por Marcelo Costa
“Eu queria poder controlar tudo o que sinto quando chega o inverno”, canta Marcelo Perdido na faixa título de seu segundo álbum solo, sequencia natural do outonal “Lenhador” (2014), estreia do compositor em 2014. Da estação passada para esta, Marcelo Perdido manteve o produtor João Erbetta, que divide com ele instrumentos e ideias, e apenas outros três músicos acompanham a dupla em quatro das dez canções de um disco predominantemente acústico que reflete a chegada do frio na maior cidade da América do Sul.
Estação que divide ânimos, o inverno já inspirou obras magnificas. O compositor Vitor Ramil analisou a maneira com que o resto do país observava o inverno gaúcho e criou a “Estética do Frio”. O cineasta Eric Rohmer filmou as quatro estações em contos cinematográficos, e, não à toa, no inverno a personagem sente falta de um amor que conheceu no verão. “Here Comes The Sun”, de George Harrison, é um rito de passagem de estações: “Little darling, tem sido um inverno longo, frio e solitário (…) Lá vem o sol, e eu digo que está tudo bem”.
Para Marcelo Perdido, o inverno parece ser amplificado pela frieza da grande selva de pedras chamada São Paulo. “Eu vim para essa cidade atrás de riso, atrás de água, atrás de fama”, ele canta (como Belchior cantou um dia) em “Saturno”, a segunda canção do álbum, ecoando uma estação não tão pródiga em sorrisos numa cidade cuja falta d’agua é um fantasma residente em manchetes de jornais e revistas. Falta riso. Falta água. Falta fluência no amor, Perdido avisa em “Como Ser Feliz Só”, e recomenda: “É preciso aprender… a querer o não querer”.
“O Inverno também é uma percepção pessoal né?”, despista Perdido que, ao lado do produtor João Erbetta, falou sobre as inspirações do disco (“A melancolia me vem dessa forma, observar a dificuldade de viver no frio”), a sonoridade (“Sugeri que fizéssemos algo minimalista, sem grandes instrumentações”, conta o produtor), o clipe de “Cidade Pequena” (filmado numa cidade pequena, Santa Rita do Passaquatro, no interior de São Paulo) e muito mais. Baixe o disco gratuitamente em MP3 clicando na imagem abaixo, e confira o papo. Vale a pena!
“Inverno” é sequencia direta de “Lenhador” no que diz respeito a sua intenção de criar discos com a temática das estações do ano. O primeiro era outonal, esse é invernal. E notadamente acústico. Como vocês chegaram a essa sonoridade?
Marcelo Perdido: Eu queria um disco que soasse diferente da produção habitual de música pop, desde o “Lenhador” busco isso, me afastando da formação clássica de baixo, guitarra, bateria. Em “Inverno” eu queria muito respeitar as canções, as letras, e chamei o Erbetta para arranjar e tocar tudo comigo, juntos, ao vivo, na mesma sala, para manter as músicas mais próximas de um estado bruto, cru e cruel do que a lapidação (muitas vezes o processo de produção é uma lapidação extrema).
João Erbetta: Quando eu recebi o convite para produzir e comecei a ouvir as canções já ficou claro pra mim que teríamos que fazer ao vivo, juntos na mesma sala, sem “click track”, deixando as canções respirarem. Eu também sugeri que fizéssemos algo minimalista, sem grandes instrumentações, mais uma vez pra deixar as canções contarem suas histórias.
Tanto você quanto o produtor João Erbetta participaram do tributo a Belchior, e “Inverno” me lembrou muito ele, principalmente nos textos, essa coisa do “estrangeiro” que sai da cidade pequena para uma cidade grande. O disco, aliás, poderia se chamar São Paulo. É uma cidade fria?
João Erbetta: Eu me mudei para o Rio de Janeiro no começo do ano, depois de mais um ano em São Paulo, vindo de 7 anos vividos nos Estados Unidos. A minha relação com São Paulo é de amor e irritação. Eu percebi que o disco do Perdido era uma visão muito particular da cidade e procurei não me intrometer nas letras, deixando ele destilar o verbo. A minha confusão mental em relação a “onde é minha casa, onde é minha cidade” não me deixaria opinar.
Marcelo Perdido: O Belchior fez uma parada no Rio antes de vir para São Paulo, ele conheceu o lado amargo das duas cidades antes da fama, e acho que o frio não é particularidade de São Paulo… o Rio pode ser bem gelado também, pergunte ao Zé Ramalho! Mas tudo depende do humor do indivíduo, ele confude sua percepção. Você está num momento mais solar, olha um carroceiro em São Paulo e pensa: Que legal a carroça dele foi pimpada por um grafiteiro, ele colocou uma caixa de som e etc. Mas em outro humor você também pode enxergar a crueldade da falta de opção na vida daquela pessoa, que achou uma falha na manutenção do recolhimento do lixo, que deveria ser feito pelo poder público, e ele de forma autônoma consegue capitalizar ajudando a melhorar os índices de reciclagem no pais, mas sendo bem literal… aquela pessoa está recolhendo lixo da rua, sem ser sindicalizado, sem direitos, sem garantia de nada, sujeito a ser atropelado, aguentando buzina e hostilidade no trânsito. É aquele papo do copo meio cheio ou meio vazio, então SP é super fria ou super quente.
Gosto muito da frase “Eu queria poder controlar tudo o que sinto quando chega o inverno”. Em “Ramilonga: A Estética do Frio”, uma obra prima do Vitor Ramil, o personagem percebe a melancolia do inverno e fica feliz, como se encontrasse ele mesmo, sua própria personalidade. Em “Conto de Inverno”, do Eric Rohmer (que fez uma série maravilhosa de filmes sobre as quatro estações), a personagem sente falta do que ela acredita ser seu verdadeiro amor, que ela conheceu no verão (o inverno, para ela, é uma confusão). Vocês parecem optar por uma melancolia mais séria, reflexiva, melancólica. Todos os invernos são assim?
João Erbetta: Adoro o livro do Ramil e cito a estética do frio pra todo mundo, a toda hora. Eu tenho uma ligação especial com o inverno do sul e vou me recarregar com frequência no Uruguai, tão “esteticamente frio” quanto o Rio Grande do Sul. Pra mim é um ambiente natural. Poderíamos ter gravado esse disco em Montevideo.
Marcelo Perdido: O Inverno também é uma percepção pessoal né? O Urso descansa, pois sabe que não poderia sobreviver lá fora; o cavalo tem o trabalho dificultado, pois tem de puxar a carroça pela neve; o cachorro pastoreia, afasta os predadores… mas dorme junto ao dono. O homem que não tem dono para dormir junto, deveria se resguardar e hibernar, pois é difícil sobrevir lá fora, mas os que não podem se dar ao luxo vão continuar puxando carroça. A melancolia me vem dessa forma, observar a dificuldade de viver no frio (seja o gelo da temperatura ou do coração das pessoas).
Diego Sanches, que já havia assinado a arte de “Lenhador”, é o responsável pela capa de “Inverno”, certo? Ele conseguiu traduzir bem o espírito do disco…
Marcelo Perdido: A capa traduz esse pensamento da pergunta anterior, o inverno é diferente para cada um. Assim como os discos se conversam, as capas também, são representações de mim.
Além de você e do Erbetta há poucas participações no álbum: Mariana Corado (violino), Henrique Caldas (rabeca) e Gonzalo Deniz, que canta em “Tudo de Bom”. Como surgiu a ideia de trabalhar com eles?
João Erbetta: Eu adoro o fato de que o disco acabou tendo instrumentos de arco em, creio, cinco faixas. Foi um prazer escrever os arranjos de violino para a Mari tocar.
Marcelo Perdido: A Mari é uma menina que eu conheci por acaso, entrou na minha música e não saiu mais, então quando mostrei as músicas para o Erbetta já avisei que ela estaria no disco em algumas faixas. O Henrique é do interior de São Paulo e nos conhecemos quando eu morava em Lorena e ele em Guaratinguetá, ele é um cara que saca o sentimento de morar aqui em São Paulo, mas ter um canto tranquilo longe da metrópole, por isso quando escrevi “Todo Lugar” quis que ele gravasse rabeca na música. O Gonzalo é um dos meus cantores/autores favoritos, eu sou apaixonado pelo projeto solo dele, o Franny Glass. “Tudo de Bom” fala sobre pessoas que estão morando em São Paulo e se encontram para uma fatídica cerveja, uma re-interpretação do samba “Amigo é Para Essas Coisas”, só que a conversa em 2015 é mais esquizofrênica e superficial… Os versos que o Gonzalo cantam são do estrangeiro otimista que acaba de chegar e ainda tem um deslumbramento, então o sotaque uruguaio dele cabia perfeitamente na música. Essa música tem meus versos favoritos sobre São Paulo: “Ana fez massa sem molho, é a cara de São Paulo”, a cidade que tem o Bexiga, a colônia italiana, mas pessoas sempre tem pressa e não conseguem viver isso do jeito certo.
A faixa “Saúde” chama bastante a atenção numa primeira audição. Como ela surgiu?
Marcelo Perdido: A falsa preocupação com a saúde, ou a verdadeira preocupação que acaba sendo deturpada, o cara que vai para academia para paquerar, o atleta que cheira pó, o pneumologista que fuma Marlboro vermelho. Tá na moda “cuidar” da saúde, alimentação orgânica, suplementos etc, mas, como tudo… na prática a gente não segue a risca, vira qualquer coisa… Eu tenho tentado me cuidar mais graças a minha mulher, ela é mais ligada nisso e tá ajudando no processo.
“Cidade Pequena” é o primeiro clipe do disco (perdi a conta de quantos foram feitos para “Lenhador” – risos) e há imagens bem bonitas nele. Onde vocês filmaram? Já há outros vídeos planejados?
Marcelo Perdido: Santa Rita do Passaquatro, que é a cidade pequena do Erbetta e do diretor do clipe, o Renato Caiuby. Eles viveram bons momentos naqueles cenários incríveis. A principio será o único clipe do disco. No “Lenhador” fiz vários vídeos, muitos eram de linguagem de internet, não funcionavam na televisão. Para esse disco concentrei todo esforço em um vídeo só, ele representa visualmente o lado mais emocional do disco.
João Erbetta: Essa foi mais uma sacada bacana do Perdido, antes mesmo de eu ser requisitado pra produzir o disco. O vídeo foi feito antes do disco. Santa Rita do Passa Quatro é a cidade de minha família (e berço de Zequinha de Abreu!) e eu realmente vivi momentos muito bons ali, assim como momentos de experimentações, melancolia e tristeza com idas e vindas das pessoas. Ainda é um tema, pra mim, essa questão da “volta” a um lugar, seja ele qual for.
“Inverno” soa ser um disco mais simples para trabalhar ao vivo. Você já pensou no formato dos shows?
João Erbetta: Novamente, creio que o que vai ser enfatizado vai ser a canção. Com simplicidade você consegue um espaço maior para a performance e para a palavra.
Marcelo Perdido: Queremos fazer algo definitivamente intimista. Em lugares menores, que o clima do disco possa embriagar o lugar, não dá para brigar com muitas distrações, não dá para tocar numa balada 3h da manhã. Acredito que serão poucos shows para aqueles que quiserem ouvir de verdade 🙂
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. A foto que abre o texto é de Leonardo Mascaro.
Outros discos disponibilizados para download no Scream & Yell
– “Mil Tom”: um tributo duplo a Milton Nascimento e ao Clube da Esquina (aqui)
– “Somos Todos Latinos”: músicos brasileiros recriam o repertório latino (aqui)
– “Espelho Retrovisor”, um tributo aos 30 anos dos Engenheiros do Hawaii (aqui)
– “Ainda Somos os Mesmos”, um tributo ao álbum “Alucinação”, de Belchior (aqui)
– “Projeto Visto I e II”: brasileiros e portugueses juntos em dois EPs (aqui)
– “Natália Matos”, o disco de estreia da cantora paraense (aqui)
– “De Lá Não Ando Só”, terceiro álbum dos mineiros da Transmissor (aqui)
– “Gito”, EP de estreia do músico paraense Antônio Novaes (aqui)
– “Curvas, Lados, Linhas Tortas, Sujas e Discretas”, de Leonardo Marques (aqui)
– “EP Record Store Day 2013?, Giancarlo Rufatto (aqui)
– Walverdes ao vivo no Asteroid Bar (aqui)
– Download gratuito: diversos álbuns liberados pelos próprios artistas (aqui)
da 6 à 9, que sequência!
Eu realmente espero que ele venha para Belém…
Essa matéria sobre esse Marcelo Perdido diz muito sobre a atual cena musical brasileira e o jornalismo musical. Morreu o Cristiano Araújo que fazia dezenas de shows por mês, no Brasil inteiro, milhões de views e downloads que o jornalismo cultural desconhecia. Enquanto isso Marcelo Perdido, em seu segundo trabalho “solo” (de que grupo ele era?) tem matérias de destaques em várias mídias musicais especializadas e com canções que não chegam a 100 plays, se eu gravar meu sobrinho tossindo e por no soundcloud acho que tem mais repercussão. Mas é um lance que já acontece faz tempo, tá difícil aparecer artista que conseguem aliar público e crítica.
Talvez o problema seja saber procurar a informação que quer ler, Marcello. Por exemplo: o André Piunti faz um trabalho excelente no Universo Sertanejo e se você quer ler de Cristiano Araújo e outras estrelas ascendentes deste mercado, é uma boa pedida. No Scream, neste momento, temos uma entrevista com uma banda extremamente pop do Peru (daquelas que tocam em programas semelhantes ao Faustão lá), outra entrevista com uma novidade portuguesa (nascida das cinzas dos Pontos Negros, que alcançaram o mainstream no país), uma entrevista de Gal Costa (que é uma cantora estabelecida e respeitada), um tributo de jovens artistas ao trabalho de Milton Nascimento (um cantor de certa conhecido) e também o disco do Marcelo Perdido, que lançamos pelo Scream & Yell (mais entrevistas com João Erbetta, Lemoskine, Mahmed, Luiza Lian e outros da nova geração). Se você quer ler coisas mainstream, existem veículos certos (e bacanas) para isso, não o Scream & Yell. É meio complicado quando a pessoa olha pruma camisa vermelha e pensa: “eu queria que ela fosse azul”. O problema não está na camisa…
O cara fica mais preocupado com quantos plays tal música tem do que se a música é boa ou não. Duvido que ele clicou pra ouvir o disco. Parabéns, Screamyell. Tenho ouvido direto desde que vi aqui pra baixar.