala sobre o porquê da demora de retorno aos palcos, o processo de composição do novo disco, as participações especiais, a necessidade de adotar o discurso político em tempos tempestuosos, o trabalho com o produtor Yuri Queiroga, a adoção de uma sonoridade mais pesada, referências literárias, motivações para seguir em frente e muito mais. Confira!
Cinco anos separam “Telemática” (2014), seu quarto álbum, deste novo trabalho. O que aconteceu neste meio tempo?
Nesse meio tempo eu parei pra rever os rumos da minha carreira solo. Dei um tempo dos shows, pois comecei a sentir que, artisticamente, não estava entregando o melhor espetáculo para quem ia me assistir, e isso é muito importante para mim, respeitar a minha arte, respeitar as pessoas que gostam da minha arte, então dei um tempo para fazer essa autocrítica sobre a minha carreira e para onde eu gostaria de levá-la. Fui pro estúdio me aprimorar como produtor e músico, e assim nasceu o “ócio criativo” (no Youtube), um projeto em que pegava uma música do cancioneiro brasileiro e fazia uma versão completamente diferente tocando todos os instrumentos. Foi bem legal esse processo, pois evolui como produtor, como músico, e através desses estudos comecei a pensar em um disco autoral de novo. Nesses 5 anos trabalhando também nas coisas de TV ingressei no time de apresentadores do Multishow cobrindo os festivais de música pelo país, o que também me deu a oportunidade de assistir shows incríveis e me reciclar como artista.
“Manual de Sobrevivência para Dias Mortos” é uma ode raivosa aos nossos tempos. Como se deu o processo de composição e gravação do disco?
Yuri Queiroga, produtor do disco, me instigou a fazer um novo trabalho em que as canções tratassem de um mesmo tema. Na época estava pirando na teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, e a palavra sobrevivência saltou nos meus olhos. A partir dela vieram os questionamentos do que é sobreviver nos dias de hoje com esse quadro político/social que estamos vivendo. Eu e Yuri entramos no estúdio e começamos a compor tudo do zero, a partir de beats e riffs de guitarra. Compondo as canções percebi que o discurso do disco não é só meu, mas também do meu vizinho, do balconista do mercado, dos meus amigos e de muitas pessoas que estão indignadas com esses absurdos que a gente lê todos os dias nos jornais. A arte virou persona non grata para uma parcela de pessoas que não faz ideia do quanto a arte e a cultura são transformadoras para as nossas vidas, além dos benefícios econômicos que geram para o país. As armas que tenho para lutar contra esse pensamento medíocre são as minhas canções, um microfone, um palco… nesse momento, como artista, não posso recuar, não posso deixar que gente assim destrua nossa cultura, então esse disco é a forma que escolhi para lutar contra isso.
O disco é recheado de diversificadas participações especiais. Como se deu a seleção de quem poderia contribuir e quais as contribuições eles trouxeram para o resultado final?
Sou privilegiado de ter muitos amigos de diversos segmentos musicais, nos damos muito bem e cada um trouxe um pouco da sua verdade para o disco. Bell Puã com seu poema cortante em “Moinhos de Tempo”, as vozes poderosas de Natália Matos e Uyara Torrente (A Banda Mais Bonita da Cidade) em “Mareação” e “Pó de Estrela”, deram a densidade que essas músicas precisavam, e as guitarras de Neilton (Devotos) e Andreas Kisser (Sepultura) trazem peso ao discurso do disco. Todos os convidados foram escolhidos na certeza de que deixariam o disco mais rico e plural.
Vivemos tempos tenebrosos e muito se discute qual é o papel da arte em momentos como este. Você tem um posicionamento claro quando a necessidade de adoção de discurso político de afrontamento e faz da música o seu instrumento. Você acredita que, na atual conjectura, se faz necessário um engajamento ainda maior da classe artística?
Como te disse acima, a arte e a cultura são as armas que escolhi pra lutar contra esses absurdos que vemos todos os dias no Brasil. Vejo a classe artística muito engajada nesse momento, pois o sentimento de indignação e desejo de mudança é comum a todos. Lancei meu disco no mesmo dia que o Dead Fish lançou o “Ponto Cego”, novo trabalho dos caras, e o discurso dos álbuns é bem parecido, Pitty em seu novo disco também traz esses temas em algumas canções, Emicida vem lançando faixas com esse teor, ou seja, os artistas estão super engajados nessa luta, cada um no seu estilo musical, mas com discursos que se complementam. Apesar de todas as perseguições, é um momento bem especial para a cultura brasileira e nosso papel como artista é denunciar através das canções esse período sombrio do nosso país e lutar por mudanças.
Na faixa “Fascismo Tupinambá” você faz uma crítica direta ao intitulado “cidadão de bem”, que representa a parcela da população responsável por este cenário caótico que o Brasil vive. Você acredita que a adoção de um discurso mais claro, pungente, sem rodeios é a melhor maneira causar a reflexão daqueles que não compreendem o mal que fizeram e ainda o fazem?
Essa música nasceu enquanto lia a declaração dos direitos humanos. Fiquei pensando na falta que faz a interpretação de texto para algumas pessoas, né? (risos). Tá tudo tão claro ali, mas o cidadão de bem distorce essa informação e cria outro conceito na sua cabeça. Acho que a canção pode ser rebuscada e cheia de palavras difíceis, mas também pode ser direta, sem rodeios, para o fácil entendimento, e “Fascismo Tupinambá” foi escrita dessa forma. Algumas pessoas me criticaram na internet por causa dessa faixa, pessoas que vestiram a carapuça do discurso, e eu não sei se rio dessa situação ou fico triste, pois o cidadão de bem que me critica está exatamente defendendo o fascismo. O título dessa canção vem de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, um livro escrito décadas atrás que fala da prisão do autor e do fascismo brasileiro. Ou seja, o cidadão de bem não aprendeu nada com a história e repete seus erros.
O disco, de fato, funciona como um manual de sobrevivência para estes tempos, pois sugere vários caminhos a seguir. Mas você acredita que a população em geral irá fazer parte do coro da mudança?
Quando era jovem tinha aquela esperança de mudar o mundo, mas depois de adulto percebi que se eu conseguir mudar quem está em minha volta já estou fazendo bastante coisa. São pequenas, mas certeiras ações, como uma guerra de guerrilha mesmo, e assim vamos repassando as informações, desmentindo notícias falsas, e espalhando conhecimento para as pessoas. Não posso cobrar do cara que trabalha 8, 12 horas por dia que ele leia, pesquise e tenha uma opinião crítica sobre as notícias que chegam, mas enquanto estou conversando com ele posso mostrar diversas matérias de jornais que desmontam aquele discurso programado e sem base alguma dos grupos de Whatsapp. Assim vamos apontando outros caminhos, mostrando que não existe apenas uma verdade absoluta, e fazendo esse cara criar um senso crítico. Precisamos de gente que pensa e questiona, não de um gado que anda cego para o abate.
O Yuri Queiroga, que integra dezenas de projetos como músico e produtor, foi o responsável pela produção do disco. Como se a aproximação e quais as contribuições ele trouxe para este trabalho?
Trabalho com Yuri há pelo menos 15 anos, somos muito amigos e ele é um cara que me conhece como ninguém. Sabe dos meus anseios profissionais e pessoais e soube me instigar no lugar certo para fazer esse trabalho. Ele deu a ideia das músicas partirem de um riff de guitarra que se repete e daí eu ia construindo as melodias na voz. Foi dele também a sacada de ter apenas um tema que se desdobra no disco inteiro, então escolhi esse tema e fomos compondo uma música atrás da outra. Posso dizer que além de músico, instrumentista e produtor, Yuri trabalhou como uma espécie de psicólogo plantando sementinhas na minha cabeça (risos).
As guitarras acabam por ocupar um papel central no disco. Você acredita que peso melódico impresso em diversas faixas, como em “Frevo e Fúria” ajuda a transmitir a mensagem raivosa contida na música?
Em outros discos da minha carreira solo passeei pela música pop para me provar como compositor, para ter certeza de que também conseguia ir por outro caminho, mas minha essência sempre foi o punk, guitarras pesadas. O Sheik Tosado, minha antiga banda, tinha esse discurso social preenchido pelos riffs de guitarra, então foi um reencontro natural para mim. O disco não tem bateria, e sim uma percussão forte, pungente e contei com Lucas dos Prazeres, um percussionista pernambucano incrível, para chegar nesse som. Tudo nesse disco tinha que ser pesado, denso, e essa sincope de guitarras distorcidas e percussão deram a cama perfeita para o que eu queria falar nas letras.
Li numa entrevista que você apostou neste trabalho em trazer à tona diversas referências literárias. Quais foram? E ainda: um país em que as pessoas leem cada vez menos e isto traz impactos cada vez maiores, qual a importância que a leitura trouxe para a sua formação?
Nesse disco tive muito mais referências literárias do que musicais. Já citei Darwin e Graciliano, né? Mas também li bastante a poetiza americana Elizabeth Bishop, reli “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa, o “Brasil: Uma Biografia”, de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, livro incrível e necessário para entendermos nossa história, além da ficção científica de Philip K. Dick e Isaac Asimov. Eu fui um leitor tardio. Quando criança não ligava muito para a leitura, mas quando comecei a compor, lá pros 16, 17 anos, percebi que os livros e jornais eram essenciais para ampliar meu conhecimento e me dar base para meu trabalho, afinal de contas, não da para escrever sobre o que não conhecemos. A partir daí os livros viraram meus companheiros e gosto muito de me manter informado. Leio de tudo. A informação deixa a gente inteligente, com senso crítico mais apurado, e me dá condições de expandir meu vocabulário, minha arte e minhas experiências de vida.
Em tempos a arte, ainda mais quando associada ao discurso político de oposição, segue sendo depreciada por parte da sociedade o que te motiva seguir em frente?
A arte me abriu os olhos pro mundo, me deu uma profissão e sabedoria. Através da arte tomei gosto pela leitura, me aprofundei nos assuntos e desenvolvi meu senso crítico, meu livre pensar. Quando era adolescente ouvindo a Nação Zumbi, Chico Science cantava “a cidade não para a cidade só cresce o de cima sobe e o de baixo desce”, ou as letras de Yuka no Rappa “paz sem voz não é paz é medo”, eu escutava essas coisas e botava a cabeça pra pensar, sabe? Através do discurso desses caras fui forjando a minha identidade, abrindo a cabeça para os problemas sociais do país. Não foram os livros de história que me ensinaram o quanto nosso país é desigual, foi a música, a arte. E como compositor quero passar o que eu aprendi para outras pessoas. Se as músicas que eu canto vão atingir um grande público, não sei, não sou eu quem determina isso, mas se meu discurso acabar sendo transformador para outra pessoa, já me sinto muito feliz e honrado por ter repassado conhecimento.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Pamela Gachido / Divulgação. Os vídeos são de Fatuca Ferreira. Veja mais aqui!
China, venho fazendo o mesmo na minha área de atuação (como escritor e como roteirista). Soldados do Araguaia mostra a violência da guerrilha até sobre os recrutas; Marcadas mostra mulheres ameaçadas de morte por suas ideias. Cientistas que ninguém quis ouvir é sobre a importância do conhecimento científico. E nos últimos cinco anos publiquei um livro sobre o Pará e a ditadura militar e uma biografia sobre Paulo Fonteles, um deputado morto a mando de ruralistas nos anos 80. Nossa atuação precisa ser intensa nesses tempos.