por Renan Guerra
Até hoje o cinema nacional ainda vive sob um manto de hipersexualização que o público médio acredita existir. Um dos grandes fatores para essa crença vem da década de 70, onde todo mundo resolveu colocar os peitos de fora na tela do cinema. Grandes sucessos de público investiam num linha de humor e sensualidade, e basta lembrar-se de “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (Bruno Barreto, 1976), que levou mais de 10 milhões de espectadores ao cinema.
Nessa seara da nudez, quem mais sofreu preconceito foram as produções da Boca do Lixo de São Paulo, que geraram o subgênero pejorativo “pornochanchada”, cunhado pela imprensa da época. O termo “chanchada” se refere aos filmes de humor ingênuo e populares que fizeram muito sucesso por aqui nos anos 50, já o “porno” representa aquilo que era considerado pornográfico na época. Porém, é importante resumir e esclarecer: as produções da Boca do Lixo, em sua maioria, não são nem chanchadas e muito menos pornôs.
Thrillers, faroestes, comédias de costumes, dramas existencialistas: a Boca certamente foi o espaço mais múltiplo de produção em larga escala (e independente de recursos estatais) do nosso cinema. Salvo algumas exceções, como Walter Hugo Khouri, a maioria dos diretores da Boca do Lixo trabalhavam na seara dos filmes de gênero e se comunicavam muito bem com seu público.
Em 2015 tivemos um cenário de revisitação dessa época, alavancado pela série “Magnífica 70”, produção da HBO Brasil (com Simone Spoladore, Marcos Winter e até participação de Paulo Cesar Pereio). Aproveitando o embalo, reunimos aqui três filmes que merecem atenção, pois trazem uma noção da qualidade e multiplicidade da Boca do Lixo:
“Karina, Objeto de Prazer”, de Jean Garrett (1981)
Maria do Carmo (Angelina Muniz) é comprada por Rufino (Luigi Picchi) e prostituída sob o nome de Karina, até a noite fatídica em que é colocada como aposta em um jogo de pôquer. Com o fim da partida, Karina deveria se entregar a Lucas (Cláudio Cunha), porém a protagonista se rebela e o mata à queima-roupa. Esse é o plot para uma virada na vida de Karina, que passará desde uma prisão recheada de pesadelos até um futuro relacionamento lésbico. Dirigido por Jean Garrett, português radicado no Brasil, o filme evoca temas sempre usuais no cinema da Boca do Lixo: a objetivação da mulher, a violência masculina e a repressão (em sua maioria sexual, metaforizando a política). Com uma fotografia belíssima e uma trilha sonora pontual (que inclui até Nina Simone em cena suficientemente simbólica), “Karina, Objeto de Prazer” é palco para a sensualidade e força de Angelina Muniz, num filme de empoderamento feminino para deixar qualquer machista de cabelo em pé ainda hoje.
“A Freira e a Tortura”, de Ozualdo Candeias (1983)
Já em tempos de abertura política, Ozualdo Candeias, um dos precursores do cinema marginal brasileiro, escancara suas intenções políticas em um filme que pende sobre incongruências e certos percalços de roteiro, mas que mesmo assim envelhece como um ato de coragem. Um policial (David Cardoso, o “rei da pornochanchada”) é incumbido de investigar uma professora considerada subversiva; no meio das investigações ele descobre que ela na verdade é uma freira, o que complica ainda mais suas relações. Precisando torturá-la na busca de alguma informação, o policial acaba por se sentir cada vez mais atraído por esta mulher enigmática. Essa sinopse já resume a ousadia e as polêmicas do longa: política – repressão – religião, tudo isso num ar de sexualidade dúbia e complexa. Vera Gimenez dá ares de Joana D’Arc a sua freira subversiva, porém quem brilha em “A Freira e a Tortura” é David Cardoso, com uma atuação séria e precisa, até mesmo em seus momentos mais sensuais e canastrões.
“Possuídas pelo Pecado”, de Jean Garrett (1976)
Leme (Benjamin Cattan), um rico aposentado, se sente frustrado por não ter um herdeiro, entregando-se assim a bebida e ao sexo com suas muitas secretárias. Sua esposa, deixada de lado, se envolve com o motorista André (David Cardoso), e os amantes planejam matar o velho e ficar com sua grana. Esse plot clássico de um filme de gênero ganha mais nuances quando a filha da governanta se envolve com André e acaba ficando grávida. Num tom de farsa, o filme evoca as orgias e os excessos dos milionários para dar vida a um roteiro cheio de referências, amalgamadas na figura de Leme, que cita grandes autores e compositores (vide a cena em que ele pede que ouçamos Tchaikovsky). Com uma fotografia estilizada, um ar de galhofa e uma edição ágil (vale ficar atento aos recursos estilísticos em cada passagem de cena!), “Possuídas pelo Pecado” é um dos filmes da Boca que melhor envelheceu. Destaque especial para a figura poderosa de Helena Ramos, como a esposa Débora, e para a sempre sedutora Nicole Puzzi, como a ninfeta Dora.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Bate a Fita
Obrigado pela informação, completamente desconhecido. Joana Fromm agora vê-lo na série Magnifica 70. Eu acho que Magnifica 70 é uma série muito bem estruturado coloca você na década de 70 épicas em São Paulo, Brasil; a ditadura militar, onde o filme era independente e não podia tocar temas tabus; Ele nos leva ao cinema chamado Boca de Lixio. O protagonista da série, Vincent, funciona em relatos de filmes que têm de censurar, (aqui mais detalhes da história http://br.hbomax.tv/movie/TTL607353 ) uma vez assistindo a um filme e está chocado com a estrela, levando-o a Boca de Lixio e onde começou a trabalhar como diretor na produção Maginfica cinematografica. É uma série proposta diferente, no entanto eu acho muito interessante.