por Marcelo Costa
Se Nova York é jazz e Londres é ópera, Barcelona – para Woody Allen – é flamenco e chanson latina com sotaque jazz como a de Giulia y Los Tellarini, cuja música “Barcelona” abre com suavidade o mais novo grande filme do diretor, filmado na Catalunha e oportunamente chamado “Vicky Cristina Barcelona”, com a nova musa do cineasta, Scarlett Johansson, novamente no elenco e, ainda, Penélope Cruz e Javier Bardem. É o segundo filme com F maiúsculo do diretor nos últimos dez anos.
O título do filme joga as cartas na mesa: Vicky está noiva e vai para a Espanha finalizar seu mestrado, que tem como tema a Catalunha. Cristina está perdida na vida, não sabe o que quer, ou melhor, sabe o que não quer. Já Barcelona é a cidade de Gaudi e Miro, e várias cenas trazem obras dos dois artistas ao fundo como a magnífica igreja Sagrada Família, o Parq Guell, a Casa La Pedrera, o Aeroporto e as famosas Ramblas (estas duas últimas com obras de Miro).
Mais do que qualquer coisa, porém, Barcelona está representada por Juan Antonio e Maria Elena, um casal de artistas consmuido pela arte que pratica. Juan Antonio (Javier Bardem) transpira sensualidade, e não a toa sua primeira frase no filme já soa um clássico dos cinemas 00. Ele chega até à mesa de duas norte-americanas em um restaurante e, sem conhece-las, dispara um convite direto: “Vamos para Oviedo. Lá comeremos pratos deliciosos, beberemos vinho e faremos amor”. Uma das duas garotas pergunta: “Quem fará amor?”. E ele responde: “Se tudo sair bem, nós três”.
A outra metade de Barcelona é Maria Elena (Penélope Cruz), uma mulher à beira de um ataque de nervos. Maria Elena ensinou a Juan Antonio tudo que ele sabe sobre o amor e a arte, mas eles são daquele tipo de casal que se ama e não pode ficar junto (nas palavras do próprio). O último episódio da história dos dois acabou com uma facada, mas ninguém sabe ao certo quem esfaqueou quem. Cristina se sente atraída pelo homem. Vicky tem vontade de sair correndo ou, no mínimo, jogar sua taça de bom vinho espanhol na cara do rapaz. Corte na cena e, quando vemos, lá estão as duas em direção a Oviedo.
Woody Allen brinca com a profundidade de seus personagens com toque de mestre, e por mais que jogue as situações do romance para lá e para cá, não perde o fio condutor da história nem deixa o espectador se perder nela. Mais: ele dança com o espectador como se estivesse balançando uma bandeira vermelha para um touro. E por mais óbvio que seja o destino do touro, sempre ficamos apreensivos pelo toureiro, o que já permite ao diretor manipular com destreza seu manual de desencontros românticos (que já rendeu um bom número de obras primas).
Por mais que as notícias sobre o filme se fechem no romance e nos beijos de Cristina (Scarlett) em Maria Elena (Penélope), a chave do filme é Vicky (Rebecca Hall), o que por si só já demonstra a genialidade do diretor. Enquanto todos os olhares são sugados pela enorme sensualidade de duas grandes musas do cinema mundial, a graça do roteiro está no confronto interno da terceira protagonista, que além de não ser uma artista de renome também não traz a sensualidade à flor da pele de Scarlett e Penélope. Rebecca é a típica garota que todo mundo conhece, e por quem todo mundo se apaixona. É seu personagem que vive o maior drama do filme.
O drama, porém, não se expõe logo de início. Woody Allen conta a história com calma e deixa o público se apaixonar pelos personagens e por Barcelona. Quando se percebe, lá está a vida parada diante de uma rua que bifurca: Qual caminho seguir? Eis a grande questão. Como de costume, o diretor não faz dramas com o drama de seus personagens. A sutileza é um dom que o cineasta raras vezes usa, e o trecho final de “Vicky Cristina Barcelona” é perfeito para perceber isso, com as duas amigas em um café conversando sobre as férias de verão na Espanha, e tocando a vida em frente, como se pudessem voltar no tempo com a vidinha que tinham.
Assim como Newland, o personagem de Daniel Day-Lewis em “A Época da Inocência”, de Scorsese, ou a Francesca (Meryl Streep) de “As Pontes de Madison”, de Eastwood, o personagem de Woody Allen também está condenado a amar em silêncio enquanto vive uma vida de fachada para satisfazer os anseios da sociedade (e seus próprios medos). A crueldade desta situação, porém, é jogada em forma de palavras no ar como se joga fumaça após tragar o cigarro. O que está visível não é realmente o que interessa ver. As palavras soltas caem na mesa, escorrem pela toalha de papel manchada de café, adentram a calçada e caem na sarjeta. É lá que os verdadeiros amores se encontram. É lá que o personagem de Lou Reed em “Baton Rouge” vai tentar esquecer a garota que nunca teve. E é lá que “Vicky Cristina Barcelona” vai parar, mas poucos vão perceber.
A vida, caros amigos, imita a arte. E quer saber: somos todos artistas de quinta categoria. Acostume-se.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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