Texto por Adriano Mello Costa
“Como as Democracias Morrem” (“How Democracies Die”, no original) foi publicado nos EUA em 2018 e ganhou edição nacional no mesmo ano por aqui através da Editora Zahar – com 272 páginas, tradução de Renato Aguiar e prefácio de Jairo Nicolau, professor de Ciência Política da UFRJ. O livro virou best-seller rapidamente no exterior e foi uma das obras mais comentadas no Brasil desde que foi lançado (incluindo o posto de Melhor Livro do Ano na votação do Scream & Yell, dividindo o posto com “O Sol na Cabeça”, de Geovani Martins). E não faltam motivos para isso.
Os autores são Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, pesquisadores e professores de Ciência Política na prestigiosa Universidade de Harvard. No livro, os dois versam sobre o retorno do autoritarismo no mundo, que na visão deles está passando por uma recessão democrática. O olhar é mais voltado para os EUA, analisando historicamente a democracia no país, como também a sucessão de atos e decisões que tornaram possível a eleição de Donald Trump para Presidente, contudo, também se estendem a outros países tanto no passado quanto no presente.
A pesquisa da dupla para concepção da obra foi extremamente abrangente, baseada em mais de 800 referências espalhadas nas notas constantes nas últimas páginas. Demonstram detalhadamente que nos EUA as tradições que sustentam as instituições democráticas estão se desintegrando já há algum tempo e isso culminou no atual presidente que chegou ao poder devido as grades de proteção enfraquecidas, o que certifica que a democracia americana não é mais tão forte como outrora se imaginava.
O texto invade o mundo com o olhar crítico e passa por governos recentes (de 90 em diante) como os de Alberto Fujimori no Peru, Hugo Chávez na Venezuela, Vladimir Putin na Rússia e Recep Erdogan na Turquia e para mais recentes ainda como os de Viktor Orbán na Hungria e Jaroslaw Kaczynski na Polônia. Mas também olham para casos antigos como Adolf Hitler na Alemanha e Benito Mussolini na Itália, correlacionando e amarrando as características comuns de todos eles.
Os autores apontam quatro caminhos de comportamentos autoritários que podem facilmente despencar para um governo ditatorial, a saber: rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas), negação da legitimidade dos oponentes políticos, tolerância ou encorajamento a violência e, propensão a restringir liberdades civis, de oponentes, inclusive a mídia. E aí? Percebe alguma semelhança com os tempos atuais no ar? Pois é, isso mesmo.
Fica límpido que não se precisa mais de golpes militares para arruinar uma democracia. Há outra maneira tão destrutiva quanto que é quando líderes eleitos subvertem em grande escala o poder e o sistema que os levou até lá, fazendo a democracia desaparecer – na maioria das vezes – devagarzinho, em etapas, utilizando os recursos descritos acima, entre outros. É assim que as democracias morrem hoje. A sua própria defesa é muitas vezes usada para essa deturpação de ideais e conceitos.
E quando há polarização o risco é sempre maior. A ideia de colocar um outsider para concorrer por conta de apoio popular no momento, com o intuito de controlá-lo depois de eleito é um verdadeiro tiro no pé. Acreditar que a retórica de campanha não será cumprida depois é um grave erro. Esse tipo de demagogo existe em todo país, contudo os demais líderes políticos percebem o que virá e tomam medidas para garantir que esses autoritários fiquem longe do poder. Se unem, apesar das diferenças, em um esforço orquestrado para derrotá-los, o que atualmente não vem sendo feito da maneira que se espera.
“Como as Democracias Morrem” é aquele livro que invariavelmente recebe as alcunhas de obrigatório e necessário e isso não poderia – nesse caso – estar mais correto. Em tempos em que as nuvens estão cada vez mais cinzas pairando sobre nossas cabeças e ideais nefastos circundam de conversas de bares a redes sociais, nada melhor do que ler um trabalho desse nível que serve como precioso alerta e constatação de que como diz o velho adágio, a cura para os males da democracia é mais democracia. Sempre.
– Adriano Mello Costa assina o blog de cultura Coisa Pop ( http://coisapop.blogspot.com.br ) e colabora com o Scream & Yell desde 2009!
Um complemento que acho bem interessante é a crítica do livro escrita pelo prof. de Ciência Política Luis Felipe Miguel, da UNB:
“Só agora li How democracies die, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
É um livro que tem os méritos e os defeitos típicos das obras da ciência política estadunidense destinadas ao grande público – o que significa que há mais defeitos do que méritos. É escrito de forma clara e direta e faz um esforço para sintetizar analiticamente um grande número de situações. Mas é raso na teoria, primário na sociologia e superficial na história.
Como por vezes ocorre em livros de autores estrangeiros, as referências ao Brasil são coalhadas de erros primários – por exemplo, Getúlio Vargas é incluído na lista de “political outsiders” que chegaram ao poder por eleições ou são citados “grupos paramilitares de esquerda no Brasil do início dos anos 1960”. Isso faz duvidar da exatidão das descrições quanto a outros países.
A tese central do livro é que a sobrevivência da democracia depende do filtro que a elite política oferece aos apelos extremistas que seduzem as massas. O filtro, por sua vez, está ancorado nas práticas não-escritas da própria elite política, que se aceita como uma mesma e única elite a despeito das diferenças partidárias. Estas práticas, que levam os partidos políticos a descartar lideranças inadequadas, isolam o extremismo e bloqueiam a tentação do apelo direto às massas.
Em suma, a democracia depende da moderação das elites governantes. Mas a moderação, convém lembrar, era para Montesquieu o princípio das repúblicas aristocráticas, não das democráticas.
E depende também da contenção (ou “filtragem”) da influência popular na política. Quando mais o povo tem voz, mais a democracia fica ameaçada – o que é outra tese antiga reelaborada pelo livro. How democracies die não se pergunta por que a ampliação da participação popular desestabiliza as instituições. Nem se seria possível um arranjo que diminuísse o fosso entre elite política e cidadãos comuns, mas fortalecendo a democracia. Tampouco se o cidadão comum está sempre condenado à incompetência política ou se poderia se tornar mais capaz e esclarecido. Muito menos quais são os interesses que são beneficiados com o este predomínio das elites. A democracia liberal limitada é o alfa e o ômega; não é necessário discutir sequer suas credenciais para ocupar o lugar de “a” democracia.
Levitsky e Ziblatt não discutem as promessas não cumpridas da democracia como governo do povo porque acreditam que o modelo vigente no Ocidente é a democracia e pronto. E não se preocupam com os interesses sociais que se impõem sob este modelo porque veem a política como sendo apenas um embate de ambições individuais. São um retrato da ciência política predominante nos Estados Unidos, que rejeitou Wright Mills em favor de Dahl e, quando Dahl tornou-se perigoso demais, largou Dahl para abraçar Huntington e Sartori.
Não que o livro não tenha aspectos interessantes. A ênfase nas normas não-escritas e no ethos compartilhado é um balde de água fria lançado sobre aqueles que depositam fé total no funcionamento das “instituições”, entendidas como o conjunto de regras formais.
A crítica às correntes focadas na “cultura política”, derivada do impulso elitista da abordagem, é severa. Às vezes, porém, é involuntariamente cômica. Os autores dão uma série de exemplos e concluem: “A verdadeira proteção contra aspirantes a autoritários não foi o firme compromisso dos americanos [estadunidenses] com a democracia, mas antes, os gatekeepers – nossos partidos políticos”. Só que em metade dos exemplos que eles deram a solução não veio dos filtros partidários, mas do assassinato ou da tentativa de assassinato dos pretendentes autoritários. Imagino que eles não desejam, no entanto, entronizar o homicídio político como salvaguarda democrática.
A preocupação central da obra é, evidentemente, Donald Trump. Mas não dá para reprimir a impressão de que alguém da equipe do ex-capitão leu e decidiu replicar os passos para destruir uma democracia liberal (questionar o processo eleitoral, tratar os adversários como traidores, encorajar violência, criminalizar os oponentes). Contra a intenção dos autores, How democracies die pode estar sendo usado como manual.”
https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb/posts/10213262365774590