por Marcelo Costa
Nos anos 80, ele foi vocalista de uma das maiores bandas punks do Brasil. Nos anos 90, saiu em carreira solo e virou punk brega. No novo século, voltou aos vocais d’Os Replicantes para uma turnê na Europa e alguns discos e lançou seis álbuns solo. No primeiro regravou Sex Pistols; em outro fez versões de Iggy Pop e Ramones; em outro resgatou Belchior e Sergio Sampaio. Suas canções não tocam no rádio, mas um excelente público bateu ponto no Sesc Pompeia, quinta-feira passada (23), para vê-lo. Aos 55 anos, Wander Wildner é um herói punk.
Não sei quantos shows vi de Wander Wildner até hoje, mas foram muitos. Uns 20, talvez. Artistas que a gente acompanha de perto costumam nos surpreender, e com Wander não é diferente. Já houve shows inesquecíveis (como sua temporada voz e guitarra no Café Camalehon, na rua atrás da faculdade Mackenzie, e um outro com o Replicantes, em particular, na pequena Funhouse, quando a casa ainda tinha palco e promovia shows, foi histórico), vários shows bons e alguns abaixo do esperado. Quase nenhum foi semelhante ao anterior.
Na choperia do Sesc Pompeia na quinta passada, Wander lançava seu oitavo disco, “Existe Alguém Aí?” (2015), um álbum denso e sofrido que serve como trilha sonora para o momento atual do Brasil. Se toda arte é reflexo do ambiente que a cerca, Wander parece ser um dos poucos artistas que vive neste país atualmente, já que o rock adolescente planejadinho dos programas de TV está mais preocupado com o umbigo, as dores do coração e as da testa do que com o mundo que o cerca, e, no palco, faz cara feia como se tomasse papinha de pera.
Wander, por outro lado, parece sentir na pele os desajustes da nossa sociedade. A expectativa para o show, então, era um retrato depressivo dos dias atuais, mas eis que o bardo punk gaúcho resolveu transformar uma noite qualquer de show em uma festa de amigos tocando todas as canções que os amigos mais queriam ouvir. Se eu tivesse feito o set list do show de quinta-feira provavelmente não teria sido tão feliz quanto ele próprio. Um clima de alegre incredulidade tomou o local, e muita gente terminou rouca no final da noite. Inclusive ele que, conforme os anos passam, se aproxima de uma versão tupi de Tom Waits.
No palco, uma nova banda, mais pesada e entrosada, (Gustavo Chaise no baixo; Eduardo Dolzan na bateria; Jimi Joe e Mauricio Chaise nas guitarra), dava conta do esporro sonoro. A festa (punk) começou com “Astronauta”, hino d’Os Replicantes, uma parceria de Wander com Carlos Gerbase que abre o lado B do vinil “Histórias de Sexo & Violência” (1987), e seguiu-se com o único grande sucesso nacional de Wander (ainda que 90% das canções da noite tenham sido cantadas em coro por cerca de 700 pessoas), “Bebendo Vinho”, logo no começo do show.
Seguiram-se as deliciosamente infames “Freira Desalmada” e “Empregada” (a primeira, uma parceria de fundo de ônibus de turnê com Thedy Correa, do Nenhum de Nós; a segunda do repertório da icônica Graforreia Xilarmônica) mais a densa “Quase um Alcoólatra” (que há tempos Wander não tocava ao vivo) e “Sandina”, outro hino d’Os Replicantes (composta pelo guitarrista e jornalista Jimi Joe). Após esse começo festeiramente absurdo, com fãs de sorriso largo na choperia, Wander mostrou uma música nova “Naquela Noite Ela Chorou”, uma balada sobre a derrota de Olívio Dutra para Lasier Martins nas eleições para o senado em 2014.
Gritos de “Olê, olê, Olê, Wander, Wander” ecoaram pelo ambiente, e o herói punk mostrou-se a vontade para cantar canções ora mais suaves (“O Ritmo da Vida”), de projetos paralelos (“O Último Romântico da Rua Augusta”) e versões (“Candy”, de Iggy Pop; “Amigo Punk”, da Graforreia). Os hits entre os fãs marcaram presença em massa: “Lugar do Caralho”, “Eu Queria Morar em Beverly Hills”, “O Mantra das Possiilidades”, “Boas Notícias”, “Eu Não Consigo Ser Alegre o Tempo Inteiro”, “Hippie-Punk-Rajneesh”, “Lugar do Caralho”, “Um Bom Motivo”, “Rodando el Mundo”…
Do disco novo, “Existe Alguém Aí?”, mais uma canção ecoou na noite (“Numa Ilha Qualquer”), e o bis não poderia ter sido mais especial: “Michael Row the Boat Ashore”, uma canção de escravos do século 19 vertida para o português como “Jesus Voltará” e gravada em versão punk primeiro pela Sangue Sujo (banda que Wander montou logo após sair d’Os Replicantes no final dos anos 80 e que rendeu o clipe abaixo) e depois pelo próprio Wander no álbum “Buenos Dias” (1999) fez a missa pegar fogo. Para o fim, um hino punk brega: “Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo”. Se a música é um anestesiante para as dores do dia-a-dia, shows assim soam como um tanque de glicose para uma vida de ressaca. Seguimos em frente.
Ps. Obrigado pela foto, Bruno Capelas.