Texto por Leonardo Vinhas
Foto por Stephan Solon (Via Funchal)
Show do Ben Harper, Via Funchal, São Paulo, 9 de dezembro. O cantor texano vai fazer um número a capella no meio do belo spiritual “Where Could I Go”. Pede silêncio à platéia e… não é atendido. O ruído das conversas entre os presentes é tão estridente que o cantor não é ouvido. Literalmente.
Junho, BMW Jazz Festival no Parque do Ibirapuera. Antes de começar o show de abertura (Joshua Redman Trio), alguém da organização pede aos espectadores que sentem no chão para que todos possam ter uma boa visão do palco. Acontece assim. Mas quando a atração principal – Sharon Jones & The Dap Kings – sobe ao palco, algumas dezenas de pessoas no meio do público se levantam. Os gritos de “senta!” são respondidos com outros gritos: “levanta!” Como conseqüência, depois de duas músicas sem visão do palco todos se capitulam e ficam em pé – e muita gente não vê nada.
Algum sábado de maio, uma sala do Cinemark do Shopping Pátio Paulista. Durante uma sessão de “X-Men: Primeira Classe”, um casal sustenta uma conversa durante toda a duração do filme. Novamente, isso é literal: dos trailers aos créditos, não se calam por intervalos superiores a 30 segundos. O falatório é “complementado” por diversas telas luminosas de smartphones e celulares que teimam em permanecer acesos graças ao fato de seus donos terem ignorado completamente os avisos para desligar tais aparelhos.
São dois exemplos pessoais, mas estou certo de que o leitor terá vários outros. Espero que seja do sofrível ponto de vista de espectador, e não no lamentável papel do protagonista. O que acontece? Qual é o problema?
O problema tem vários nomes, várias raízes, mas poderia ser resumido como “falta de educação”. Ou melhor, “desrespeito”. Desrespeito pela obra artística que está sendo exibida, pelo artista em si, e, evidentemente, pelo restante do público.
Claro, qualquer pessoa que não viva em isolamento social já flagrou casos ainda mais graves de prepotência e desrespeito nas ruas, nos supermercados, em estacionamentos e em qualquer outro lugar. Mas vamos nos ater aos espetáculos, ao maravilhoso mundo do showbiz, remunerado graças ao valor que cada um de nós está disposto a pagar por uma apresentação, uma obra artística ou uma peça de comunicação – chame como quiser.
Quando foi que o público se tornou tão desrespeitoso? Alguns podem crer que isso teria a ver com a tecnologia portátil, mas isso não explica atitudes como as descritas nos dois primeiros parágrafo. Porém, é certo que tal tecnologia deixou as pessoas um pouco prejudicadas em sua noção de respeito ao próximo, a mesma perda de noção que faz alguém dar maior importância a uma chamada no celular do que à conversa que está travando cara a cara no momento. Ou será que a tecnologia não fez nada, apenas atua como o álcool, que quando usado sem medida serve para trazer à tona o mais patético de nosso íntimo?
Se a resposta for positiva – e são grandes as chances de sê-la, pense bem – fica claro que a coisa começa mais anteriormente, tendo a mesma raiz que faz neguinho achar que ele pode beber e dirigir que “não vai dar nada” (“dirijo melhor quando bebo, fico mais atento”, me disse um taxista há poucas semanas. Um taxista!), ou que pode estacionar numa vaga para deficientes quando não o é, ou passar no caixa rápido do supermercado – aqueles para “até 15 volumes” – com 60 produtos. Aquela postura que revela que o único limite que importa é o seu próprio, e que “os incomodados que se mudem”, o individualismo sem pensar no que significa a individualidade alheia.
Numa simplificação grosseira, é bem possível que seja isso. O que nos leva de novo aos espetáculos artísticos. Pense: a experiência da arte é individual. O que me emociona pode não ter efeito algum em você, e vice-versa. Os fatores que fazem uma pessoa se interessar – e se apaixonar intensamente – por uma canção, por um disco, um filme, um livro, uma HQ, são subjetivos, às vezes ao ponto do insondável. Mas a vivência da maior parte dessas peças é coletiva: ir a um show, a um cinema, até mesmo a um parque para ler. Você traz aquela obra para seu mundo, mesmo em meio a uma multidão. Até, claro, ser interrompido por alguém que está vivenciando sua vontade de ser inconveniente, e que “se defende” com o argumento de “eu paguei pra entrar e faço o que eu quiser”.
Claro: o dinheiro dá o direito supremo. “Pago logo posso” – uma consequência natural do “tenho logo existo”. E aí não importa o que aconteça ao outro. Paguei, e se estou lá para beber, encher o saco alheio e gritar “vai curintia” enquanto um músico canta à capella, posso fazê-lo. Está incluído no ingresso.
Os danos desse tipo de comportamento são notáveis, é só ver como nosso tecido social está puído. Porém não consigo deixar de achar que os efeitos disso na experiência emocional da arte são mais dolorosos. Afinal, a arte sempre foi a fuga da realidade sombria, ou a porta de entrada para realidades melhores. Mas quando a experiência coletiva da arte vai sendo substituída pela experiência da embriaguez coletiva e do assomo das vontades mesquinhas e infantis de uma significativa parcela do público, fica difícil para a arte cumprir esses objetivos.
Está ficando difícil ir ao cinema e a shows, e isso não tem a ver com ranzinzice de velho. Tem a ver com querer o melhor que a música tem a oferecer, mas os shows estão deixando de ser uma celebração musical para se tornar uma balada cara. E aí, faz pouca diferença se quem está tocando é o Chiclete Com Banana ou o Bob Dylan.
Acho que o último momento de respeito declarado e admirável que vi pelo espetáculo foi no show do ZZ Top, maio de 2010, em São Paulo. Dois típicos “tiozões roqueiros” na fila da cerveja batendo um papo. Um diz em tom queixoso:
– Porra, cerveja a seis paus e ainda é Itaipava. Parece preço de zona!
– Ééé… – retruca o outro, lentamente. Mas na zona não toca ZZ Top!
– Pode crer! Isso justifica o preço – finaliza o primeiro.
Apoiamos a campanha acima, do Diversita, e ainda estendemos: Seja educado. Ponto.
– Leonardo Vinhas assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell e já entrevistou o Lambchop em 2002 (aqui) e escreveu sobre o show do Ben Harper em São Paulo (aqui)
Leia também:
– Cenas da vida em SP: show de Bonnie ‘Prince’ Billy ou velório?, por Marcelo Costa (aqui)
Recentemente presenciei o descrito duas vezes. Primeiro em março na apresentação do keith Jarrett. Era proibido fotografar mas alguns se sentiram no direito. E olha que eram pessoas das primeiras filas da sala São Paulo (assentos caríssimos). Resultado: o artista encerra a apresentação.
Em dezembro ocorreu no show do kings of convenience o mesmo que aconteceu com Ben Harper.
Tá ficando difícil.
esse tipo de comportamento me incomoda muito. já pagamos caro para esses eventos e chegando lá, encontramos pessoas que não tem capacidade de ficar quieta! parecem crianças mal educadas!
vamos ter educação e depois pensar em comprar ingressos!
depois de passar por várias dessas experiências, também tenho pensado nisso mas não sei qual é a explicação. Não acho q tenha a ver com “paguei, faço o que eu quiser” pois uma dessas experiências que tive foi num espetáculo ao ar livre e gratuito. Nunca gosto da explicação “hoje em dia é pior do que no passado” porque, na boa, nada hoje em dia é pior do que no passado a menos que você goste de repressão e violência contra o ser humano. Falta de educação? Não sei. De que educação estamos falando?
tudo isso tem base no caráter individualista do brasileiro. nosso povo não tem senso de coletividade e, infelizmente, olha apenas e cada vez mais pro próprio umbigo. grande texto.
O marcel está corretíssimo.
Aqui não há o coletivo.
Podia elencar vários fatores um deles sem duvida alguma e a falta de educação, alem da herança dos programas Panico e CQC, a geração foda-se sem nenhum critério.
show do Ben Harper em BH foi sofrível por conta disso, galera foi pra pegação, no máximo, ouviram diamonds on the inside e cantaram junto com a vanessa da mata.
essa de que é “só no Brasil” é pesada, né?
Mas sabe que fiquei surpreso no Primavera Sound, na Espanha, com o silêncio do público nos shows do Beach House e do XX? São shows quase silenciosos, e todo mundo (10, 15 mil pessoas) ouvindo tudo para aplaudir no final. Fiquei impressionado!
mac, isso é gente que gosta da banda e quer realmente assistir ao show. aqui muita gente vai em eventos pra fazer social, pra postar fotos no facebook e pra contar pros amigos como foi ótimo o show em que, na real, ela conversou o tempo todo…
O Marcel matou a charada.
O papo dos dois tiozões roqueiros parece tirinha do Angeli.
Sensacional! rsrsr
Parece que existe uma necessidade de chocar para que o público fique quieto. Em filmes de muita explosão, que a sala de cinema treme de tanto barulho, todo mundo fica quieto. Em trio elétrio, que tá todo mundo pulando e fazendo praticamente a mesma coisa, ninguém fica de conversinha (pelo menos não no meio da galera).
Acho que a situação fica ainda mais crítica quando o objeto da arte é, digamos, “silencioso”, como a versão a capella do Ben Harper citada no texto ou – como aconteceu comigo – em várias cenas do novo filme do Selton Mello, O Palhaço.
Vergonhoso.
Talvez, Jessica, o problema seja ainda mais profundo. Pode ter a a ver com uma crescente incapacidade de manter a atenção em nada que não seja veloz ou, como você disse, chocante. Parece que as pessoas só sabem responder a estímulos extremos. Seja isso, seja meramente falta de educação, a situação continua sendo vergonhosa e desanimadora.
Situação desanimadora, com certeza. Que vai estragando prazeres de uma vida toda, como ir ao cinema porque realmente ama fazer isso, porque quer assistir ao filme, se envolver com a história, se encantar com a trilha sonora quando é boa, sacar as referências que são colocadas sutilmente para o telespectador atento e com alguma bagagem cultural (bagagem, que só quem consome cultura e a vida com atenção, pode adquirir)… mas quando chegamos nas grandes salas de exibição dos shoppings da cidade, nos deparamos com um público que está preocupado com quase tudo (twittar, comer combos gigantescos de pipocas e nachos, postar cada passo da sessão no facebook, conversar com a pessoa ao lado), menos com o filme que se desenrola na tela. Mesmo nas poucas salas mais alternativas da cidade onde moro, nas quais pouco aconteciam esses flagrantes de falta de respeito, um público que parecia mais seleto, começa a aderir a essa triste falta de senso de coletividade e respeito ao próximo.
Esse vídeo aqui ilustra bem seu texto. A cantora Paula Fernandes pede que uma pessoa da platéia pare de jogar o Laser em seu rosto durante um show. E o mais interessante é o grande número de trols que comentam o vídeo dizendo que a cantora estava errada em chamar atenção da pessoa. É mole??? Ela se apresentou normalmente e no final das contas uma barra de ferro se desprendeu do camarim improvisado atraz do palco e acertou seu rosto, onde ela acabou tento que ir ao hospital para exames. http://www.youtube.com/watch?v=lc5yVAZ9ynI
Só discordo sobre o show da Sharon Jones, que era agitado, e a própria cantora pedia pras pessoas dançarem. Mas falta de educação em cinema anda forte mesmo, gente conversando, twitando e tal, dureza. Varias vezes eu perco a paciencia e peço por silencio, com cara de poucos amigos, hehe.
Individualismo desenfreado. Compartilho da tese de que grande parte da culpa é do Facebook, mas é bem provável que focando nisso eu esteja diminuindo o escopo da discussão.
Belo texto, Vinhas! Se tiver pique desenvolva em outros, dá pra ir longe isso aí.
Abs!
… E só agora vi que era de 2012 o texto, haha. Triste notar que de lá pra cá piorou bastante.
¯\_(?)_/¯