por Leonardo Vinhas
Qual a medida do sucesso de um festival? Se o objetivo é meramente comercial, há quem suponha que o sucesso está nos números, no balanço financeiro positivo, na possibilidade de repetir o evento no ano seguinte. Porém, mesmo um evento de entretenimento com proposta exclusiva de gerar lucro aos seus organizadores leva em consideração outros fatores para celebrar seu êxito. O que dizer, então, de um festival sem fins lucrativos e com ambições culturais e artísticas claras? A avaliação fica muito mais complexa, e por isso a 12a edição do Paraíso do Rock, ocorrida em 12 e 13 de julho de 2019, não encontra uma resposta fácil.
Aos fatos, portanto: foi o festival com a curadoria mais ampla de sua história, tanto do ponto de vista estético quanto geográfico. Havia artistas de Montevidéu a Natal, da guitarrada amazônica ao bubblegum curitibano. Também foi a edição com menor público: somadas, as duas noites não chegaram a atrair 500 pessoas.
Muitos fatores podem ter concorrido para a pequena plateia. Paraíso do Norte é uma cidade com cerca de 13 mil habitantes numa região predominantemente rural do Paraná. O Paraíso do Rock costumava ser o único evento destinado ao estilo na região, atraindo moradores de cidades vizinhas. Mas em 2019, Paranavaí realizou uma festa gratuita para comemorar o Dia Mundial do Rock, o que já dividia o público interessado. Ainda mais graves foram as denúncias de spam contra a publicidade online do festival, que acabaram prejudicando o principal canal de divulgação. Além disso, querelas judiciais foram instauradas contra um dos organizadores, acusando-o de usar o festival para se promover politicamente.
Sobre esse último aspecto, é uma acusação no mínimo curiosa: o objetivo principal do Paraíso do Rock é levantar recursos para o contraturno da escola pública. Todo o lucro do festival é revertido para esse objetivo. Além disso, o festival tem o compromisso confesso de promover a integração da região com a cultura de outras localidades do país. Poderia ser considerado eleitoreiro se “jogasse para a galera”, escalando um elenco sertanejo – o gênero de maior demanda na região. Mas o festival aposta no novo, no inusitado, no culturalmente relevante.
E nesse aspecto, o Paraíso do Rock apresentou uma de suas melhores edições, se não a melhor. Apesar da insipiência das bandas de abertura de ambas as noites, o que se seguiu a elas foi uma combinação impressionante de propostas musicais, uma experiência que foi além do mero entretenimento ou da curiosidade para se tornar um daqueles momentos em que você olha para a própria vida e pensa: “valeu a pena ter estado aqui”.
Na sexta, dia 12, esse clima de ‘boa onda” já havia se instalado com o punk bubblegum do Chinelada. Apesar de recente, a banda é formada por macacos velhos do punk curitibano, tendo à frente o vocalista Oneide Diedrich (Pelebrói Não Sei?, Diedrich & Os Marlenes, Gripe Forte). Escritor, psicólogo e “ramonero” de primeira hora, Oneide é um frontman sem par: alterna dancinhas de tiozão com postura estoica, brinca com os clichês de rock star (algumas de suas “falas” com o público são scats incompreensíveis) e entoa pequenas crônicas urbanas com a naturalidade de quem está pedindo um cafezinho na padaria. A banda providencia uma massa sonora simples e fluida, e ajuda a lembrar que punk e bubblegum são gêneros simples, sim, mas não indigentes. Ao menos, não nas mãos de quem sabe o que está fazendo.
Antes deles, havia rolado o Histeria, banda de Paraíso do Norte formada apenas por mulheres. O festival sempre procura incluir bandas locais e também abrir espaço para nomes menos experientes – “como o cara vai pegar experiência se ele não tocar?”, me disse certa vez Beto Vizzotto para explicar essa postura. E foi por influência dele que a banda, inicialmente de covers, se arriscou em canções autorais. Foram justamente essas que aliviaram a apresentação, porque a escolha óbvia e nada coerente de covers (Pitty, Blondie, Nirvana, Runaways, Cranberries…) era apenas correta do ponto de vista instrumental. E se já faltava personalidade e bagagem às releituras, o resultado ficava ainda pior com o inglês sofrível da vocalista Laura Berthi. Ainda assim, nas três faixas próprias, a banda mostrou um grunge pop bastante palatável. Que se arrisquem mais nos palcos e deixem esse lado se desenvolver.
Comemorando 30 anos de carreira, personalidade e bagagem são artigos que os pernambucanos do Eddie têm de sobra, e o guitarrista Fabio Trummer não precisou de mais que poucos segundos para convocar o público para seu “original Olinda style”. Ele e o percussionista Alexandre Urêa dividem os vocais e o comando do público com precisão, sem jamais ofuscar a malemolência da cozinha dos gêmeos Rob e Kiko Meira ou os detalhes e texturas de teclados e trompete de Andrét Oliveira. O repertório passou por todos os sete álbuns, trazendo a mistura de “frevo desacelerado”, reggae, rock, psicodelia, ares caribenhos e romantismo pop que caracteriza o som da banda. Dava pra dançar (sozinho ou coladinho) ou só apreciar os detalhes. Belíssimo show.
O que veio a seguir, porém, não foi nada plácido. Um CTG São Jorge semiesvaziado viu a Camarones Orquestra Guitarrística mandar seu habitual apavoro sonoro acelerado. Com os graves no talo e uma pressão absurda nos amplificadores, o quarteto potiguar mandou 14 canções em meia hora, arrombando o fiofó de qualquer bundamolice na qual o rock tenha se metido. A baixista Ana Morena consegue a proeza de ser uma frontwoman em uma banda instrumental, ocupando o centro do palco com uma energia intensa – a guria faz headbanging até nos curtos intervalos entre uma faixa e outra. Em dado momento a guitarra de três cordas de Anderson Foca ficou só com duas, e mesmo assim – e mesmo com o guitarrista Don Carlón, do Combover, substituindo Fausto Alencar (que não pôde viajar) – o quarteto manteve a velocidade e o volume elevados. Um show brutal e agressivo, no melhor sentido de ambas as palavras.
A noite de sábado foi atípica na história do festival, por muitas razões. A primeira, já se disse: o público pequeno, quando habitualmente a última noite apresentava até quatro vezes mais pessoas que a primeira. A segunda era o clima agradável, dispensando o uso de agasalhos (a região tem um inverno rigoroso). E por fim, a escalação. Nesse aspecto, vamos por partes.
Outra banda da região abriu a noite. De Umuarama, o Triângulo das Bermúsicas é um projeto paralelo de Duda Victor e José Duarte, ambos da excelente Terremotor. A ideia é até simpática: beber no lado mais B-52s/Gang 90 da new wave, subindo um pouco o volume das guitarras e trazendo um tanto de poesia. Só que a prática não corresponde à teoria: o que sai é uma espécie de rock universitário oitentista, com boas guitarras… e só. O começo até foi divertido, mas 40 minutos foi tempo demais. São quatro vocalistas (Victor, Duarte, Patrícia Sacramento e Ana Ribas), mas antes da metade do show os quatro já estavam com a voz em más condições. Ana Ribas, em especial, emitia uma gritaria que piorava os “textos marginais” (a maioria pinçada da fase de mitomania junkie/alcoólatra de autores paranaenses como Márcio Américo e Mario Bortolotto). Por outro lado, tinha uma presença de palco cativante, enquanto Patrícia Sacramento, tímida, colocava melhor a voz nas poucas ocasiões em que assumia o vocal principal. Tivesse tido a metade da duração, teria sido mais curtível. Mas a metade final realmente broxou.
Tudo bem, porque depois vieram os Buenos Muchachos. Uma das maiores bandas do Uruguai, traziam nas costas seus 28 anos de carreira e 1,7 mil quilômetros viajados de van para estar no festival. Vivendo o auge em seu país natal, vieram por acreditarem na premissa do festival, que já recebeu conterrâneos como Molina y Los Cósmicos. Abdicaram do cachê e do conforto de viagem, e ainda trouxeram um repertório preparado especialmente para o show, privilegiando algumas das canções mais pesadas do seu repertório (e incluindo a versão que fizeram para “Inferno”, da Nação Zumbi, gravada para o álbum “Brasil También Es Latino”, do Scream & Yell). Valeu a pena? Bem, como escreveu, em um excelente relato, o veterano jornalista veterano Jotabê Medeiros:
“Face à extensão de sua jornada, os Buenos Muchachos encontraram uma plateia pequena no Paraíso do Rock, festival que completou 12 anos de existência como um enclave numa região dominada por gêneros de consumo ligeiro. Mas vai se tornar um daqueles shows lendários nos quais ninguém nunca esteve, mas todos se lembrarão eternamente, como algum concerto do Velvet Underground na Factory de Andy Warhol”.
Não é exagero. Após o show, tinha gente se ajoelhando na frente do vocalista Pedro Dalton e agradecendo pela experiência proporcionada. Superada a estranheza dos primeiros acordes, a banda conquistou o público com uma combinação de climas densos, digressões, arrancadas guitarrísticas e silêncios. O som, impecável, destacava as texturas das três guitarras, mas o atrativo maior era a voz e a energia emanada por Dalton, que, como a banda toda, atravessa seu melhor momento.
Pareceria anticlimático que depois disso viesse algo colorido e dançante, mas Félix Robatto não é um dos principais nomes da música paraense por causa de hype. Desde os tempos da banda La Pupuña, passando por sua Lambateria (uma potente e disputada festa semanal em Belém, organizada por ele) até sua carreira solo, Robatto dá seguidas mostras de estar no caminho de se tornar um “mestre da guitarra”, como os históricos Mestres Vieira e Pinduca, entre outros.
Acompanhado de um percussionista e um baterista e usando o virtuosismo a favor da dança, o barbudão (“esse é o ZZTrópicos”, brincou) só não transportou a Amazônia para o Paraná porque o povo ali ainda é um pouco duro de cintura. Mas não tinha ninguém parado, nem mesmo quando ele mandou seu “flash brega” – trecho do show no qual mistura clássicos de surf music e música romântica em um pot-pourri brega-instrumental (de “Sá Marina”, de Wilson Simonal, a “Theme for Young Lovers”, de The Shadows, teve de tudo).
O fim da festa foi com a Comunidade Nin-Jitsu, banda que fez sucesso nos Estados do Sul do país, e só por lá. Parada no tempo, a banda envelheceu mal: continua com o mesmo show de seis anos atrás (quando os vi pela última vez), mas a tosquice musical e as rimas de quinta série (“não aguento mais viver sem você /para de tomar LSD”) só apelavam a quem tinha memória afetiva da banda. Por um lado, uma escalação coerente com a história do festival – que já incluiu Ultramen, Bidê ou Balde, Cachorro Grande e outros contemporâneos gaúchos em edições passadas. Por outro, um tremendo furo, já que bobagens como “Merda de Bar” e “Tô Molhada” soam ainda mais datadas e vulgares que há 20 anos. Seja como for, tinha bastante gente pulando e pogando.
E isso nos traz de volta à questão que iniciou o texto. Qual é a medida do sucesso para um festival? Apresentar aquilo que o público já conhece – como a Comunidade – pode garantir a agitação, mas esse mesmo público estava maravilhado com propostas musicais muito mais rics apresentadas antes – caso de Buenos Muchachos e Félix Robatto. Os shows de Histeria e Triângulo das Bermúsicas foram fracos, mas colocaram as bandas, ambas iniciantes, em um palco profissional e diante de um público desconhecido que precisavam conquistar. Eddie e Camarones fizeram shows antológicos e trouxeram informações musicais novas, mas foram curtidos por poucos. O que vale realmente a pena em meio a tudo isso?
Difícil responder, já que são tempos economicamente cáusticos e a saúde financeira de qualquer evento está em risco antes mesmo de o projeto sair do papel. E que um evento beneficente dê prejuízo é ainda mais delicado. Porém, existe um projeto cultural e artístico claro, e é nisso que o Paraíso do Rock aposta. Talvez se o projeto, a exemplo do gaúcho Música de Rua, convidasse a população de escolas públicas, o objetivo cultural atingisse mais certeiramente seu alvo. Talvez a tarefa de educar o público para fugir da obviedade do consumo de massa seja um trabalho ainda mais difícil do que se costuma crer. Ou talvez tenham sido apenas os percalços políticos que dificultaram a divulgação. Seja como for, a 12a edição do Paraíso do Rock trouxe elementos mais que suficientes para afirmar que o festival acredita na cultura, na música, no rock’n’roll e na região onde ele nasceu. Não é pouco.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Comunidade vulgar?Só se for pra este escriba.Pena que a “onda” da banda passou,mas ainda acho foda.