Tolices que Valem a Pena
por Marcelo Costa
Texto publicado originalmente no site Bscene, em maio de 2003
Desde o tempo da pré-história que os homens dividem-se em seres pensantes e não pensantes. Enquanto ali, pelos idos de seis milhões a duzentos mil anos atrás, um homem saía para caçar seu javali do dia e depois render-se ao sono dos justos, outro desenhava em paredes histórias da caçada, um pouco para emocionar as jovens donzelas que seriam logo depois arrastadas pelos cabelos, outro pouco para registrar para a posteridade uma forma de “arte sem ser arte”, uns rabiscos na parede. A batalha entre razão e coração atravessou os séculos e agora, mais do que em qualquer outro período da história, é chave para se entender o homem pós-moderno em um mundo essencialmente capitalista. Como ganhar dinheiro, subsistir, viver e dar condições de viver a semelhantes sem, contudo, ferir a integridade pessoal. Como dosar, na mesma refeição, caviar e ovo frito?
A discussão ganha reforço com a chegada aos cinemas de “Adaptação”, novo filme da dupla responsável por “Quero Ser John Malkovich”, o cineasta Spike Jonze e o roteirista Charles Kaufman. Em “Adaptação”, a batalha entre ser artístico ou popular ganha representação metalinguística, manipulação do mundo real, exageros cinematográficos, citações cool e deliciosas ironias. Desde o primeiro segundo de projeção, quando sob fundo preto, o personagem principal questiona em off seus valores, até o último milímetro da película, quando uma autocitação tenta, por fim, encerrar toda discussão, o espectador estará frente a frente com 114 minutos de pura genialidade cinematográfica.
Do começo então. Após o fabuloso discurso inicial, nosso interlocutor se pergunta: “Onde tudo isso começou?”. Corte para uma imagem e o aviso: “2 bilhões e 40 anos antes”. Desse ponto em diante temos toda criação repassada em segundos até o nascimento de um bebê, Charlie. Próximo corte e estamos no estúdio em que está sendo filmando “Quero Ser John Malkovich”. O personagem título do filme chama a atenção de todos no set de filmagem e a câmera encontra Charlie Kaufman, um sujeito desajeitado cumprimentando (como que se desculpando) os atores do filme em que é roteirista. Interpretado por Nicolas Cage, Charlie se sente inseguro, incapaz, cansado, não merecedor de estar no mundo de fantasia hollywoodiano.
O roteirista acaba de receber a tarefa de adaptar para o cinema um livro, “O Ladrão De Orquídeas”, de Susan Orlean (Meryl Streep), que conta a história de um caçador de orquídeas, John Laroche (Chris Cooper), mas, durante o processo, sente-se pressionado por si mesmo. “É difícil demais mexer em uma obra de outra pessoa”, desculpa-se para seu agente em certo momento. Para piorar as coisas, seu irmão gêmeo, porém, totalmente diferente de si, Donald (Nicolas Cage mesmo), começou um curso de roteiros e planeja aventurar-se na área, pedindo conselhos e inspirando Charlie a desinspirar-se.
Mundo real e imaginação se misturam. O livro, “O Ladrão De Orquídeas”, realmente existe. A escritora e jornalista Susan Orlean, também. A adaptação foi realmente encomendada, mas Donald, o irmão gêmeo, de Charlie é pura invenção. Donald é a grande adaptação de “Adaptação”. Ao criar um personagem gêmeo de si mesmo, Charlie dividiu sua persona em duas, a razão e o coração. E preencheu quase toda a projeção do filme de metalinguagens. Assim, quanto mais Charlie se envolve com o projeto, mais enlouquece, mais amplifica o embate “arte x popular”. Enquanto conversa consigo mesmo (ou seja, com Donald), Charles, reinventa o modo de contar histórias, encaixando-se na “realidade” da trama, jogando um balde de ironia sobre a indústria, recheando de metáforas a obra (o verbo adaptar tem, ali, pelo menos, quatro significados, ou mais), recriando o mundo real do cinema.
Nos últimos segundos da projeção, após todos os letreiros terem subido, inclusive o logo da produtora, uma dica, retirada do roteiro “Os Três”, de Donald Kaufman, a quem o filme é dedicado: “Não é uma tolice a célula cardíaca odiar a célula pulmonar?”. Se pensarmos que ambas vivem dentro do mesmo corpo, sim. Mas, sim? Só isso? Bem, se sim ou se não ou só isso (a discussão segue noite adentro, com pequenas pausas para caviar e ovo frito, desde a pré-história), o que fica é que Spike Jonze e Charlie Kaufman conseguem, com “Adaptação’, realizar um dos grandes filmes dos últimos tempos. Isso basta. Ou não?
Post Scrip Metalinguístico
Nomear um texto sobre um filme que gostamos de “Tolices Que Valem a Pena” não é lá muito elogioso para o filme. O que uma tolice pode ter de tão legal assim? Hummmm, fiquei pensando nisso logo depois de ter escrito o texto. Assim, como fiquei pensando sobre um monte de coisas legais para escrever, antes, e acabei não conseguindo encaixar as idéias. Eu pretendia falar de como é legal brincar de sabotar a indústria estando dentro da indústria. Eu queria falar também desses alunos de cursos vários que só prestam atenção na teoria e esquecem que para qualquer coisa ser especial precisa de paixão. O filme é muito sobre isso também, paixões. Mas dai já estou falando demais, acho. Só que é tão estranho essa coisa de ter idéias, pensar coisas legais e, na hora de escrever, elas desaparecerem como… como o que mesmo? Bem, cada um com seu truque de desaparecimento predileto nos bolsos, e vamos todos enfrentar a irrealidade do mundo real. Adaptar-se, saca.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
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– “Top 20 Filmes entre 2001 e 2010”: dois roteiros de Kaufman, por Marcelo Costa (aqui)
2 thoughts on “Esse você precisa ver: “Adaptação” (2003), de Spike Jonze”