entrevista por Homero Pivotto Jr.
Se “Beneath the Remains” (1989) fez o Sepultura ganhar a visibilidade internacional que merecia dentro do cenário metálico, seu sucessor, “Arise” (1991), permitiu a banda mineira insurgir-se de vez como grande nome do som pesado mundial. Não era para menos, já que pela primeira vez o quarteto teve à disposição uma estrutura adequada para materializar seu potencial matador: um estúdio gringo (o Morrisound, capitaneado pelo então grande nome da produção de música extrema Scott Burns), tempo e vontade de detonar a porra toda. O resultado foi um trabalho menos acelerado que os anteriores, mas carregado de riffs poderosos, batidas precisas e um groove cativante como em nenhum outro registro da discografia até aquele momento. Sob esse cerco criativo de peso musical estava o vocalista Max Cavalera, um dos destaques do álbum com seus gritos desesperados.
“Arise” é thrash, mas não apenas isso. Usa elementos do death, do hardcore e até do industrial — além de referências tribais que mais adiante ganhariam destaque na obra do Sepultura — para apresentar um grupo sem medo de experimentar com suas influências. Talvez por isso o disco seja atemporal e tenha força para incitar os irmãos Cavalera a fazerem uma turnê sul-americana celebrando seu lançamento e do seu antecessor. “O lance da nostalgia é muito forte. É o tipo de situação em que você e o público viram uma coisa só. A gente meio que esquece a história de que a banda rompeu, que teve as tretas. É o momento em que nada disso importa, o que vale é a música que estamos tocando”, conta Max, um rockeiro de 49 anos — mas com alma de 15, segundo o próprio —, que não abre mão das camisas pretas e de ressaltar suas influências, e que sabe aproveitar a nostalgia que lhe é de direito.
O álbum “Arise” foi o quarto disco do Sepultura. Lançado mundialmente no dia 20 de Março de 1991 pela Roadrunner Records, o álbum foi seguido de uma extensa turnê que passou por 39 países (entre 1991 e 1992) e somou 220 shows. Bíblias do metal como as revistas Hard Rock, Kerrang! e Metal Forces derramaram-se em elogios com o disco que trouxe a primeira certificação da indústria para a banda: “Arise” foi disco de ouro na Indonésia! Ao final da tour, o álbum já era disco de platina pelas vendas de mais de 1 milhão de cópias realizadas em todo mundo. Max relembra: “Começamos a pesquisar e vimos que thrash metal não precisava ser rápido o tempo todo. O lance de incluir groove junto deixa ainda mais legal. Tanto que uma das paradinhas mais legais que já fizemos até hoje é aquela de “Dead Embryonic Cells”. Quando toca não tem jeito de ficar parado”. Leia abaixo o papo na integra!
=> Iggor Cavalera fala sobre o álbum “Beneath the Remains” aqui.
Analisando hoje, parece que existe uma conexão entre os títulos “Beneath the Remains” (1989) e “Arise” (1991). Tipo: passa a ideia de um grupo que brota dos escombros do terceiro mundo para se insurgir contra o que for preciso na busca de um sonho. Isso foi intencional?
Não foi intencional, foi meio que um acidente o nome dos discos um responder ao outro. Primeiro saiu o “Beneath the Remains” (Debaixo dos Escombros), depois veio o “Arise” (Para Cima, em tradução livre). Ficou legal a mistura dessas duas ideias juntas. Até por isso que a gente resolveu fazer a tour agora que é dos dois álbuns juntos. Vamos voltar à época de 1989 a 1991 e misturar as melhores músicas desses dois registros para tocar ao vivo. O lance que rolou entre o “Beneath the Remains” e o “Arise” foi um acidente meio que perfeito.
Uma característica bacana do Sepultura — ou melhor, do seu trabalho, para além da antiga banda — é que sempre rolaram referências/homenagens à artistas que serviram de inspiração, seja na sonoridade, nas letras ou até nas roupas. Nesse caso, por exemplo, “Arise” é também o nome do primeiro trampo do Amebix. Essa relação existe mesmo? E por que sempre tentar mostrar que as influências existem e que são fundamentais para a construção de uma identidade própria?
A gente sempre curtiu o lance da influência e de usar as coisas das bandas que a gente gosta. Até hoje eu sou assim: tenho 49 anos, mas a minha alma é de 15 anos (risos). Eu sigo com as camisas das bandas que eu gosto, que eu quero divulgar, com a jaqueta cheia de bottons e de patches. E tem o lance da influência de nomes de discos também, até hoje. Para o novo do Soulfly, que se chama “Ritual”, a ideia veio do “Ritual de lo Habitual”, do Jane’s Addiction. Tem referência que nem é do metal e que gente pega emprestado de outros estilos de música. O próprio “Roots”, por exemplo. Lembro que na época eu falei para a gravadora que esse seria o nome do álbum e eles acharam que isso parecia coletânea de reggae. Aí, expliquei para ficarem tranquilos que, quando saísse o “Roots” do Sepultura, essa palavra ia ficar conectada ao metal. Até brinquei que apostava todo o dinheiro que tinha no bolso. E, lógico, tem o “Arise” com o lance do Amebix — intencionalmente ou não, não recordo, pois faz muito tempo. Mas acho que foi daí que devo ter tirado a inspiração, porque a gente ouvia bastante punk naquela época.
Outra questão que tem a ver com isso é que o “Arise” não é um disco de thrash tradicional, o que desafiava os padrões da época. Ali tem, além do flerte com o death que já era forte no som da banda, elementos do industrial (talvez influência do Ministry, com quem o Sep excursionou) e até umas batucadas — algo que depois ficaria mais visível nos trabalho posteriores. Como foi construir essa diversidade dentro da unidade?
O “Arise” foi construído diferente do “Beneath the Remains”, até pelas condições que a gente tinha. “Beneath” foi gravado de noite, no estúdio Nas Nuvens (RJ). Então, foi uma coisa mais desesperada. O “Arise” foi mais relax. Estávamos no estúdio Morrisound, na Flórida, que era o templo do death metal. A gravadora nos alugou um carro, tinha hotel. Estávamos começando a ficar mais confortáveis como músicos para poder fazer o que se queria. Musicalmente, tem a ver com a nossa própria curiosidade. A faixa-título é o epicentro do death/thrash, com elementos desses dois gêneros combinados da melhor maneira possível. Tem ainda as experimentações. Tipo “Dead Embryonic Cells” com uns barulhos eletrônicos, de umas máquinas, no começo. “Desperate Cry” traz um pouco de sintetizadores e guitarra limpa. “Altered State”, acho, é o primeiro lance tribal do Sepultura. Aquela intro foi gravada nos Estados Unidos com um cara do estúdio que fazia uns lances para videogame. Ele criou esse som que é meio vodu/ tribal/ eletrônico. E nossa curiosidade nunca parou. Com o “Chaos A.D.” (1993) isso aumentou e com o “Roots” (1996) foi o ápice. Quando eu ouço o “Roots” acho legal porque, além do lance tribal, tem bastante peso, tem bastante punk. “Dictatorshit” é bem thrash. A nossa curiosidade sempre andou de mãos dadas com o próprio metal, e nunca tivemos medo de experimentar, desde o começo. Se você monta uma banda e faz as primeiras demos, já tem quem fale que o cara é “vendido” porque gravou algo. É impossível agradar a todos. O pior que se pode fazer é tentar agradar todo mundo. Tem que fazer o que se gosta e acredita, e não ter medo de fazer. Tem de ter o risco para rolar a recompensa.
Pelo menos até aquele momento, acho que não é exagero dizer que o “Arise” tem os riffs e as letras mais irados da sua carreira até então. Concorda? Tem até referência ao escritor Augusto dos Anjos. De onde veio tanta inspiração?
Tem bastante referência distinta no disco. “Under Siege” é influência do “A Última Tentação de Cristo” (filme de Martin Scorsese). Eu até peguei um pedaço das falas e botei na música. Tem ainda “Murder”, que é bem simples, e fala sobre violência. A própria “Arise” eu acho bem bacana. Tipo no final, quando fala que a religião tenta fazer algo, mas os problemas continuam. Aquela parte também na qual diz “eu vejo um mundo velho, eu vejo um mundo morto”. É o que a gente estava sentindo na época sobre o mundo ao nosso redor. Outro lance legal do “Arise” é que as músicas são catchy (cativante). “Desperate Cry” tem o refrão “Creation of insane rule/ All we hear, desperate cry”, que é forte, a galera canta junto. A parte de “we’re born with pain” de “Dead Embryonic Cells” também. Tem muita coisa relacionada com dor, guerra e raiva. É um disco nervoso. O jeito que eu vejo é: o “Beneath the Remains” é um pouco mais animal, e o “Arise” é uma espécie de parte desse animal. Só que sem tanta velocidade, pensando mais num lance de ritmo. Começamos a pesquisar e vimos que thrash metal não precisava ser rápido o tempo todo. O lance de incluir groove junto deixa ainda mais legal. Tanto que uma das paradinhas mais legais que já fizemos até hoje é aquela de “Dead Embryonic Cells”. Quando toca não tem jeito de ficar parado.
Qual a lembrança mais bacana você tem do teu irmão (Iggor) referente a esse trabalho? Algo que ele compôs ou fez e que te marcou. Por qual razão?
Gravando a própria “Arise” quando ele deu aquela virada meio Dave Lombardo no fim do solo. Quanto ele gravou aquilo foi: “CA-RA-LHO! Como tu conseguiu fazer isso? Que loucura!”. O final da “Desperate Cry” também, que ele não estava conseguindo gravar. Ele tentava, tentava, e o produtor ia ficando puto. O Iggor também já tava irritado. Aí ele jogou as baquetas na parede, chutou o bumbo e o produtor disse: “vai descansar no hotel e volta amanhã”. Quando chegou no dia seguinte ele fez no primeiro take, detonou! O Iggor nunca aprendeu música, nunca teve uma aula de bateria, por isso que as coisas que ele criou nesses discos são impressionantes até hoje. Tem baterista que estuda o que o Iggor fez e não consegue entender.
Como é revisitar as composições desse álbum hoje em dia? Que tipo de recordações vêm à mente promovendo essa volta no tempo?
O lance da nostalgia é muito forte. É o tipo de situação em que você e o público viram uma coisa só. A gente meio que esquece a história de que a banda rompeu, que teve as tretas. É o momento em que nada disso importa, o que vale é a música que estamos tocando. Às vezes eu fecho os olhos e o tempo volta, parece que estamos em 1989. Eu falei isso no show em Fortaleza, quando abriu uma roda insana, com um subindo por cima do outro. Uma volta no tempo mesmo! É um dos lances mais satisfatórios para o músico tipo eu, que estou com 49 anos e já fiz tanto na carreira. Ter a possibilidade de recordar e tocar clássicos antigos, ao mesmo tempo em que estou fazendo música nova com o Soulfly e com o Cavalera Conspiracy, é muito legal!
Qual a faixa do “Arise” que tu mais curte para tocar ao vivo?
Véio, tem de ser “Desperate Cry”, que é muito foda. Ela pega mesmo! É o groove, os riffs, o refrão, os dois bumbos… Ela é foda. Toda noite ao vivo é muito foda. Para mim é a mais legal de tocar ao vivo.
Bicho, e o lance de fazer cover de “Orgasmatron”, do Motorhead: por que escolheram gravar releitura desse som especificamente? É real que você gravou os vocais doidão e, no outro dia, nem lembrava que tinha terminado as partes de voz? Conta pra gente essa história, por favor!
Quando eu achei “Orgasmatron” eu estava chapado. A primeira vez que ouvi acho que estava em São Paulo. Tinha bebido pra caralho e estava no meu quarto. Botei para ouvir bem alto, comecei a bangear e pensei: “cara, que música doida, temos de fazer esse cover!” E quando eu fui gravar eu queria estar num espírito bem Lemmy, que é ficar doidão. Aí tomei bastante rum com coca e detonei. Na foto que aparece na contracapa do disco meu olho mal abre porque foi feita no dia seguinte da gravação. Eu tava com uma ressaca fodida, com a cabeça estourando, mal conseguia ficar de olho aberto. E tinha de fazer essa sessão de foto. Não lembro muito da gravação, mas acho que saiu legal.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal. Entrevista cedida pela Abstratti Produtora.
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