por Pedro Camargo
Tudo aquilo que se materializa com clareza, que é assertivo ou que se aproxima do que chamamos de certeza foi esquecido pelo diretor brasileiro Karim Ainouz ao produzir o longa “Praia do Futuro” (2014). Os longos silêncios delineiam os personagens de maneira não convencional; elas não são esmiuçadas até o talo, não são definitivas ou explicadas racionalmente. Existe ali um divórcio muito proveitoso do diálogo que, para alguns, pode passar a impressão de um filme “arrastado”, mas que é, na verdade, um deparar-se com a complexidade indefinível do ser.
O ser é dotado de uma volatilidade tão intensa que até hoje a filosofia se dedica a tentar entendê-lo. Sendo assim, por que esperar que um filme traga tanta clareza a respeito de seus personagens? Bons personagens são aqueles que falam sobre perda quando se frustram, falam sobre abandono quando se perdem, sobre entrega quando transam e sobre o que se é quando se calam.
“Praia do Futuro” narra a história de Donato, um salva-vidas brasileiro que, já de início, perde uma de suas batalhas contra a violência do mar. Um turista alemão é vítima de um afogamento e a perda se revela, naquele momento, pela primeira vez. O amigo do afogado chama-se Konrad que, devido a esse infortúnio, conhece Donato, com quem acaba por ter um romance caloroso e arrebatador.
Com uma direção meticulosa, estratégica e corajosa, Karim divide seu filme em três partes: “o abraço do afogado”, “um herói partido ao meio” e “um fantasma que fala alemão”. Durante esses três períodos, nenhuma das atitudes abruptas de Donato têm uma justificativa clara. A razão reside no implícito, na quietude de ser. Ser a dúvida de ir ou não, ser o herói que salva ou o vilão que mata, ser os dois ao mesmo tempo… Ser ou não ser?
“Praia do Futuro” debate a condição primordial para a manutenção da sobrevivência humana: o desejo. Sucumbindo a ele, a animalidade que em nós reside faz as vezes de destruir o que amamos para a realização do que queremos, mas reprimindo ele, vivemos uma eterna sensação de alheamento, de solidão.
Donato se depara com esse paradoxo existencial e faz uma escolha. Vai para à Alemanha e vive a intimidade. Vê-se no outro e se entrega a ele como uma parte dele mesmo, uma extensão daquilo que, nele, é. Entretanto, para alcançar essa plenitude, é preciso abrir uma ferida cujo sangue não coagula, não cicatriza e verte através da imagem de Ayrton, seu irmão: o fantasma que volta.
Na infância, Ayrton era Speed Racer e Donato, Aquaman. O primeiro tinha medo da água, mas corria com muita destreza no chão firme; o segundo nadava como se o mar não oferecesse nenhum perigo. Havia ali, nitidamente, uma cumplicidade fraterna muito forte entre os dois, que é quebrada brutalmente com a aparição de Konrad na vida de Donato.
Com certa ingenuidade, Ayrton sente raiva de seu irmão, cujas decisões fogem da lógica do relacionamento que tinham. Contudo, para quem assiste ao filme e ouve com clareza o “off” da voz de Wagner Moura, fica a impressão delicada de que o irmão mais novo passou a entender essa dinâmica mais sanguinária do mundo, onde vive mais aquele que consegue derrotar aquilo que lhe prende. Os dois tipos de medo entram em choque e, paradoxalmente, mais uma vez, se entendem.
Trata-se de um filme que não se fecha no próprio filme. Não é necessário dizer que a fotografia é pensada geometricamente de modo a conseguir aproximar naturalidade da plasticidade da cena. Não é importante ficar explicando o papel imprescindível da trilha nesse longa. Não é preciso afirmar que os diálogos são abafados, curtos e de pouca importância. Isso porque a história do mesmo não nos interessa na superfície dos fatos. O que nos é revelado do personagem é um silêncio interior inerente a qualquer um de nós que raramente temos a coragem de ouvir, mas que esse filme, de alguma forma – através da combinação de todos esses argumentos narrativos –, nos obriga a encarar.
– Pedro Camargo (@pseudrojoao) trabalha na Revista Cult e assina o blog Royal Drama
ótima resenha, mac. espero que este bom filme não seja soterrado pelas polêmicas idiotas.