Entrevista: Rapha Moraes e The Mentes

por Marcos Xi

A relação de um assessor com seu artista é bem mais detalhada do que simplesmente ficar tentando emplacar uma notícia nos veículos de impressa por ai. É necessário entender muito bem o seu produto, criar alguma proximidade e confiança com o cliente, verificar público alvo, conteúdos disponíveis, detalhes para acertar, para então partir para uma estratégia de lançamento do material. O que vocês vão ler abaixo não é uma simples entrevista. É, na verdade, um apanhado de todas essas conversas que vou tendo com um desses clientes, Rapha Moraes, durante os últimos 6 meses.

Rapha é um daqueles inesperados seres que surpreendem. Ele poderia trabalhar com venda de queijos, um dos pontos fortes da sua pequena cidade, São Luiz do Purunã, no interior do Paraná, ou levar uma vida pacata, mas decidiu subir em palcos para interpretar personagens em peças musicais, num desafio onde se expressar e ser entendido era o grande prêmio. Na música fundou e levou por muito tempo o baixo da influente banda curitibana de pop rock Poléxia, que geraria músicos como Lemoskine e hits para a Banda Mais Bonita da Cidade, além de ter um disco produzido pelo John Ulhoa, do Pato Fu.

Na sequencia veio o Nuvens, um projeto pessoal que misturava sua veia de ator enquanto trabalhava um conceito ainda mais rock. Funcionou até que numa viagem Rapha se descobriu livre e resolveu cantar mais sobre si próprio no disco solo” La Buena Onda”, talvez seu trabalho mais reconhecido e mais leve, baseado em violões e violoncelos e deixando muitos jovens corações aquecidos. O caminho de seu primeiro disco solo acabou levando-o para São Paulo, uma cidade que o distanciou de sua origem e o fez repensar seu caminho. A exposição e o mercado feroz proporcionado pela cidade o faziam mal e, assim, mudou tudo, de novo.

Com a benção de Arnaldo Baptista (Os Mutantes), que sugeriu o nome do novo projeto, Rapha Moraes se juntou aos seus velhos amigos de infância para montar a The Mentes, criando assim o velho vínculo com a cidade e seu interior que tanto lhe faltava. Ao lado de Allan Yokohama, também ex-Poléxia (e também ex-Terminal Guadalupe), teceu críticas e poemas sobre o homem preso a sua urgência, aos afazeres impostos e a pressão da sociedade por resultados, transformando tudo num convite a se entregar de volta ao nosso lado primal real e interior – tal como um “Cabeça Dinossauro”, mas sem todo o prisma caótico dos Titãs.

Em “Corações de Cavalo”, seu novo disco, Rapha Moraes só quis refletir todas as ausências de seus últimos anos, fazendo de suas músicas algo muito mais do que simplesmente aquecer corações, mas também aconselhar e lembrar aos que o ouvem que são livres para viverem a própria vida. O álbum aponta o que enxerga como erro, mostra solução e se auto exemplifica como um resultado positivo. O otimismo sempre foi um destaque em tudo o que Rapha faz. Talvez por isso sua música soe como esperança e não crítica social.

Por essas e outras, achei muito interessante separar este conteúdo como uma reportagem, pois é justamente a forma mais pura e interior que o cantor consegue explicar o interior de seu material. Há informações aqui que nenhuma entrevista de divulgação conseguiu tirar até agora, momentos interior e boas lembranças de papos entre dois amigos conversando. Claro que muita coisa pessoal foi tirada ou editada, focando apenas no conteúdo pensado para o disco. O artista também aprovou antes a escolha das perguntas e suas respostas, afinal, ainda é uma relação de confiança entre um assessor e seu cliente. Adentre esse universo.

21/2/2016 – 22:54 Primeiro papo. Rapha tinha me convidado para trabalhar o disco e eu pedi para ouvir o material primeiro. A primeira mix era extremamente suja, ruidosa e bagunçada. Senti o impacto de conhecer um artista doce jogar tudo para o alto e virar seu som para algo mais cru. Estranhei, duvidei, questionei. Tentei entender do que se tratava. Quem você foca como público para este disco? Acho que seria mais interessante você me dizer, pelo que você está ouvindo, que público você acha que pode se interessar pelo disco.

Eu não sei. Esse é o ponto. Por isso estou pedindo a sua ajuda. Estou buscando entender melhor, porque para trabalhar num disco eu preciso entender ele, para quem e como devo trabalhar. Sim, claro. Bom, eu o acho um disco experimental e um disco roqueiro. É o que sinto. Do pouco que senti do contato dele com o mundo percebi pessoas reagindo com ele e relacionando a Mutantes, rock setentista, algo mais maluco, e justamente, menos óbvio. Independente de isso ser bom ou ruim, mas é o que sinto. Isso do que eu percebi dos feedbacks. Essa galera tem curtido bastante o disco. Acho que tem uma sintonia com esse público que esta mais aberto para ouvir sons diferentes e menos “bonitos”, mas em relação a segmentos específicos que tão rolando, não vejo ele dentro 100% de nenhum.

Acho que o maior problema sou eu e seus fãs já termos te desenhado 100% num nicho específico. Tenho certeza disso. Apesar de me sentir incomodado com isso, estou feliz por também não me importar tanto, porque estou bem desprendido do que podem achar, de quem já me desenhou 100% e se fechou a ideia pelo La Buena Onda (mesmo eu já tendo muitos outras bandas diferentes antes). Venho nesse processo que culminou no disco faz dois anos já. Então sei o que me levou a ele e sei que vai ser uma ruptura gigante.

Parece que você está sacando ainda ao todo o próprio disco que criou. Realmente, acho que pode ser que eu ache que entendo o som que criei e daqui um tempo perceba realmente que não foi ao todo mesmo. Estou muito dentro pra olhar 100% de fora. Eu mais sinto ele do que racionalizo. Foi um disco passional… sem objetivos pré-formatados. Bom ou ruim, fácil ou difícil, ele é um disco único. Não é reprodução de caminhos e nem continuidade. Independente do que vai rolar com ele, se alguém vai entender ele ou não, ele é único e tem esse desprendimento com “as regras” do mercado. Ele é música feita quase artesanalmente por mim e pelo Allan. Num processo criativo que buscou a desconstrução da gente mesmo durante o processo, além da liberdade pra fazer o que nos emocionasse na hora.

Qual é o tema recorrente no disco? Bom, o nome do disco é “Coração de Cavalo”. O tempo todo ele fala, por um caminho ou outro, da luta do homem com sua própria natureza mais selvagem, por isso a capa é um homem e um cavalo, como numa luta. É um grito de desencontro da própria natureza. Ele surgiu assim: quando eu estava morando em São Paulo fui me distanciando de mim e uma hora não aguentei mais. Me vi querendo me adaptar ao mundo, ao esquema, e me vi distante da minha natureza. Vim morar numa chácara perto de Curitiba, vivendo em contato direto com o mato, mais distante do grande centro. Metade do disco foi composto em SP e o disco foi feito aqui na chácara. Por isso disse que a proposta do álbum foi justamente mais do que o resultado. O processo dele, o tesão de fazer, a desconexão com a máquina… Tem muitos cavalos aqui por perto e desde Sampa já tinha me vindo esse nome do disco. Quando vim morar aqui a conexão com esse animal foi gigante. Muitas vezes eu e o japa (Allan) estávamos gravando ou pre produzindo e saiamos andando no mato e encontrávamos os cavalos por ex. Foi uma metáfora recorrente pra esse disco rústico, eu diria. Então, quando fui para Sampa, vendi meu carro pra me bancar um tempo. Era pra eu ter ficado mais um ano pelo menos, mas quase desisti da música. Já não tinha mais tesão. Voltei pra cá e fiquei bastante tempo isoladão, sem carro… É longe da cidade. Só quando o japa vinha ou a família, às vezes. Depois que fui voltando paro mundo aos poucos. Agora já sou curitibano novamente, praticamente (risos). Lembro de ter pregado o ultimo quadro na parede do ap que tinha alugado e depois de tudo que tinha rolado em São Paulo e falei “putz! Não é o que eu quero.” Ai larguei tudo e voltei.

O que rolou em Sampa, cara? Ah, rolaram coisas legais. Mais pessoas surgiram pra curtir o som, galera legal. Rolou o prêmio Saraiva em que o disco ficou entre os três premiados no Brasil, rolaram coisas bacanas. Mas putz! Eu comecei, por mais que seja um trabalho, comecei a tocar na vida por amor, tesão mesmo. Passou a virar nóia! Achei tudo muito nóia. Uma busca muito grande para o som rolar. Não só minha, mas em geral mesmo. E aí entra num processo mecanicista e o prazer some. É foda ganhar dinheiro com música, e como pra sobreviver precisa de dinheiro e SP é cara, é fácil ver a galera se batendo um monte pra conseguir um caminho. Resolvi vir pra cá diminuir o custo de vida absurdamente e fazer o som que estava a fim, no ritmo do som e não do mercado. Enfim, é um lance muito pessoal. O “Corações de Cavalo” surgiu disso. Por mais que a gente precise entrar no esquema do mundão e se adaptar, tem uma natureza selvagem, um coração de cavalo que nem sempre tá a fim de ser domado. A ideia é essa. Fazer o disco foi do caralho! Inesquecível. Parecia que eu e o japa tínhamos 15 anos novamente. Já valeu a pena.

Eu fiquei meio mal depois que me mudei para Salvador. Foi uma escolha péssima em questão de vivencia. Basicamente deixei de ser músico, perdi meus amigos e só trabalho aqui. Me sinto sufocado… É foda. Em Sampa senti isso mesmo tocando bastante porque tudo parecia muito “business”, até no alternativo. Por isso minha primeira atitude quando voltei foi ligar pra um grande amigo das antigas pra fazer o disco comigo. Queria estar perto dos amigos e fazer som como quando eu tinha 13 anos e tocava na garagem. Foi incrível ter ido pra Sampa, se não nem tinha mudado nada e não teria rolado esse movimento. Em relação ao disco, você já percebeu ouvindo ele que não tenho a menor vontade de que ele faça “sucesso” nos moldes do “mercado”. Do que já rola por aí. Mas acredito que tem outros “Corações de Cavalo” pelo mundo que podem se identificar com um som mais artesanal e rústico, sujo e espontâneo. Por isso falei àquela hora que o que o torna difícil, pra mim é o que faz dele especial…

Assumir que ele é um disco ‘especial’, que não é universal, mas é sincero ao coração de quem se sente sufocado. É isso aí. Até porque o que é “universal” hoje não me interessa nem um pouco. Fugi disso e putz, não gosto do que tá rolando de “universal”. Prefiro o meu caminho, mesmo que torto. É aquele lance, estou fazendo exatamente o que quero. Se tiver alguém que se identifique, animal, vamos juntos. Se não tiver, o processo já foi realizador e emocionante. Tem muita história por trás das gravações que nunca rolariam num estúdio

24/5/2016 – 13:06 Já com o trabalho iniciado e a estratégia desenvolvida, começamos a destrinchar conteúdo por vez. O primeiro lançamento foi o clipe de “Natureza Selvagem”. Decidimos também enviar para as mídias um kit com CD, chaveiro de camisa de força, release em papel especial e um certificado de Demência provocado pela cabeça presa na metrópole. A ação rendeu bastante resultado, mas demorou muito para chegar ao conceito.

Fala pra mim de “Natureza Selvagem”. Como nasceu? O que você queria passar? Como foi a ideia do clipe? “Natureza Selvagem” fala sobre essa luta do homem com seu lado animal. O homem vive querendo dominar a natureza e transformá-la em bens consumíveis. Mas ela é indomável. E nós somos parte dela também. Tentamos domar a nós mesmos, mas tem em algum lugar dentro da gente, um ser mais selvagem querendo gritar. Fizemos o clipe em São Luiz do Purunã, região onde gravamos o disco. Então foi muito especial viver a energia do lugar que tem uma paisagem dura e crua. Mergulhar no rio, se sujar com a lama e se confundir com o ambiente. E a música e clipe falam sobre isso. Nosso primal. Aquele que adormeceu nos grandes centros urbanos. A direção é mais uma vez dividida por mim e pelo Fernando Hideki. As imagens são dele e a edição minha.

Existe alguma ligação direta do título com o livro “Na Natureza Selvagem”? Existe inspiração, mas de vida. O filme e o livro me inspiraram muito já. Assim como outros. E na hora de colocar o nome na musica esse nome veio forte e me pareceu soar melhor apenas “NATUREZA SELVAGEM”.

E essa história do queijo podre do Pato Fu? Como vamos mandar os materiais para a imprensa? Sério. Vi um documentário, ou algo assim, deles falando sobre isso (nota do editor: o Pato Fu enviava sua primeira demo, a “Pato Fu Demo”, junto com um queijo mineiro para as redações. Claro, em muitas delas o queijo já chegava deteriorado). Não é sério da gente fazer isso, mas pensar em algo que não seja só o CD. Pensamos em varias ideias toscas, mas nenhuma nos convenceu. Desde o remetente ser “Instituto de THE MENCIA Rapha Moraes”, para o cara já se assustar, até outras coisas mais. Tipo uma ferradura dentro, um saco de sementes ou ervas pra um chá, etc. Coisas que tenham a ver com a proposta.

29/05/2016 – 21:34 Na sequencia, um bate papo para entender as expectativas desse recomeço.

Estou sacando nada de São Paulo, então nem sei que casa indicar. La é bacana, mas acho que o lance é fazer na raça, seja como for. Fiz alguns shows meus em lugar desconhecido com um publico relativamente bom em Sampa.

Você já tem um público fiel seguidor lá? Construí com o “La Buena Onda” de leve, mas rolou. Já estava colocando 100 pessoas num lugar desconhecido só pelo show. É uma luta, mas é possível.

Pensei que a experiência em São Paulo tinha sido tensa demais pra você. Foi. Em aspectos interiores, humanos. Com o trabalho foi bem bom, como ser humano foi bem tenso.

Não voltaria nem fodendo, né? Voltaria sim, mas não da forma como foi a primeira vez. Hoje já saberia onde vou pisar. Se for possível não moraria lá, porque não sei se precisa. Mas se, por um acaso, precisar, por trabalho ou sei lá, eu moro sim. Mas já vou preparado e criando caminhos pra ficar bem, nem que seja morar num bairro mais tranquilo ou sei lá o que. Afinal, foi essa agonia toda que me fez compor o “Corações de Cavalo”, começar ele.

Eu não sei se conseguiria. Acho que entraria em colapso. Sim. Lá é uma loucura. Fiquei praticamente doente. A cada quadra tinha fezes humanas! É tipo Sodoma e Gomorra: Dinheiro e ganância a todo o vapor. Quem tem quer mais. Quem não tem vai lá pra ter. É dureza conviver e estar bem. Tive sorte de estar perto de pessoas muito boas e conhecer outras assim também.

30/06/2016 – 00:37 Talvez a parte mais tensa do trabalho seja o lançamento do vídeo de “Arritmia”, segunda canção de trabalho do álbum. O diretor Fernando Hideki tinha voltado de Nova Iorque cheio de imagens significativas de pessoas com olhar de afeto colocando a mão no peito. Era uma alusão a doença que vitimou subitamente a irmã de Rapha em dezembro de 2015. A faixa, que ele compôs para ela, jamais foi cogitada para virar clipe e tudo foi uma surpresa. A grande questão era que Rapha precisava entender e lutar com várias questões internas para deixar isso fluir, como um desabafo.

Está tudo bem, cara? Às vezes tenho umas quedas aqui com o lance da minha irmã e fico meio pra dentro. Me isolo um pouco, mas depois de uns dias eu consigo me reequilibrar novamente. Trabalhar me ajuda muito.

Cara, se distraia. Você precisa. Se entregar é complicado. Verdade, mas faz parte. Não tenho muito controle. Quando estou na correria está tudo certo, mas quando paro um pouco ou por algum motivo me ativa as lembranças, ai abre a comporta. Não tenho muito o que fazer. É importante também passar por isso. Essas catarses ajudam no processo de “cura” ou “entendimento”, pra seguir.

13/07/2016 – 23:03 E a gravação, cara? Foi difícil, mas rolou. Em breve tenho o clipe. Não sei como o mundo vai reagir, mas eu choro mesmo. Foda. Imagens de infância, cara. Achei umas VHS da minha família, eu com minha irmã. Tô que tô a flor da pele esses dias. Tem um lado muito bonito. Ver a gente criança… É forte, mas bonito. Me trouxe uma alegria também, mas mexe fundo de um jeito que não sei nem explicar. Vai ser uma bela homenagem, do jeito que ela merece. Cara… Foi muito difícil pra mim fazer esse material. Agora eu quero que ele chegue a todo mundo e que todo mundo saiba da homenagem e da minha irmã.

20/7/2016 – 11:18 Comentário do jornalista do site Omelete: “Só um comentário, toda vez que assisto o vídeo eu fico emocionado. Parabéns aos artistas e muito sucesso. Um forte abraço.” Tá foda. Postei o vídeo e desabei. Chorei pra caralho. Veio tudo pra fora.

22/7/2016 – 20:07 Quando falei com a menina do Tenho Mais Disco Que Amigos, avisei que ela ia se emocionar. Que bom que ela gostou. Está forte mesmo. Mas cara, estou me sentindo muito bem agora. Me fez bem colocar no mundo essa homenagem e esse material.

Foi um desabafo publico. Uma consulta publica ao terapeuta. Só tem a fazer bem. Com certeza, cara. Deu um receio da exposição, mas ao mesmo tempo, foi bom. Está sendo bom.

31/7/2016 – 18:04 Após tudo e já chegando ao fim do nosso contrato, chegou aquele momento de rever o trabalho, colher resultados e olhar tudo que foi construído. Além disso, no sábado ele fez o show de lançamento em São Paulo e na sexta seguinte em Curitiba.

Como foi o show? Foi lindo, cara! Emocionante mesmo! Muito melhor do que eu esperava, do que todos nos esperávamos. Porra! Foda! Galerona cantando, pirando, pulando, gritando… Foi especial. Um grande ritual de iniciação pra liberdade!

Qual é a sua fase mais ‘famoso”? Poléxia? Nuvens? La Buena? The Mentes? Acho que nenhuma. De verdade, nenhuma. De leve, todas. Teve uma fase bem boa da Polexia, outra bem legal da Nuvens, outra bem bacana do “La Buena Onda”, mas a mais promissora me parece essa de agora.

E você está animado ou tem algum medo dessa fase? Muito animado. Acho que porque estou feliz com o que estou fazendo e com quem eu estou por perto. Tenho orgulho desse disco.

Eu sinto muito mais sinceridade desse disco do que do “La Buena Onda”. O anterior pega muito o momento da música brasileira, mas não é aquilo inédito. É mais um retrato daquele momento seu. O “Corações” pega muito mais uma questão global, mais forte, algo de coração seu, mas que é um convite a todos. Então você canta não só sobre você, mas para todos. Fora toda a ideia de concepção do disco e seus motivos. A escolha do local de gravação, timbres, estilos das músicas… Você não precisava fazer esse disco assim. Talvez o disco fizesse um puta sucesso se fosse mais uma obra de amor, de neo MPB paulista e conquistasse jovens corações. Mas acho que você se preocupou muito mais em ser você e passar isso como um cobertor esticado a todos que ouvem do que apenas querer fazer música pra vender e falar de si. Perfeito. É isso mesmo. Foi essa a busca, um “caminho pra dentro de si” e ai a arte saindo a partir disso, sem pensar no fim, só na origem e no processo. Quando ensaio ou subo no palco o som me fortalece, meus amigos também. Acho o disco um retrato de um momento corajoso meu, de muita força e nos dias que não estou bem, se toco o disco, no ensaio ou no palco recobro minha força. É muito louco isso.

Eu tinha uma puta dúvida se o trabalho ia render, porque não é um disco fácil e é você se virando ao que te trouxe a frente. Na real, eu até hoje sou contra você usar o The Mentes, mas quando eu te perguntei se o disco já tinha ido pra prensa, eu deixei isso quieto. Acho que era para ser tipo The Mentes a banda que te acompanha, tipo a Cê do Caetano Veloso. Não te deu medo de jogar tudo para o alto e dar merda? Com o disco não, com o nome sim. Mas com eu queria mudar mesmo. É muito bom curtir esses frios na barriga e construir “novos começos”. Principalmente porque o foco não era o resultado. Realmente o foco sempre foi o processo, por isso o medo não existiu como poderia existir. Quando a gente foca no que sentimos e queremos, ficamos mais forte. Ficar muito preocupado com o olhar dos outros gera insegurança e a partir daí nada sai direito mais, como poderia ser.

Fora que você sabe que a chance de aos poucos irem trocando os músicos é bem forte. É. Isso é normal da vida. Pode ser que dure muito ou não. Eu acho que isso pode acontecer. The Mentes pode ser uma banda em movimento. Porém, isso é algo que acontece. Que não tem como controlar. Estamos juntos hoje porque queremos. Não temos amarras ou correntes. E está lindo! O momento está incrível. E o fato de ser “Rapha Moraes & The Mentes” está ajudando em muitas coisas. Criou uma “egrégora” de banda fudida. Está uma energia muito boa, pra cima, positiva. Gosto disso. Faz toda a diferença.

O “La Buena Onda” foi uma coisa muito solitária sua. Viagem, compor sozinho e chamar um ou outro para gravar. O “Corações” tem essa coisa de ser feito com amigos, mesmo que com músicas compostas só por você em São Paulo, o processo do disco é muito coletivo e menos solitário que o primeiro. Sim. É muito meu e do Japa principalmente, pois estivemos muito tempo juntos na produção do disco. Mas também foi do Juninho, da Noélle, do Nico do estúdio, do Biondo que fez a arte. O processo todo foi muito coletivo. E agora na estrada também com o resto da banda, Amandio, Marcão e o Gustav. Grandes amigos em que confio muito. E cara, é uma alegria sem tamanho. Eu realmente amo eles e me sinto amado. É foda isso!

E como você encarou o público do disco antigo para este novo? E como o público te encarou? Cara, em SP foi muito louco isso. Tinha uma galera que me conheceu e seguia o “La Buena Onda”. Todos falaram que se assustaram com o “Corações”. Uma parte disse que se assustou e gostou muito, outra que se assustou e não entendeu. Achou estranho e aos poucos foi gostando, mas falaram que depois do show entenderam tudo. Sentiram e tão curtindo muito. Essa galera se entregou pra gente durante e depois do show. Me surpreendi. E estou muito feliz com a troca que rolou por lá. Mas eu sempre soube que ia rolar o choque e que podia perder todos eles! (risos)

Fã se conquista ou fã se acostuma? Com certeza se conquista. O que fez essa galera se conectar novamente foi o show. Eles me deram uma chance e a outra parte gostou de cara de tudo. Agora eles estão ativos como nunca na internet novamente, pela emoção causada que ficou registrada neles. A semente foi plantada.

Mas é você quem entende eles ou eles que procuram te entender? Eu procuro me entender ou entender alguma coisa (mesmo não entendendo nada). E a arte que sai dessa busca tem que fazer eles sentirem algo, que não precisam entender, mas tem que mexer pra valer. Ninguém entende nada (risos).

Mas, cara, por que passar uma mensagem? Por que não fazer apenas um disco ‘mais fácil’? Você sabe que é um disco ‘difícil’, né? Sei sim, mas aí é o porque de cada um, cada artista. Mas vai mais longe. O porque de cada ser humano, cada indivíduo… Pra mim a arte sempre foi sagrada. Sempre foi importante pra mim. Sempre de alguma maneira me transformou. Uma das sensações mais fortes que tive no fim da época “La Buena Onda” pra entrar nessa nova é que eu não conseguia gostar do mundo do jeito que ele estava. Me incomodava e me incomoda muita coisa que está rolando. Caminhos gerais do comportamento humano. E que o que eu estava fazendo era bonito, mas era um cafuné na cabeça das pessoas. Ajudava a manter o que eu não gostava. Eu oferecia um “remédio” momentâneo, mas só pra acalmar ou dar um pouco de gostosura, mas não muito mais que isso. Percebi que o que eu não queria era que minha arte fosse algo como um “ópio”. Nem pra mim e nem pra quem a escutasse. E que não tinha mais sentido continuar naquele caminho. Precisava fazer algo que eu acreditasse muito, que refletisse minha vida, minhas crenças, meu olhar. Pra me ver em tudo, me achar sincero com tudo e que mexesse comigo. Acho que nunca foi tão urgente uma arte questionadora ou que incomode. Posso não ganhar dinheiro e nem ficar famoso, mas prefiro tocar para 50 pessoas do jeito atual, do que do antigo tocando 1000 pessoas da maneira que eu as tocava antes. Esse foi o espírito e continua sendo. Prefiro ver, como foi em SP, as pessoas na plateia, entendendo ou não o lance, se libertarem das suas rotinas, das emoções que já estão acostumadas. Vê-las se sentindo incomodadas ou com vontade de gritar junto com a gente sobre o que as incomoda. E também falar sobre o amor, por que não? Afinal, o “Corações” é um álbum de amor e da falta dele no mundo.

– Marcos Xi (@marcosxi) é editor e criador do site Rock in Press

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