por Marcelo Costa
Numa madrugada de quarta-feira, em um bar no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, local em que a Selton iria fazer o penúltimo show de sua segunda turnê pelo Brasil, o jornalista comenta com Ricardo, vocalista e tecladista da banda, quando este conta um pouco da história do grupo: “Você não tem ideia de como essa história é surreal para quem está vendo de fora”. No que ele complementa: “Essa história é completamente surreal para nós mesmos!”.
Corte para 2005, época em que quatro gaúchos se encontram em Barcelona e começam a tocar no mítico Parque Güell, que leva a assinatura do arquiteto Antônio Gaudí, maneira que encontram de levantar grana para pagar aluguel e sobreviver na cidade catalã. Um produtor italiano os vê tocando e os leva para Milão, onde gravam “Banana à Milanesa”, um disco de covers de canções do Enzo Jannacci, e… estouram no país de Laura Pausini e Eros Ramazzotti.
Após rodar a Itália fazendo shows, os quatro se redescobrem como banda, e sob supervisão do produtor Tommaso Colliva (que já havia trabalhado com Muse e Franz Ferdinand), lançam “Selton”, o segundo disco. “Por ser um disco autoral, sem querer renegar o ‘Banana à Milanesa’, consideramos o ‘Selton’ como nosso primeiro disco de fato”, justifica Ricardo. Em 2013 a banda retornou com “Saudade”, um disco muito mais plural, cantado em italiano, inglês e português, e conseguiu elogios dos principais veículos sobre música na Itália.
“Saudade”, explica o guitarrista e vocalista Ramiro, “é sobre a nossa condição de estrangeiros em qualquer lugar”. O disco, que abre com uma empolgante versão de “Qui Nem Jiló”, de Luiz Gonzaga, e conta com a participação de Arto Lindsay, é um caleidoscópio sonoro que valoriza a condição do ser brasileiro em terra estrangeira ao mesmo tempo em que se influencia pelo cosmopolitismo musical do mundo atual, em que longe é um lugar que não existe no mundo virtual, e todas as informações estão a um clique do mouse.
O Scream & Yell encontrou os quatro integrantes da Selton em um bar para conversar sobre a experiência europeia de um grande grupo que está solidificando uma carreira musical na Itália, mas quer ampliar horizontes e chegar até outros países da Europa tanto quanto atravessar o Atlântico e alcançar Estados Unidos e Brasil. É uma banda de trajetória bastante peculiar, responsável por um dos grandes discos de 2013, e que merece ser acompanhada com atenção. Com vocês, Selton:
Vocês foram juntos para a Europa? Como vocês se conheceram?
Ramiro: Nós estudamos na mesma escola em Porto Alegre. O Eduardo e o Ricardo eram colegas de classe, sempre estudaram juntos, e eu era de outra turma. Só o Daniel que a gente conheceu depois…
Ricardo: O Ramiro também cresceu próximo por sermos vizinhos de praia, essa coisa de família. Então nós três (Ricardo, Eduardo e Ramiro) crescemos praticamente juntos. O Daniel foi fazer o último ano no nosso colégio…
Ramiro: Mas a gente nunca tinha tocado junto no Brasil. Foi por acaso…
Quem foi o primeiro a ir para a Europa?
Daniel: Eu. Me formei na faculdade em janeiro de 2005 e em fevereiro já estava em Barcelona. Peguei o canudo e disse: “Pai e mãe, vou dar uma volta, beleza” (risos). Eu tinha me formado em publicidade, mas queria dar um tempo, então fui estudar música em um conservatório… só pra ver o que rolava.
Ricardo: E ele foi estudar violão (risos)… mas a gente obrigou ele a ser baterista (mais risos).
Daniel: Os meus primeiros tempos em Barcelona foram assim (estudando em conservatório), e eu já estava começando a gravar algumas músicas, e chamei o Ricardo para cantar…
Ricardo: Cheguei a Barcelona um mês depois do Daniel em busca de… aventura (risos). Sei lá, ainda não tinha me formado, mas tranquei a faculdade e fui…
Vocês tinham bandas no Brasil?
Ricardo: Só o Ramiro, que tocava com o Plato Divorak e os Analógicos.
Ramiro: Eu era super piá, tinha 17 anos quando fui fazer show com o Plato, aquela psicodelia total. Mas a minha história e do Dudu é paralela a do Daniel e do Ricardo. Em abril (de 2005) nós trancamos a faculdade e fomos com outros dois amigos para Portugal – moramos no Algarve por seis meses.
Eduardo: E a gente começou a tocar por lá em hotéis, coisas meio turísticas, mas sem ter ideia de montar uma banda. Passados seis meses decidimos ir para Barcelona, porque tínhamos um amigo lá e queríamos dar uma última volta antes de voltar para o Brasil e terminar a faculdade. E encontramos os outros dois, e estava todo mundo tentando tocar, então decidimos unir forças e montar uma banda pra ver no que ia dar…
Ramiro: Começamos a tocar direto na rua. Fomos para o Park Güell, porque lá há muito músico de rua, e começamos a ensaiar ali mesmo. E a história de quando a gente começou a tocar na rua é completamente absurda: na primeira vez a gente ganhou 30 euros, e foi legal. Na segunda vez, 50 euros. Na outra, 80…
Ricardo: Progressão aritmética de razão 2,5 euros / hora (risos)
Ramiro: E foi realmente assim! Durante uma semana, (o valor que a gente arrecadava) só crescia. E pensamos: há um filão (risos).
Daniel: E a gente não queria contar o dinheiro na frente do público, então saiamos do parque, dobrávamos uma esquina, sentávamos e começamos a contar as moedas: “Caralho, deu uma grana”… (risos)
Ricardo: “Uma grana”… (risos)
Ramiro: Após um mês fazendo isso, juntamos a grana e gravamos um EP com as canções que a gente tocava na rua, essencialmente Beatles. Começamos então a vender os discos e, quando vimos, estávamos vivendo disso e era uma loucura, cinco vezes por semana conhecendo gente do mundo inteiro…
Beatles é uma grande escola pra começar a tocar…
Ramiro: Pra gente foi “a” escola. No começo, o nosso set era muito minimal: era voz, violão e baixolão…
Ricardo: O Dudu ia para o parque com um baixolão desligado, que só ele ouvia (risos), porque a gente não tinha dinheiro pra comprar um amplificador. Era eu tocando violão e cantando, o Ramiro também, e o Dudu no baixolão, mas estava faltando uma coisa rítmica. E começamos a pensar em quem mais ou menos a gente conhecia e mais ou menos sabia tocar alguma coisa, e pensamos no Daniel. Ligamos e ele: “Tenho um shaker e um caxixi. Rola?”. Rola (risos)
Eduardo: Tínhamos visto ele tocando (baqueta) vassourinha de jazz em uma lista telefônica e pensamos: ele sabe (risos).
Daniel: O cara lê o “Chega de Saudade”, do Ruy Castro, a parte sobre o Milton Banana tocando vassourinha numa lista telefônica, e pensa: “Que legal” (mais risos).
Ricardo: A nossa história é completamente pé de chinelo (risos)
Daniel: Na primeira vez, a gente chegou e foi tocar na arena principal do Parque Güell, e chegou um policial e disse que não podíamos tocar ali. Então saímos catando lugares até que alguém nos falou que havia um lugar no parque chamado Três Cruzes, e que lá rolava tocar. No primeiro dia, tocamos e rolou uma graninha, mas chegou um velhinho nos avisando: “Esse lugar tem dono. Há um grupo que toca todos os dias de manhã, e vocês não vão poder voltar”. Então voltamos no dia seguinte e trocamos uma ideia com os caras, que nos deixaram tocar toda terça-feira às 9h da manhã. E toda terça-feira de manhã a gente estava lá (risos)…
Ramiro: Era o lugar mais alto do parque, e a gente subia a pé, uma peregrinação (risos)…
Ricardo: O Dudu carregando a própria cruz (risos)…
Daniel: Depois, além da terça-feira ganhamos mais dois dias, porque uns grupos iam saindo, outros iam chegando e fomos galgando posições no parque e pegamos um lugar bom!
Ramiro: Daí chegou o verão mágico…
Vocês fizeram isso durante o inverno também? Como era?
Ramiro: Uma merda. Íamos com luva furada nos dedos para tocar e os dedos congelando…
E tinha gente pra ver?
Eduardo: Tem gente o ano inteiro no Parque Güell.
Daniel: Você fica ali quatro horas pegando frio e tocando, e passam três ou quatro pessoas, olham, dão uma grana…
Ricardo: Mas não há como comparar: em termos de grana e de magia, a partir de março/abril começava a esquentar e ia até setembro/outubro e era inacreditável.
Ramiro: Cada dia era uma jornada.
Ricardo: Sendo que junho, julho e agosto era o paraíso.
Ramiro: Teve o clássico dia em que chegamos, montamos tudo e começamos a tocar. Na primeira música para um ônibus só com suecas… (risos)
Ricardo: Era a primeira vez que a gente levava um amigo nosso, e tínhamos dito: “Às vezes rola uma galera”. E ele: “Ah, claro, claro” (duvidando). E para um ônibus só com loiras! Elas compraram todos os nossos CDs! Acabou! E a gente tinha começado o dia!
Ramiro: E nosso amigo olhando pra gente sem acreditar (risos).
O CD era só Beatles?
Ricardo: Beatles e umas duas músicas do Chico, que eram as coisas que a gente conseguia tocar até o fim… juntos. Era o que funcionava. Ninguém disse pra gente: “Vocês tem que tocar Beatles”. Foi acontecendo. A gente foi entendendo que Beatles encaixava naquela formação, que não tinha nem microfone. A gente já estava arriscando umas harmonias, e chamava a atenção, era em inglês e, misturando os fatores, Beatles é perfeito. Funcionava com a gente.
Ramiro: Havia várias bandas ali que tocavam pra caramba, uns puta músicos tocando jazz, funk e tudo mais. E a gente era completamente outra coisa. As pessoas olhavam pra gente e viam uma banda, quatro caras dando sangue, e começou a rolar, chegava gente trazendo cerveja, pedindo autógrafo, uma coisa meio rock star (risos).
Eduardo: A gente tocava muito pior que as outras bandas do parque, porém, rolava um lance.
Ricardo: A gente tinha muita coragem e vontade! E cara dura, claro.
Nesse período vocês já começam a compor material próprio?
Daniel: Individualmente, mas a verdade é que a banda ainda não era uma coisa tão presente pra gente. O negócio ali era pagar o aluguel, fazer festa, beber ceva, ir pra praia e tocar. Não existia um pensamento de banda. Mas com o tempo, rolando grana, compramos um amplificador para o baixo do Dudu – que era um amplificador carregado por uma bateria de moto. Compramos uma bateria de criança pra mim, muito pequena…
Ricardo: 100 euros!
Daniel: …e colocamos o logotipo.
Ricardo: Era um bumbo do tamanho de um copo, mas tinha o logo da banda (risos).
Eduardo: As pessoas deviam pensar: “O que esses caras estão fazendo? Eles pensam que são uma banda mesmo!” (risos)
Ricardo: E rolou! Hoje em dia até temos um projeto paralelo que somos nós quatro tocando Beatles dessa maneira. Temos esse show também porque é uma coisa muito nossa, era a nossa maneira de tocar Beatles.
Por quanto tempo vocês fizeram isso?
Eduardo: Até o fim de 2007…
Ricardo: Isso, dois anos, mas no final do primeiro ano conhecemos o pessoal da MTV italiana…
Ramiro: A gente estava tocando no parque e, quando viu, havia quatro caras apontando pra nós. Eles eram produtores de um programa da MTV italiana que estava sendo gravado em Barcelona, curtiram a banda e nós chamaram para participar. Fomos para Milão e acabamos conhecendo o produtor musical do programa, que pirou com a banda e começou a falar: “Vocês precisam vir pra Itália!”. Começamos então um período de ponte-aérea Barcelona / Milão, em que começamos a conhecer pessoas, ouvir música italiana…
Ricardo: Foi nesse mesmo período que começamos a pensar se as composições individuais de cada um poderiam ser da banda. Eles nos deram esse toque também: “Vocês são uma banda, e ainda não perceberam. Só falta terem as músicas de vocês”. Não que a gente não tivesse dado conta, mas não estávamos com isso na cabeça, e esse empurrãozinho ajudou. Então começamos a compor…
Eduardo: Compramos um pro-tools e começamos a gravar enlouquecidamente, o dia inteiro.
Daniel: Foi um verão muito engraçado, porque também nos chamaram para tocar num festival com Massive Attack e Jamiroquai… A gente era uma banda que tocava na rua! Não tinha o menor cabimento…
Ricardo: Essa foi a segunda vez que dissemos: “Opa, alguma coisa está acontecendo”
Eduardo: Foi quando pensamos que, ao invés de Porto Alegre, se a gente tinha uma banda, talvez fosse a hora para dar uma chance pra ela.
Daniel: Rolou também um produtor alemão, diretor do Hansa Studios, que nos viu tocar e queria que a gente fosse pra Berlim gravar com ele, e a gente tinha recém-assinado com o produtor italiano. Ou seja, tinha alguma coisa acontecendo… e alguma coisa legal podia acontecer. Foi quando começamos a ir direto para Milão, e desenvolvemos a primeira ideia de projeto gravando o “Banana à Milanesa”, nosso primeiro disco…
O disco de covers italianas…
Ricardo: Isso. Principalmente de um autor, Enzo Jannacci, que faleceu recentemente. Era um cara de Milão que se aproximou de um quase movimento tropicalista, guardadas as devidas proporções, dos anos 60. Era um cara que tinha toques surrealistas nas letras, com arranjos inovadores para a época, crítico, de contracultura. Ele é parte do DNA de Milão.
Daniel: Só que ele era tão especial e tão carismático que era respeitando em toda a Itália.
Ramiro: Não era o cara óbvio, sabe. Essa escolha talvez tenha feito com que o projeto se tornasse tão peculiar.
Vocês conheciam algo de música italiana?
Ramiro: Só o que chegava ao Brasil e algumas coisas que a gente até tinha ouvido, mas não associava a obra. É difícil, porque não chega quase nada (da música italiana no Brasil)…
Daniel: Na década de 60, a Itália exportava muita música boa, mas depois só começou a chegar o mainstream italiano. O máximo que chega hoje é Jovanotti, que já tem um pouco mais de qualidade, mas ainda assim é super mainstream.
Eduardo: A verdade é que há música brega e de qualidade duvidosa em todo o mundo…
Qual eram as expectativas que vocês tinham ao gravar o “Banana à Milanesa”?
Ramiro: A gente não sabia muito bem o que ia acontecer, mas houve uma super coincidência, pois pegamos as músicas do Enzo Jannacci, e muitas músicas ele havia feito em parceria com a dupla de comediantes Cochi e Renato, que também integravam aquele movimento de contracultura de Milão nos anos 60. Eles estavam completamente desaparecidos, fora da mídia, e bem naquele momento em que estávamos gravando, eles retornam com um programa na televisão. Nós acabamos participando do programa, conhecemos Enzo Jannacci e ali o projeto começou a crescer muito, começamos a tocar na televisão, na RAI, rodando a Itália, e foi completamente surreal, porque meses antes estávamos tocando na rua em Barcelona…
Ricardo: A gente foi se apropriando da consciência dessas coisas, mas não houve nenhum planejamento. As coisas foram acontecendo. Temos a cabeça no lugar, então sempre vamos tentando entender, mas foi bem louco…
Daniel: Sim! Você abrir o jornal e ver uma matéria de página inteira com a banda, coisas bem bizarras, e a gente pegando ônibus, se fodendo, porque Milão foi uma cidade muito difícil num primeiro momento. Chove muito, faz frio, a gente não sabia falar a língua, estávamos tendo que nos readaptar depois de viver em uma Barcelona super solar, com outro tipo de vida. Foi um ano bem maluco pra gente, com muita novidade, muita transformação. Quando vimos estávamos em turnê, dentro de um furgão tocando em tudo quanto era lugar e, de alguma maneira, descobrindo que a gente era como banda.
Ricardo: No início, em Milão, viramos um fenômeno de culto pra cidade. Ficamos como banda residente de um lugar legal, e tocávamos toda quarta-feira, até que chegou uma hora que não cabia mais gente. E a galera: “Quem são esses loucos? Como eles descobriram Jannacci?”.
Daniel: Geralmente, o processo é o contrário: é o italiano que faz cover de música brasileira. Então pra eles era surpreendente.
Quem lançou o primeiro disco?
Ramiro: Barlumen Records, uma gravadora pequena que fazia muita produção para televisão e rádio. O Selton foi a primeira banda que eles pegaram para produzir porque eles se apaixonaram.
Nessa época vocês todos estão em Milão, certo?
Daniel: Isso foi 2008. Quanto acabou 2007, eu e Ricardo precisamos ficar em Milão para renovar o visto, porque quando íamos voltar para Barcelona, descobrimos que o visto não seria renovado, e ficamos três meses morando no estúdio.
Ricardo: Fizemos um pacto que, enquanto não saísse o visto, não iriamos cortar nenhum pelo do corpo. Fiquei com uma barba estilo Moisés (risos). O produtor queria me matar…
Daniel: Foi muito engraçado. E como tínhamos que esperar o visto, Dudu e Ramiro trouxeram nossas malas, porque, até então, todas as nossas coisas estavam em Barcelona, e alugamos um apartamento e começamos a nossa vida em Milão. Passamos 2008 e 2009 em turnê, e no final de 2009, quando estávamos preparando o segundo disco com a mesma gravadora, não concordamos com o direcionamento musical, e decidimos romper.
Ricardo: Até porque o projeto desta vez era gravar as nossas músicas. E o momento era: ou a gente voltava para o Brasil, ou encarava a roubada de forma independente e fazia acontecer. E decidimos fazer acontecer. A partir disso foi uma estrada sem volta, pois tudo sobre a banda ficou em nossas mãos. Aprendemos na marra a ser uma banda independente.
Daniel: Na gravadora os processos não passavam muito pela gente. Eles tinham um raciocínio de gravadora mainstream, do tipo: “Cara, você tem que se preocupar em tocar”. “Tem sessão de fotos tal dia”. “Entra naquele carro que vocês fazer uma turnê”. “Hoje tem programa de TV”. Essas coisas, e a gente não tinha a menor ideia do processo. E quando decidimos romper, percebemos que iríamos ter que aprender a fazer tudo àquilo que a nossa gravadora fazia, e foi um aprendizado. Fomos devagarinho aprendendo como tudo funcionava. Nesse momento, estávamos morando nos quatro juntos numa casa de uma brasileira que mora há 25 anos em Milão, e que virou nossa mãe milanesa, a Mônica, uma pessoa maravilhosa que tem um programa de rádio. Era o porão da casa, e dominamos. Tinha amplificador do lado da cama, bateria montada e acordávamos tocando. É exatamente esse o momento em que nos apropriamos da nossa carreira e decidimos fazer uma coisa nossa.
O primeiro passo…
Daniel: A gente tinha feito uma turnê com Arto Lindsay um ano antes, e conhecido o técnico de som daquela tour, Tommaso Colliva, que foi o cara que, depois, viria a ser o produtor dos nossos dois discos (“Selton”, 2010, e “Saudade”, 2013). A gente estava com as nossas músicas, meio perdidos, entrando nesse mundo independente, quando decidimos enviar algumas dessas músicas para nossos amigos e ver o que eles diziam. O Tommaso gostou de cara, e disse: “Vou produzir vocês”. Naquele momento, as nossas composições eram uma salada de frutas completa. Cada um compunha o seu estilo de música e não tinha nada a ver uma coisa com a outra. O Tommaso escolheu as canções com a gente, trabalhou tudo e nos orientou a gravar em italiano.
Deu uniformidade ao grupo.
Daniel: Ele fez o papel de produtor. Foi muito foda!
Ramiro: Nos deu direção. Ele nos disse que já que tínhamos conquistado tudo aquilo, seria interessante uniformizar com a língua: “Vamos fazer um disco em italiano”. Como a gente estava lá e estava precisando dar aquele passo, essa foi uma escolha muito sábia, porque ali conquistamos outro espaço. Era “a banda Selton, que tinha feito tudo aquilo, agora está tocando suas próprias músicas”. E lançamos o “Selton”…
Ricardo: A nossa agência de booking, Antistar, atuou como selo e arcou com boa parte dos custos. Eles contrataram assessoria de imprensa, distribuição…
Daniel: Escolhemos o nome “Selton” para romper com o “Banana à Milanesa”, que era um projeto, uma coisa meio maluca que aconteceu.
Ricardo: Por ser um disco autoral, sem querer renegar o “Banana à Milanesa”, consideramos o “Selton” como nosso primeiro disco de fato.
Daniel: E é um primeiro disco que só saiu na Itália. Então o “Saudade” é quase como o nosso primeiro disco no mundo (risos).
A recepção ao segundo disco foi tão boa quanto a do primeiro?
Ricardo: Não…
Daniel: Houve uma mudança de público.
Ramiro: Foi uma decisão bastante consciente nossa, pois queríamos nos desligar daquela história do “Banana à Milanesa”, do brasileiro que toca cover de música italiana. Então apontamos bastante para o mercado independente. Foi como dar um passo para trás, porque estávamos recusando aquele mainstream (do primeiro disco)…
Ricardo: Que era um mainstream que, em longo prazo, poderia ser efêmero. Até poderia ter sido uma estrada legal, mas era difícil de compatibilizar com a estrada autoral. Era hora de começarmos como banda.
Como as pessoas chegavam até vocês nesse disco “Selton”, sem o apoio do mainstream?
Daniel: Shows. A gente fez muito show. Chegamos a fazer 40 shows em dois meses. Tocamos em tudo o que era lugar. E também criamos conteúdo para portais de internet produzindo todo mês um vídeo de uma série que demos o nome de “Selton TV”. Além, tentamos encontrar pequenos parceiros que nos ajudassem a divulgar o que era o “ser a nossa banda”. No fim, o que o “Selton” mais criou foi curiosidade. Muita gente que escutou, pensou: “Talvez eles sejam mais interessantes aqui do que naquele projeto”. As pessoas ficaram curiosas e começaram a ir aos shows, e, devagarinho, foi se criando um burburinho, uma expectativa: “O que esses caras estão fazendo?”.
Ricardo: Exatamente. E tivemos o respaldo de ter o Tommaso Colliva, que é respeitado e era uma garantia de que, no mínimo, as pessoas iam escutar o disco. Outra coisa foi a convivência com os músicos da cena da cidade. Você vai, toca, chama alguém de outra banda pra tocar, faz amizade, algo que acontece naturalmente, e que gera o boca-a-boca, que é muito importante, e que causou um interesse pelo Selton, que resultou em shows em Milão e Roma com críticos e gente de outras bandas no meio do público. Isso foi legal e nos permitiu preparar o terreno para o “Saudade”.
Para nós, que vivemos no Brasil, visualizarmos melhor: como é o cenário italiano? Vocês tocam onde? Existe esse mesmo buraco que separa a cena independente do mainstream aqui no Brasil?
Daniel: Esse buraco também existe, só que o que existe de diferente é que há muito mais pessoas interessadas na cena independente (na Itália). Lo Stato Sociale, que é uma banda que existe há três anos mais ou menos, vendeu 8 mil ingressos num show em Padova há pouco tempo atrás. Ou seja, há bandas no universo independente que conseguem fazer muito público e, mesmo sem chegar ao mainstream, vivem de música, sem precisar dar um passo como, por exemplo, ir para o Festival de San Remo ou assinar com uma major. Aconteceu uma coisa curiosa neste ano, em que uma banda independente chamada Marta sui Tubi foi para San Remo e chamou atenção, mas independente disso, a sensação é de que, apesar de existir na Itália esse mesmo buraco que separa o independente do mainstream no Brasil, os italianos que curtem música são mais interessados e vão atrás.
Vocês falaram dos 40 shows em dois meses. Há tanto lugar para tocar na Itália?
Ricardo: A gente ainda não tocou em todo o Brasil, mas vai fazer isso e descobrir melhor. Só o que a gente sabe é que na Itália tem muito lugar pra tocar, tem casa de show boa, casa de show conhecida, com tradição. Não estou dizendo que basta tocar para encher o lugar, porque é óbvio que depende da banda, do dia e de muitos de outros fatores, mas existem sim casas de shows muito legais, principalmente nas capitais: Milão, Roma, Nápoles, Bolonha, Florença, Turim… um circuito legal, e você pode tocar todo o fim de semana.
O cachê é justo?
Eduardo: O cachê é proporcional à quantidade de público que você leva para o lugar, porque você também não quer falir as casas em que você toca, e nem eles vão te dar menos do que você merece se você enche o lugar. A coisa vai crescendo junto.
Daniel: Ao mesmo tempo, há uma dificuldade com algumas bandas italianas, pois como se trabalha mais com cachê do que com bilheteria, ainda existe uma cultura de se pensar que a promoção do show quem faz é a casa. Acho que isso não acontece no Brasil nem nos Estados Unidos, pois o cara monta uma banda e sabe que precisa construir público. Na Itália, algumas bandas não tem essa mentalidade.
Ricardo: Na prática existem dois mercados na Itália: o invernal e o de verão. No mercado invernal, que vai de outubro a março/abril, é um mercado de lugares fechados, casas de shows onde, em geral, ou vai ter ingresso ou cachê proporcional ao público. Já o mercado de verão é movimentado por festivais e eventos de financiamento público, com shows em praças e festas ao ar livre. Com o “Banana à Milanesa” nós tocamos em quase todos os festivais de verão italianos, mas no inverno encontrávamos mais portas fechadas. Com o “Selton” e, principalmente agora, com o “Saudade”, a maioria das casas de shows abriu as portas para nós.
Ramiro: Já a comida é sempre boa. O lugar pode ser um buraco, mas os caras vão te tratar sempre muito bem (risos).
Oito anos morando na Europa e vocês chegam ao disco “Saudade”. Vocês sentem faltam do Brasil?
Ramiro: A nossa escolha de chamar o disco de “Saudade” não foi por uma saudade especifica do Brasil, mas sim por uma condição nossa de estrangeiros em qualquer lugar. O fato de estarmos a tanto tempo longe e termos vivido tantas coisas diferentes acabou nos dando a condição de ser meio estrangeiro mesmo quando a gente volta para cá. Por um lado a gente se sente em casa, mata essa saudade, mas por outro se sente meio externo, e fica com saudade de lá. Isso também acontece lá. É um pouco disso que tentamos passar com “Saudade”…
Daniel: É a sensação de não pertencer, de estar sempre com um olhar crítico, porque você está sempre observando de fora, mas também é muito solitário. É uma sensação muito grande de solidão não fazer parte de nada. Em Milão (e na Itália), as referencias culturais não nos pertencem. Muitas vezes a galera faz piada ou referencia a coisas (que não sabemos quais são), ou discussões sobre comida, ou datas, e não nos diz nada porque são coisas muito italianas, muito referente àquele país. Ao mesmo tempo, quando voltamos para o Brasil, a gente tem a memória de um lugar que não existe mais daquela maneira. E ainda entra Barcelona no meio…
Eduardo: Qualquer pessoa que viaja, de alguma maneira estará dividida: o lugar que ele viveu e o local que ela vive. No nosso caso, somos quatro, e estamos sempre levando juntos a banda, como se fosse um guarda-chuva, o que faz com que, entre a gente, nós tenhamos essa união pela música, mas os lugares vão mudando.
Ramiro: É como se a gente levasse a nossa casa para onde a gente vai, sempre.
A convivência mudou a forma de vocês comporem?
Ricardo: Total. No disco “Selton” a gente tentou, mas foi como fazer uma colcha de retalhos: vamos juntar o que tem e fazer o melhor possível. Já o “Saudade” é um disco conceitual, que gira ao redor dessa sensação que todos sentíamos. A gente já tinha esse primeiro critério: a música que for trazida para o caldeirão da banda precisava ser ou uma história permeada, de alguma forma, pela saudade, ou uma interpretação disso. A partir disso, automaticamente, começamos a dividir coisas, e fizemos muita coisa junto nesse álbum.
Eduardo: Até porque a gente sempre está dando pitando um nas coisas do outro, porque até temos muitos amigos lá, mas o fato de sermos só nós brasileiros nos aproxima.
Ramiro: Até letra, de pegar e escrever junto, ou começar uma música e o outro chegar com outra parte. Foi realmente um disco feito pela união.
“Saudade” saiu exatamente como vocês queriam?
Ramiro: Sim. É um disco em que a gente conseguiu pela primeira vez representar de maneira consciente quem nós realmente somos. De cantar em várias línguas, de unir todas as nossas influências…
Muda o tracking list na Itália, certo.
Daniel: Sim, são duas versões (do disco).
Uma italiana e outra mundial…
Todos: Isso!
Ramiro: A gente demorou um pouco mais para chegar a essa conclusão, mas é exatamente isso (risos).
Daniel: É que o “Banana à Milanesa” era um projeto focado na Itália, mais precisamente no norte da Itália. Já o segundo disco, que trazia uma necessidade de nos afirmar no mercado italiano, é todo em italiano. Então, de 2008 até 2013, todo nosso projeto era focado na Itália, e a gente tinha uma vontade de tocar fora, explorar a Europa, é tudo muito próximo de Milão, mas artisticamente você não consegue sair porque a língua italiana restringe muito aos pais, assim como o português no Brasil. Não tem a mesma aceitação fora. Tínhamos uma necessidade de nos fazer ouvir pelo mundo que pensamos: no nosso próximo disco precisamos fazer alguma coisa que nos permita abrir horizontes. Quando fomos fazer o tracking list do “Saudade”, percebemos: estava exatamente do jeito que a gente gosta, que a gente acredita, porém não ia dar certo na Itália. Então decidimos fazer um tracking list só para a Itália, com duas músicas desse disco em versão italiana, e outro tracking list para o resto do mundo. Dá uma trabalheira infernal, afinal temos que fazer clipping em duas línguas, trabalhar em duas línguas, mas ao mesmo tempo foi eficaz. O disco foi muito bem aceito. Recebeu quatro estrelas na Rolling Stone Itália…
Ricardo: O Rock It, que é o site equivalente ao Pitchfork na Itália, nos abraçou. Nos apresentou como a banda do verão e nos colocaram como headliners do sábado, a noite mais importante do festival deles…
O que vocês destacariam de Barcelona e Milão?
Todos: Parque Güell!
Daniel: Barcelona é uma cidade com praia, o que já é uma vantagem…
Ricardo: O mais peculiar de Barcelona é a atmosfera da cidade, uma coisa mais liberal, de você sair na rua e encontrar pessoas curtindo a vida, sabe. Aproveitando o que a cidade oferece, uma atmosfera cultural muito boa. É uma cidade muito criativa.
Ramiro: É uma cidade cosmopolita. Você não precisa entrar em um lugar para fazer festa, você pode fazer isso na rua. Já Milão, a galera adora falar mal, que a cidade é cinza, que não tem nada pra fazer, mas na verdade tem, só que é mais escondido. Você precisa conhecer as pessoas, e elas te levam aos lugares…
Daniel: É uma cidade que você precisa descobrir com o tempo. Geralmente, o primeiro ano é difícil, porque você conhece menos pessoas, menos lugares, mas se você se dedicar a ela, você vai descobrir milhões de coisas pra fazer, coisas incríveis. Milão e toda Itália tem muita arte que você pode absorver e descobrir. Não é uma cidade (e um país) tão contemporânea quanto Nova York, por exemplo, mas há coisas sensacionais.
Como Espanha e Itália influenciaram o som de vocês?
Ramiro: Um processo bem paradoxal que aconteceu foi o de descobrir a música brasileira morando fora. Passei a escutar um monte de coisas que eu não conhecia (quando morava no Brasil). Talvez um pouco pelo fato de precisar me sentir mais brasileiro, sabe. Foi uma identificação muito natural com a música brasileira.
Daniel: Quando cheguei a Barcelona, comecei a participar de uma roda de choro, tocando pandeiro. Morando fora, você passa a desenvolver a sua identidade como brasileiro, por aqui (no Brasil) a gente escutava rock, e lá a gente descobre um mundo de coisas maravilhosas da música brasileira. Passei a estudar percussão, ritmos brasileiros, coisas que eu não tinha a menor ideia. É um processo de redescobrimento do Brasil para quem vive fora. A verdade é que estamos sempre abertos há uma contaminação constante, tipo escutar tUnE-yArDs e identificar uma série de elementos ali que também existem aqui, existem na Itália, e isso nos faz montar um pequeno quebra-cabeças de coisas que a gente gostava com as coisas que a gente vem descobrindo.
Ricardo: A gente tenta sempre estar atento ao que está acontecendo no cenário mundial, não só no Brasil. Por exemplo, rola uma afinidade musical imensa do Selton com a cena do Brooklyn, em Nova York, com Vampire Weekend, Dirty Projectors. Passamos dois anos em Barcelona quase que como turistas, já em Milão foi uma imersão cultural bem mais profunda.
Essa é a segunda turnê de vocês pelo Brasil. O que mudou em relação à primeira?
Daniel: Tivemos mais público dessa vez, principalmente no Rio de Janeiro, em que o show foi incrível.
Ramiro: E além de mais público, um público mais engajado, cantando as músicas. Na primeira vez, a gente ainda estava meio duro, o disco tinha acabado de sair, e a sensação é de que agora, o pessoal aproveitou esse espaço de tempo entre as turnês e ouviu o disco.
Ricardo: Isso aconteceu até em Porto Alegre, onde tínhamos um público de família e amigos, e eles ainda vão aos shows, mas apareceram muito mais pessoas, e gente sabendo as letras, cantando…
Ramiro e Daniel: Essa sensação foi bem foda!
Vocês pensam em voltar a morar no Brasil?
Ramiro: É algo que a gente cogita eventualmente. Claro, depende muito de como o trabalho vai ser recebido, mas a gente conversa de vez em quando sobre isso…
Daniel: Abdicar de tudo que a gente construiu lá seria uma bobagem. Ao mesmo tempo, se a gente conseguisse trocar o eixo, ficar mais tempo aqui e passar um tempo tocando lá, também poderia ser uma opção válida. A gente ainda está estudando como conviver ao redor do mundo (risos).
Ricardo: Não há como negar que há uma saudade da nossa cultura, da nossa família, do Brasil, mas, ao mesmo tempo, estamos bem adaptados na Itália. Estamos em constante reavaliação.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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Mac,
Talvez você não se lembre, mas no dia em que fomos gravar a Confraria, pra Oi FM, eu tinha te falado dessa banda. Naquele momento, eu estava desenvolvendo o release desse disco com a Alavanca.