por Leonardo Barbosa Rossato
Com 12 anos de atraso, finalmente o romance de Irvine Welsh, que resultou no filme de Danny Boyle – e que marcou uma geração, ganha edição nacional.
Em “Trainspotting” (Editora Rocco), o romancista que entendeu que “tudo estava mudando, as pessoas estavam mudando, a música estava mudando, até as drogas estavam mudando”, consagrou-se, com sua linguagem crua, extremamente coloquial – fonética como dizem os tradutores Daniel Galera e Daniel Pellizari (da Livros do Mal) – exibindo o espírito niilista de um grupo de jovens que renunciou a uma vida adulta, que nunca daria uma parcela de prazer do que um simples pico. “Por que escolher tudo isso se você tem heroína?”, já falava Mark Renton no antológico começo do filme.
O livro, diferente do filme, é embalado por várias vozes, que vão se tramando em fragmentos sem ordem cronológica e explicações, fazendo até que um narrador em terceira pessoa interceda por vezes, e que personagens com pouca expressão na trama narrem suas aventuras para depois sumirem ou ficarem na memória do próximo fragmento. Como lembrou o escritor Joca Reiners Terron escrevendo para a Folha de São Paulo, Irvine Welsh deforma a realidade dos personagens através da droga num expressionismo de uma visualidade distorcida que é possível remetê-lo ao grande romance de William Burroughs, de “Almoço Nu”.
Por essa radicalidade visceral de sua linguagem é aconselhável cair de cabeça na estrutura do romance, mesmo quando até é possível ouvir as músicas do filme tocando. O livro faz ressoar na memória Iggy Pop e Lou Reed e é retrato duma geração que ainda não via com bons olhos o novo mundo sociocultural que surgia. É por isso que Renton (é também impossível lê-lo e não pensar no Ewan McGregor sorrindo sarcasticamente) acaba sendo o personagem principal do livro. Ele é o único no grupo que possui essa visão: que se Edimburgo continuava aquela mesma merda de sempre, pelo menos em outros lugares, os êxtases eletrônicos-sexuais-comportamentais eram outros. Não é à toa que ele foge com o dinheiro da turma, conseguido numa transação com a venda de heroína. Renton não tem remorso nenhum. A não ser por Spud, claro. Vai pegar a grana e ir pra Amsterdam. Será que ele escolheu a vida?
O mais interessante na história de Welsh é como os personagens de “Trainspotting” não possuem o mínimo de idealização que outros livros e filmes necessitam, para, assim, tornar simpáticos e romantizados para um público ávido de explicações psicologizantes. Renton, Sick Boy, Spud, Begbie, Segundo Lugar, Tommy e Madre Superiora usam drogas, roubam, brigam em pubs, passam horas discutindo coisas insignificantes, tratam as mulheres como objetos, roubam do sistema público de saúde, numa fuga desenfreada de seu próprio mundo. Existe coisa mais assustadora do que fantasmas pessoais? A fuga, no final, acaba sendo a única saída. Porque eles sabem que estão numa viagem de trem rumo ao nada, fugindo até de si mesmos, entremeados numa linguagem literária que só acentua o desespero de não poder dar mais um pico.
A virtude da tradução de Galera e Pellizari foi manter o pique do livro, abusando nos palavrões e nas gírias e mantendo o humor irônico de Welsh à flor da pele. E entre o filme e o livro, qual se sai melhor? Difícil dizer, pois esse não é o caso de um livro fodaço que rendeu um filme mediano. É um livro fodaço que rendeu um filme fodaço. A narrativa textual e a cinematográfica se juntam, se unem e, por fim, ampliam a observação do território explorado com inteligência por Irving Welsh: o de uma geração perdida. Numa palavra: fodaço.
TRECHO
“A sociedade inventa uma intrincada lógica falsa pra absorver e mudar as pessoas que têm um comportamento fora do normal. Suponhamos que eu conheça todos os prós e contras, que saiba que terei uma vida curta, que tenha uma cabeça no lugar, etc, etc., ms que ainda assim queira usar heroína. Eles não vão deixar. Não vão deixar porque isso é visto como um sinal do seu próprio fracasso. O fato de você simplesmente rejeitar o que eles oferecem. Nos escolha. Escolha a vida. Escolha pagamentos de hipoteca. Escolha máquinas de lavar. Escolha carros. Escolha ficar sentado num sofá assistindo a programas de auditório que atrofiam a mente e esmagam o espírito,enfiando uma merda de junk food goela abaixo. Escolha apodrecer mijando e se cagando em casa, um constrangimento total pros pirralhos egoístas e fudidos que você gerou. Escolha a vida.”
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