por Elvis Rocha
Álbuns póstumos costumam ser uma jogada de gravadoras, familiares e parasitas em geral para faturar algum em cima de artistas que já levaram o destempero. De John Lennon a Renato Russo, a história da música popular está repleta de exemplos de gente que morreria de novo se pudesse ver o que é feito com seu legado post-mortem. Lançados muitas vezes com o caixão mal ajeitado na tumba, discos dessa natureza servem na maioria das vezes para alimentar a necrofilia de fãs histéricos e aborrecer terrivelmente quem prefere uma reserva de senso crítico sobre seus favoritos.
Amy Winehouse subiu à categoria de mito trágico do século XXI ao morrer, ano passado, aos 27 anos, após dois discos irrepreensíveis e um sem-número de confusões envolvendo revistas de fofocas, relacionamentos e drogas – mais ou menos nessa ordem. “Lioness: Hidden Treasures” reúne material inédito (ou nem tanto) da inglesa. A julgar por suas últimas aparições públicas e pela fraca regravação de “It´s My Party” – hit óbvio da internet, mas que já mostrava as limitações impostas pelo consumo de crack aos pulmões e alcance vocal da cantora –, havia uma certa razão para se ficar cabreiro diante das cinzas musicais de Amy.
“Hidden Treasures”, no entanto, revela-se uma boa surpresa. Espécie de “Best of the Rest”, o álbum apresenta com dignidade o que a inglesa era quando não estava sem luvas dando de comer às piranhas da morbidez alheia. O fraseado inusitado, o talento para composições, as letras sagazes e todas as influências estão dispostas nas 12 faixas que compõem o último retrato (por enquanto) de Amy na indústria fonográfica.
Palmas para a Island Records, que, para escrever o obituário de sua mina de ouro perdida, teve o bom senso de recrutar os homens que burilaram a menina insolente e insegura dos subúrbios de Londres para transformá-la na referência estética de sua geração: Salaam Remi e Mark Ronson. Como padrinhos zelosos, os dois (méritos maiores para o primeiro) finalizaram takes, resgataram gravações descartadas, corrigiram falhas e acrescentaram truques de estúdio que deixariam a pupila contente como uma pinup recém-saída da sala de maquiagem.
A compilação compreende a trajetória de Amy entre os anos de 2002 e 2011, pouco antes da notícia de sua morte invadir as redes sociais e tomar conta dos noticiários. Novas versões de composições conhecidas de seu repertório (“Tears Dry on Their Own” e “Wake up Alone”), músicas não utilizadas nos dois únicos álbuns de estúdio: “Frank” (2003) e “Back to Black” (2006), regravações de artistas que forjaram o estilo da cantora e, finalmente, esboços do que viria a ser o mil vezes abortado terceiro álbum compõem a coletânea.
Tom Jobim e Frank Sinatra são marotamente desrespeitados com scats substituindo versos originais de “The Girl From Ipanema”; “Valerie”, dos Zutons, é vertido para um skazinho suingado repleto de metais; e o tributo às influências que marcaram a segunda e principal fase da carreira é pago, com altos e baixos, na inclusão da ótima “Our Day Will Come”, do grupo de r&b Ruby and The Romantics, e na versão irregular de “Will You Love Me Tomorrow”, canção de Carole King que chegou às paradas de sucesso pela primeira vez nas vozes das Shirelles, nos começo dos anos 1960.
Há momentos assépticos e pouco inspirados, claro. “Half Time” e “Best Friends, Right?” se enquadram no primeiro grupo, enquanto “Like Smoke”, com o rapper americano Nas, não justifica sua inclusão no álbum – dando a impressão de ter sido finalizada por Salaam Remi nas coxas, por falta de material mais consistente para completar o número de faixas pedido pela gravadora. Simplesmente não funciona.
Mas são três, e por razões distintas, as canções que representam o que há de melhor entre os tais tesouros escondidos de Amy Winehouse. “Between the Cheats”, a primeira delas, traz o toque de Midas. É o tipo de registro que explica porque Mrs. Winehouse flanou em vida degraus acima da concorrência. Os primeiros compassos prometem um doo-woop absolutamente banal para, segundos depois, abrir espaço para o bombardeio: “I would die before I divorce ya…” Não é jazz. Não é hip-hop. Não é blues. Não é apenas pop. E o que são estas divisões de frases, esta maneira de combinar sílabas e notas fazendo parecer fáceis malabarismos vocais que orgulhariam as maiores? É a fagulha de originalidade que dava acesso ao salão ocupado por Ella, Aretha, Dinah e outras. Amy seria a debutante nessa festa restrita, mas se despediu antes do baile começar. “Between the Cheats”, hit potencial de “Hidden Treasures”, destrói qualquer dúvida a respeito.
Tony Bennett é o último representante de uma linhagem da música americana que presenteou o mundo com vozes como Frank Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr. O ítalo-americano que despachou “What a Wonderful World” para o amigo Louis Armstrong por considerá-la uma canção menor (!), nos últimos anos tem investido na parceria com novidades da música pop. A velha história: renovar a platéia, dar novo gás à carreira etc. Creditada como a última gravação da cantora, em março do ano passado, “Body and Soul” traz o apoio luxuoso do velho crooner e evidencia, para os que quiserem ouvir, a luta de uma mulher ciente dos males que impôs a si mesmo tentando salvar o talento em erosão.
Bennett é generoso, pede licença, toma conta das notas mais altas e faz as vezes de um tio carinhoso e protetor naquele que seria o primeiro passo para a recuperação da confiança perdida de Amy nos estúdios. Gravada em Abbey Road e lançada como primeiro single do álbum “Duets II”, “Body and Soul” chegou rápido ao topo das paradas no Reino Unido, vendendo, assim como “Hidden Treasures”, milhões de cópias em poucas semanas. Foi a única canção que Bennett se recusou a cantar à época do lançamento de “Duets” por considerar a parceira, falecida meses antes, sem substitutas à altura. Enfim, uma faixa de enorme força simbólica para fechar o pacote.
Analisando os episódios que culminaram no ocaso da vida de Amy Winehouse, não é difícil imaginar o porquê de “A Song for You” ter sido a escolhida para ocupar a última vaga deste trem de despedida. Composta por Leon Russel, a canção veio à luz pela primeira vez na interpretação poderosa de um tal Mr. (Donny) Hattaway , referência que Amy enfileirou ao lado de Ray Charles em “Rehab”, seu hino de desprezo às chatices infindáveis das clínicas de recuperação. No grande cartão de visitas do que foi sua carreira (e sua vida, por que não?), ela dizia, com a petulância característica dos que pensam ter controle sobre o vício, que teria muito mais a aprender com o ídolo do que qualquer burocrata do sistema de saúde inglês seria capaz de imaginar. Hattaway, de existência e carreira erráticas, escreveu sua última nota na história ao ser encontrado morto em um quarto de hotel de Nova York, aos 34 anos.
“Lioness: Hidden Treasures” termina com uma curiosa sensação de luto e tristeza. Michael Jackson morreu após ter esgotado seu arsenal criativo e oferecido ao mundo tudo o que podia como artista – foi essa certeza, do esgotamento e da irrelevância, e não os medicamentos, que o mataram lentamente ao longo dos anos. Os tesouros escondidos de Amy, por sua vez, deixam um nó na garganta, daqueles incômodos, que só os relacionamentos mal resolvidos são capazes de impingir. “Se tivesse sido isso. Se fosse daquele jeito? Poderia ter sido assim…” Não foi. O legado destas gravações é confirmar o gênio da Rê Bordosa britânica, uma artista que poderia ter produzido mais, oferecido muito mais, mas aceitou viver, talvez sem saber exatamente onde estava se metendo, sob as regras faustianas da mitologia pop. Assim como os que a fazem companhia agora, Amy Winehouse pagou o preço da ingenuidade. E o pop, como diria o velho Gessinger, não poupa absolutamente ninguém.
– Elvis Rocha (siga @ElvisRocha) é jornalista em Belém e edita o Amazônia Jornal
Leia também:
– Conheça as faixas que compõe “Lioness: Hidden Treasures” (aqui)
– Amy Winehouse, 27 anos, sucumbiu à fama, por Marcelo Costa (aqui)
– “Back to Black”, Amy Winehouse: 11º melhor disco dos anos 00 (aqui)
Boa cantora, mas bem superestimada.
Belo texto!
Mas ó, o Back to Black foi lançado em 2006 e o Frank em 2003. 🙂
Belo texto, elvis. acho que a amy foi boa pra caramba,mas tb um pouco supervalorizada demais num terreno quase estéril que é o atual.mesmo assim faz falta.