texto por Ismael Machado
fotos por Rogério von Krüger (veja galeria completa)
Ao longo dos tempos uma discussão parece interminável no mundo da música pop. Há os artistas e bandas que ganham notoriedade (na maioria das vezes cult) por apostar em experimentações, invencionices, radicalismos e fugas do ‘formato’ clássico do rock ou pop. E há as bandas que insistem numa sonoridade moldada em uma formatação mais inserida numa tradição musical que, aparentemente mais simples, consegue atingir camadas e camadas de beleza e profundidade. Algumas falas de artistas trazem essa discussão velada. Na abertura/manifesto de seu primeiro disco, Chico Science provocava: “cadê as notas que estavam aqui? Não preciso delas, basta soar tudo bem aos ouvidos”. Lou Reed cutucava a ferida: “quatro acordes e o rock já vira jazz”. Nos anos 80, Paula Toller provocava na Bizz: “as bandas undergrounds sonham em ser mainstream”.
O escritor Nick Hornby também fez referência a isso no final do livro “31 canções” ao se referir a um pequeno show de Patti Smith, citando o fato de que era apenas uma canção pop de três acordes e como tal, podia qualquer coisa. Mas talvez Renato Russo tenha sido ainda mais feliz quando, ao tentar explicar o alcance da banda, disse que as canções da Legião eram ‘amigas’.
Essa frase vem à cabeça ainda no meio do show da Banda Mais Bonita da Cidade, no festival Levada, no Rio de Janeiro, na noite de 08 de junho. Esse é um caso típico de grupo que parece despertar paixões e narizes torcidos quase na mesma proporção. Os detratores maldizem o clip fenômeno de “Oração” e a postura meio comunidade alternativa-hippie dos novos tempos da banda curitibana. Os fãs não se importam nem um pouco com isso. Sabem que, no fundo, o que importa são canções. Músicas que sem querer apelar para nenhuma inovação formal (e o que seria isso mesmo?) capturam sensações, emoções genuínas e trazem sim, uma espécie de cumplicidade entre banda e público. Essa é uma lição que bandas como Smiths, Legião, Beatles, Teenage Fanclub, Wilco, REM etc, já ensinaram de mil formas possíveis.
É interessante notar que entre o público do show havia crianças de menos de 10 anos de idade e velhos beirando os 70 anos. Entre eles, o público ‘comum’ da banda, jovens entre seus 20 e poucos anos. As crianças fazem coro chamando o nome da vocalista Uyara e um casal velhinho logo atrás comentava entre si ‘muito bom’.
Uyara é a melhor vocalista da geração dela. A frase pode parecer presunçosa, mas é só comparar sem paixões. Quem tem o domínio que ela tem dos fraseados, quem segura bem canções de formatos tão diferentes quanto ela? Como uma Maria Bethânia dos novos tempos, Uyara canta descalça e com tons de dramaticidade nos gestos que imprimem uma sinceridade a tudo que canta de forma emocionante. É emoção que se espalha, por exemplo, quando vem a trinca de “Atriz”, “Triste, Louca e Má” e “Tigresa”. A referência a Francisco El Hombre e um dos melhores hinos feministas dos novos tempos abre espaço para uma reinvenção de sentido do clássico de Caetano Veloso (que a tigresa possa mais do que o leão, que a tigresa seja respeitada, possa andar na rua sem ser agredida).
Uyara dança e se movimenta no palco como estivesse em uma festinha de casa. Como se estivesse entregue ao som que vem das caixas, sem se importar muito com o que está ao redor, sentindo os riffs, o ritmo, a batida, a energia toda. E a banda é de uma coesão que impressiona. Vinícius Nisi no teclado, Marano no baixo, Luís Bourscheidt na bateria e Thiago Ramalho na guitarra conseguem imprimir peso e intensidade quando necessários e leveza e simplicidade nos momentos corretos. É da Banda Mais Bonita da Cidade a melhor versão de “Trovoa”, de Mauricio Pereira, já um clássico contemporâneo da música brasileira. A letra imensa, emotiva, cortante, apaixonada, ganha contornos de emoção genuína, de arrancar lágrimas do público. O mesmo que canta a plenos pulmões “Se Eu Corro” e “Boa Pessoa”, lá do primeiro disco.
A última música, “Oração” começa no palco e termina na rua, em plena calçada da Avenida Graça Aranha, numa roda onde, mais uma vez, a definição de Renato Russo ganha sentido: são canções amigas. Tem quem ache piegas falar de amor e amizade em canções simples. Raul Seixas ironizava esses ‘descolados’ desde os anos 70. Em “Tu és o MDC da Minha Vida”, ele dizia que ia ter com a moçada lá do ‘Pier’, mas sabia que para eles era ‘careta falar de amor’.
E isso retoma o primeiro parágrafo desse texto. Se para os descolados David Bowie tinha discos em que inseria lados b estranhos como em “Low” ou “Heroes”, é com uma canção em seu formato mais tradicional (“Heroes”, por exemplo), que ele alcança de uma forma intensa os corações de fãs (não à toa a música já fez parte da trilha sonora de mais de 10 filmes). O final de “As Vantagens de Ser Invisível” mostra a força de uma canção.
Há sempre quem prefira as experimentações que o Radiohead fez depois que abandonou o formato canção pop. Mas há também os que preferem pegar na mão da pessoa amada ao som de “High and Dry”, quando a banda canta “não me deixe mal, não me deixe sozinho/ Essa é a melhor coisa que você já teve/ A melhor coisa que você sempre, sempre teve”. Voltando para casa, emoção à flor da pele, lembrando de “Trovoa”, reflito nessa possibilidade de escolha. Que canção você escolheria para lembrar uma época, uma geração? Quais as canções você irá lembrar daqui a 10, 20 anos? E quais te farão ficar emocionado, saudoso, feliz, melancólico, nostálgico? Eu fico com minhas amigas, as canções simples e profundas, de letras que falam de mim, de ti, de nós.
– Ismael Machado é jornalista, escritor e roteirista. Lançou o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”.
Nesse sentido de crítica/público e experimentalismo/canções pop acho que o artista que mais conseguiu balancear isso é o Nando Reis. O cara consegue tocar em vários tipos de rádio (da Alpha FM até a Kiss FM) e suas músicas tem boas letras e arranjos.
é verdade…e carrega um monte de narizes torcidos contra…mas os três primeiros discos dele são muito fodas.