por Leonardo Vinhas
Renato Russo costumava dizer que escrever de forma simples “é difícil pra cacete”. Brincava, inclusive, que era mais fácil compor letras como as do Legião do que fazer um “eu te amo” soar bem em uma música. E, de fato, não é tarefa fácil conseguir compor uma canção quase universal, de adesão rápida, e que preserve seu encanto depois de várias audições.
Jonny Two Bags conseguiu este feito com seu álbum de estreia, lançado no início de 2014. E quem é esse sujeito? Dizer que “é o guitarrista do Social Distortion, na banda desde 2001” é um começo, mas não ajuda a entender porque “Salvation Town” é um disco tão rico. Afinal, seu trabalho principal tem lá seu encanto – ao menos para seus (muitos) fãs –, mas está preso à sua fórmula cow punk, com pouca variação e com apelo a um grupo específico de apreciadores de música.
“Salvation Town”, por sua vez, bebe em mais fontes do cancioneiro norte-americano do que apenas o country que tanto influencia o Social Distortion. Jonny vai com gosto numa história mais recente da música popular, pegando o pop agridoce de Jackson Browne, o lado mais espiritual de Johnny Cash, o country mais roqueiro de Lucinda Williams e até o senso melódico com punch de Ryan Adams para criar dez faixas que traduzem sua história emocional de forma breve e irrecusável.
O release de imprensa define seu trabalho como “roots-rock”, porém, se é para recorrer a rótulos, é mais justo que se coloque no gênero conhecido como Americana, que compila essa mistura de country, rock e folk em um tom pop, algo caro à Califórnia no fim dos anos 1970 – local e tempo, aliás, que remetem à infância do quarentão (46, para ser exato) Jonny Wickersham. O apelido Two Bags veio depois, e foi celebrizado em uma canção-paródia da banda punk Vandals, “Johnny Two Bags”, que diz que Wickersham é “branco demais para cantar blues” e que ele “não tem que pagar dívidas nem acreditar que nasceu para perder”.
A bronca dos decanos punk deve ter surtido efeito porque, do quarto de hotel em Nashville em que se encontrava durante o papo com o Scream & Yell, Jonny reconhece que tem sorte de ter a vida que tem hoje, e que deve ser feliz por isso. Está surpreso com a repercussão do disco, e fica genuinamente feliz quando, já terminada a entrevista, o repórter revela que seu disco é um de seus preferidos. “Uau”, diz Jonny, “é inacreditável, sabe? Que as músicas que eu fiz para mim possam ter tanto significado para outros”.
É raro encontrar um rockstar neste momento efêmero em que a satisfação com o próprio trabalho caminha junto com a realização pessoal e uma inegável modéstia. E é nesse período de sua carreira que o Scream & Yell encontrou Jonny Two Bags para a conversa que segue.
É claro que ninguém faz um trabalho artístico esperando o pior, mas “Salvation Town” foi realmente bem recebido, as críticas são unanimemente positivas, e você tem feito muitas apresentações. Honestamente, você esperava tanto? Como você tem lidado com isso?
É maravilhoso! Passou das minhas expectativas. Eu nem sei o que pensar, nunca tinha lançado um disco [só] meu, sempre toquei em bandas, e era sempre a “banda de alguém”. Nunca tinha feito nada meu desde que comecei na música, em 1987, e isso é uma coisa inteiramente nova. Estou obviamente muito feliz, tem sido irreal de tão positivo. E quero continuar que seja dessa forma.
Sinto que tem um clima de pub em “Salvation Town”, um clima nas canções que parece fazer mais sentido se ouvido em um lugar pequeno, no qual você pode estar no mesmo nível da banda. Tem a ver com o som, claro, mas também com o tom das letras.
Bem, na verdade eu até gosto de tocar lugares grandes, mas é melhor tocar em lugares com o público perto de você, a energia é totalmente diferente. Quando toco, tento fazer com que essa energia seja recíproca. Às vezes tocamos em festivais enormes. É muito bacana, mas… Bem, não há troca, há muito espaço, e as pessoas estão por toda a parte, com a atenção focada em outras coisas, até.
Outra coisa que sobressai no álbum é que ele parece beber demais no estilo que chamamos de Americana. A produção é moderna, mas a estrutura e os temas das canções remetem àquela música norte-americana de rádio de décadas atrás…
Com certeza, e tem a ver com um monte de coisas que eu ouvi na minha vida. Tem esse feeling forte do fim dos 70 na Califórnia, é o tipo de música que eu ouvia na minha casa, essa coisa de country com rock’n’roll. Eu fiz o álbum ao longo de muitos anos, nas folgas entre os trabalhos com o Social Distortion, então pude fazer do jeito que eu queria, com o som que eu buscava, e é sim, bem Americana (risos). Muito slide, muita guitarra pedal steel guitar, muito piano e acordeão.
Isso fica evidente pelos convidados. Dividir os vocais com Jackson Browne (em “Then You Stand Alone”) já indica o que você está buscando musicalmente.
E não só! Tem o David Lindley, que tocava com ele, tocando guitarra slide em quatro faixas!
A presença de tantos convidados chama a atenção. Não é fácil reunir tanta gente do porte que você reuniu em um disco. Imagino que esse prazo longo para fazer “Salvation Town” contribuiu para trazer essas pessoas e deixar que elas trouxessem sua assinatura. Porque você realmente escuta, por exemplo, a bateria do Pete Thomas (colaborador de longa de Elvis Costello), com a batida que é só dele…
Há muitos músicos ótimos, e eles vieram mesmo trazendo sua personalidade ao álbum. A Gaby Moreno cantando em “Avenues”, por exemplo, é algo que me deixa muito feliz, sou um grande fã dela e sua voz mudou totalmente a canção. Foi muito importante ter ela, Pete Thomas, David Hidalgo (Los Lobos, que participa de “Wayward Cain” com seus filhos David Jr. – baterista do Social Distortion – e Vincent), Greg Leisz (sessionman que já acompanhou Eric Clapton, k. d. lang e outros), Julie Miller e todo esse pessoal, foi inspirador e uma puta honra. E algumas vezes, muito intimidante. Mas são todas pessoas ótimas e gentis. E fico feliz que pude fazer isso. Se tivesse tido um prazo curto, provavelmente não teria feito. Nós tivemos a oportunidade de esperar, e isso foi ótimo.
As letras têm muitas imagens espirituais. “Wayward Cain” é provavelmente o caso mais óbvio, mas por todo o disco ouvimos menções a anjos, demônios, salvação e danação… É algo importante para você, ou apenas um recurso para contar as histórias que você quer?
São coisas importantes para mim como ser humano, eu sempre escrevo sobre anjos (risos), e tive vários deles na minha vida. Também tive demônios, mas posso dizer que sou abençoado e sortudo por ter a vida que tenho agora, por ter vivido o que vivi. Pude permanecer num caminho que me deu estrutura e equilíbrio. Uso essas imagens nas canções, mas não sou um cara profundamente religioso. Nasci e fui batizado católico, mas eu não pratico, ainda mais agora com tantas pessoas manipulando as religiões.
É mais uma vivência pessoal.
É exatamente isso.
Então imagino que o conflito entre céu e inferno, ou melhor, essa situação de estar buscando a salvação, buscando ser uma pessoa melhor, mas se ver permanentemente dividido pela possibilidade de perdição, sob a sombra do mal, seja algo que não saia da sua cabeça.
É algo que experimentei por toda minha vida, em vários níveis. Eu tendo a ser duro comigo mesmo, e todos que convivem comigo sabem disso. Tenho um senso muito forte de certo e errado, e… quando eu era muito novo, comecei a tomar muitas decisões erradas. Já desde moleque fiz muitas coisas ruins, era um ladrão e um vândalo (ri sem graça), fui viciado, tive problemas com a polícia… Porém, sempre houve uma fagulha em mim que queria levar uma vida diferente, e no final eu dei atenção a essa fagulha. Nós lutamos contra essa tendência de ser egoísta, e é daí que vem a danação da maioria das pessoas. E também há outro aspecto: eu gosto de solidão, e me isolo das pessoas de vez em quando. Em canções como “Forlorn Walls” há muito disso. Mas a mensagem final positiva é muito importante em qualquer caso.
E você nunca se sente tentado a escapar para as opções menos positivas?
Às vezes (risos). Mas por onde cheguei em minha vida, já sei que caminho devo tomar quando aparece essa vontade.
Com o disco crescendo em popularidade, você acredita que isso possa atrapalhar sua relação com os outros integrantes e com o trabalho do Social Distortion?
Não, eu não acho que vamos ter problemas na banda com isso. É minha banda número 1, e meu emprego. Todo mundo no Social Distortion pode fazer o que quiser, um frequenta o show do outro. Eu não vejo conflitos aparecendo por causa disso.
O Social Distortion veio uma única vez ao Brasil, em 2010. Acredito que você tenha notado que a banda tinha muitos fãs no país, já que tocaram para casa cheia (no finado Via Funchal) e com um público muito entusiasmado. Isso não te motiva a tentar agilizar um show aqui? Tem algo já planejado nesse sentido?
Não há nada em andamento rolando agora, não dá para dizer que estamos planejando. Mas eu adoraria que fosse possível. Não sei como poderia acontecer, talvez fosse o caso de eu ir [tocar] aí abrindo para alguém, que é algo que tenho feito bastante. Ou talvez seja o caso de ir aí fazendo um set acústico.
Isso não é incomum por aqui, na verdade. Já houve compositores que não vieram com suas bandas principais ou completas, mas estiveram aqui com sets mais enxutos. Desde John McEntire, do Tortoise, ao Mark Lanegan…
Isso é muito legal! Na verdade, estou em turnê com o Social Distortion, uma banda de Athens chamada The Whigs, e eu tocando antes deles, acústico. Em alguns shows, o tecladista e o baixista do Social Distortion [Danny McGough e Brent Harding, respectivamente] sobem ao palco comigo. Ontem era dia de floga da turnê e tocamos em um lugar pequeno em Nashville, com alguns bateristas convidados. Foi muito bacana tocar como banda, ficamos todos bem felizes, mas estou bem adaptado a esse formato acústico e é mais fácil viajar a outros lugares com ele.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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