por Marcelo Costa
Romênia, 1987. O regime comunista de Nicolae Ceau?escu completa 32 anos e o país está em frangalhos. Exemplo máximo do caos: não havia mármore para ser usado em túmulos, pois todo ele seria usado para a construção de um enorme palácio planejado pelo ditador. Produtos estrangeiros eram proibidos no país. Porém, de cigarros a anticoncepcionais, tudo podia ser encontrado no mercado negro que funcionava sob as ruínas de um regime opressor. É neste cenário pouco estimulante que vivem as estudantes Otilia (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu).
Otilia e Gabita dividem um quarto num dormitório estudantil. Elas são colegas de classe na universidade de uma pequena cidade romena, e se a opressão governamental já não bastasse para tornar os dias longos e difíceis demais, um fato inesperado irá complicar ainda mais a vida das duas meninas: Gabita está grávida, quer fazer um aborto (ilegal no país), e Otilia será sua companheira nessa viagem traumática ao âmago da sordidez humana. Sem palavras de carinho, o diretor Cristian Mungiu (que também assina o roteiro) desfere um pontapé no estômago do espectador.
“4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” não é, como poderia se esperar, um filme que discute o aborto. O roteiro não explora o tema tabu, e este é um de seus grandes méritos. Mungiu foca sua câmera no desenrolar dos fatos após a grande descoberta, e o que vê em suas lentes não julga o individuo em particular, mas a sociedade como um todo. Não há bandeiras – nem pró, nem contra – em “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”. Há apenas o gosto amargo das relações humanas em uma sociedade corrompida. Não à toa, o filme começa focando um pequeno aquário, com dois peixes e pouca água.
Gabita quer fazer um aborto, mas não age para tal. Suga a amiga Otília, que resolve praticamente tudo sozinha e ainda “participa” da negociação imposta pelo homem encarregado dos procedimentos médicos. É Otília quem procura o médico, quem reserva o hotel, quem leva o dinheiro, quem assume a frente da negociação e, por fim, quem dá cabo ao feto de quatro meses, três semanas e dois dias. Gabita se recolhe deixando a amiga encarregada de tudo, e Otília não a desaponta, mas será que tudo teria acontecido da mesma forma se fosse o contrário? Se Otília estivesse grávida?
Cristian Mungiu conseguiu que “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” não soasse panfletário, muito embora deixe escorregar um tiquinho de moralismo ao culpar suas garotas, mas seus recursos de dramatização chegam a incomodar em algumas passagens capitais da película. Como quando Otília e Gabita tentam negociar com o fazedor de anjos. O diretor estende a cena até o limite do óbvio repetindo frases (apesar do interlocutor dizer: “Não vou repetir tudo o que disse”) injetando uma carga de tensão desnecessária frente ao impressionante desenrolar do quadro. O mesmo acontece em uma cena de jantar e em outra que flagra uma discussão com o namorado, que poderiam ser mais enxutas.
Essa impressão de excesso contamina o olhar, e por mais que se entre em uma sala de cinema predisposto ao “mal-estar cinematográfico” (afinal, estamos falando de um filme cujo tema principal é – ou deveria ser – o aborto: não dá para esperar leveza), a impressão final é de que a necessidade de obstáculos no roteiro desvaloriza (mas não apaga) o olhar severo, crítico e nada romantizado sobre a sociedade em geral, e Gabita e o “médico” Sr. Bebe (Vlad Ivanov) em particular.
Entrincheirada entre estes dois (humanos, demasiado humanos), Otília é o último cigarro da carteira em uma noite em que se está desesperadamente precisando fumar. Porém, cada vez mais, menos pessoas fumam. E menos Otílias surgem. Estamos vivendo o ápice da sociedade mediana. A grande maioria aceita qualquer coisa. A grande maioria foge, se esconde. E a vida segue neste grande aquário. Melhor não falarmos mais falar nisso. Corte.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne