por Renato Beolchi
Eis que Lulu ganha vida e chega aos ouvidos do mundo. Lulu é um manequim de olhar vazio, sem braços, com seu nome escrito em sangue. Pelo menos é assim que Lou Reed e Metallica decidiram estampar a capa do disco que foi gravado em parceria ao longo do ano (e chega às prateleiras no dia das bruxas de 2011). Imagem bastante pertinente: tanto quanto o olhar do manequim da capa, “Lulu” é um disco vazio (ainda que denso). E habita o purgatório das obras artísticas, aquele lugar onde não estão nem os discos malditos, sequer os geniais. “Lulu” é o limbo da discografia de Metallica e Lou Reed.
Isso não faz dele um disco a não ser ouvido. O problema é que, provavelmente, “Lulu” será um disco ouvido uma única vez e depois disso esquecido nas playlists ou prateleiras de CDs. Isso se os fãs de Lou Reed derem essa chance. Os do Metallica tendem a não chegar sequer à segunda faixa. Vamos a elas: são 10 músicas divididas em dois CDs. Duas das canções têm mais de dez minutos; uma terceira – a última do álbum – tem quase 20 (as pirações progressivas voltaram?). É mais ou menos por aí…
Todas as letras falam da mesma personagem. “Lulu” é inspirado em duas obras do expressionista alemão Frank Wededkind: “O Espírito da Terra” (1895) e “A Caixa de Pandora” (1904). Em ambas as histórias o autor conta a trajetória de uma jovem bailarina que sofreu abusos. Desde sua publicação, o tema serviu de inspiração para incontáveis obras. Incluindo o próprio Lou Reed, que rascunhou as letras para uma produção teatral de seu disco “Berlin” (1973). Eis que em 2009 o Hall da Fama do Rock And Roll colocou Metallica e Lou Reed no mesmo palco. O contato virou parceria e o feto está aí: chama-se “Lulu”.
Então basicamente Lou Reed escreveu as letras e o Metallica entrou com a musica? Basicamente não, é exatamente isso aí. Lou Reed faz saltar sua veia mais teatral e mescla pedaços cantados com trechos declamados (e sim, ele continua desafinando até para falar). E a métrica, bem, deixemos esses “detalhes” para a música pop. Como quando se lê um livro de William Faulkner, para se ouvir Lulu é preciso estar atento, e com muita vontade de prestar atenção no que sai dessas dez faixas. Mas um aviso: nem a história, nem as letras, nem a música vão te ajudar nessa empreitada.
E aí entra a culpa do Metallica na história. A parte instrumental até lembra o trabalho mais recente, após o reencontro do Metallica com o metal, depois de 15 anos de bizarrices musicais – “Load” (1995), “Reload” (1997), etc. Mas há em Lulu um pequeno tempero sonoro que faz gelar a espinha dos fãs antigos que, verdadeiras Amélias do metal, aguardaram pacientemente o Metallica voltar a gravar um disco pesado como “Death Magnetic” (2008). Talvez os vocais mais crus que de costume de Hetfield, ou a bateria tosca de Ulrich, há algo em “Lulu” que lembra “St. Anger” (2003), o disco em que eles acharam que seria legal gravar sem pós-produção.
Mas nem toda bizarrice, mistura, ou experimentação exime “Lulu” de momentos legais. Ainda que em linhas gerais seja um disco dissonante, há momentos de harmonias e melodias belíssimas. É o caso de “Cheat On Me”, sexta e última faixa do primeiro CD que, mesmo se alongando durante 11 minutos, oferece o Metallica incorporado a um som orquestral que faz parecer “S&M” (1999) trabalho de amadores.
Infelizmente, logo em seguida, na abertura do segundo disco, “Lulu” entrega uma de suas músicas mais chatas: “Frustration”. E lá se vão mais oito minutos (metade do que eram os primeiros shows do Ramones). Tão incerto quanto sempre na sequência mais uma faixa de destaque, positivo (a essa altura é preciso esclarecer). “Little Dog” é soturna com a instrumentação variada por notas longas e quase nenhuma percussão. E aí mata-se a charada: “Lulu” funciona quando o Metallica toca para Lou Reed, e fracassa quando Lou Reed canta para o Metallica.
Lou Reed é novaiorquino, tem quase 70 anos, e surgiu para a música na cena pré-punk da cidade. Os mentores do Metallica são 20 anos mais jovens e eram ponta de frente dos thrashers de Los Angeles. Por que então resolveram fazer um projeto juntos com quase nenhuma afinidade musical? Liberdade artística. Matam-se os argumentos para qualquer crítica que queria arrancar o couro de todos os envolvidos em praça pública. Quanto custa um disco estranho na carreira de Lou Reed e Metallica? Nada.
Mas ficam as lições. Quanto maior a improbalidade de uma parceria, maior a improbabilidade de sair um fruto bom do encontro. Agora é torcer para que Metallica e Lou Reed nunca decidam levar “Lulu” para o palco. Liberdade artística, no fim das contas, é um pé no saco…
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Renato Beolchi é jornalista e você pode conversar sobre amenidades com ele no Twitter
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Ainda nem ouvi o disco e já gostei da crítica. Gostei a ponto de não ficar tentando decifrar mais de 10 minutos de canções….
Abs!
Acho engraçado que ninguém que contextualiza a questão do título tenta descobrir quem foi Alban Berg.
Bom texto. Mas, fala sério, alguém esperava algo realmente excitante dessa parada? Lou Reed em momentos cabeçudos e Metallica e seu metal cansado, só podia dar em tédio.
eu gostei, …
tche, ainda nem ouvi o disco, mas queria comentar é a resenha, mesmo: se todas fossem assim.. parabéns renato!!
Engraçado, li os comentários e me percebi no sentido oposto.”as pirações progressivas voltaram?). É mais ou menos por aí…”, me desanimaram em relação ao resto do texto. Fiquei com a mesma sensação de quando lia as resenhas do celso masson na Veja. Se ele diz que não presta é porque deve ser bom. se ele diz que é ótimo é porque deve ser ruim de doer. Li o texto e fiquei com a sensação de que o autor é mais conservador do que o suposto conservadorismo do disco…Fiquei curioso para ouvir o disco pelo sentido inverso do texto. Como ele me soou incompleto, acho que o disco pode ser mais do que o texto aparenta.
Salve Ismael, muito bom ter um comentário no contrafluxo aqui. Acho que a moral da resenha (e de uma área de comentários) é exatamente essa: levantar a bola pra alguns cortarem na outra quadra e outros, como você, cortarem na minha.
Sobre o conservadorismo, o meu nem levanto a bola porque acho que todos nos temos nos conceitos, e consequentemente preconceitos também. A espinha dorsal do texto está no primeiro parágrafo. É instigar a ouvir por ser um disco que, acredito de verdade, esteja no limbo de Metallica e Lou Reed. Sobre o conservadorismo do disco, o que critico é exatamente o contrário: a falta de maleabilidade de ambos que para mim cria uma obra confusa e sem identidade. Um pouco como o Adriano Costa fala do disco do SuperHeavy aqui no S&Y também.
Acho que Paulo Diógenes aqui nos comentários também mandou superbem sobre o que esperávamos do metal cansado do Metallica.
Quando você escutar o disco traz tuas impressões pra cá! Nada mais bacana do que isso. E é exatamente esse tipo de coisa que enriquece pra caramba o S&Y. Aliás o convite vale pra todo mundo que tá comentando por aqui.
“As pirações hippie voltaram?” Mais ou menos por aí…
abs
Ahah, boa Jonas. Alex Ross é bonito na estante…
é, fico com o Ismael !
RENATO…vou tentar ouvir sim…voltaremos ao assunto. abs.
O ruim de bons críticos é que eles colam o próprio ponto de vista nos olhos de quem ler.
http://www.grantland.com/story/_/id/7146312/lou-reed-metallica-album
Bom texto, mas ainda nada da Alban Berg.
Drex e Jonas: vcs tem a liberdade de escrever em seus devidos blogs sobre o Alban Berg. Fiquem à vontade. Depois, se não for pedir muito, linkem aqui dividindo a sabedoria imensa de vcs com os pobres mortais.
Let it troll, Mac 🙂
Mas, enfim, foi mal aí.
Pois é, ouvi e gostei. E olha que nem sou fã do Metallica (sim do Reed). Ouvi duas vezes e pretendo ouvir mais.
O crítico nem comentou a última faixa, “Junior Dad”, belíssima obra de 20 minutos que por si, não deixará jamais o álbum esquecido nas prateleiras. Pode ficar jogado na sua prateleira, é seu direito e opinião, mas o duro é ler de forma imperativa que liberdade artística é um pé no saco. Você deveria logo escrever que só consegue ouvir heavy metal.
Marcos David, não acho que a última frase do texto seja “imperativa”. No máximo – e esbanjando arrogância – posso achar que é conclusiva,e condizente com o resto das coisas que escrevi. E achar que eu critiquei o disco porque só consigo ouvir heavy metal é uma tacanhice intelectual tão grande quanto a que você enxerga no texto.
Quem gostou, que ouça a vontade e deixem o cara da resenha em paz. Penso que o texto fala por si só, e ele soube ponderar bem: não mete o pau apenas, destaca que o disco tem lá seus momentos mas que, no fim das contas, a liberdade artística dos caras (que eles conquestaram por méritos próprios) não salva a parada de ser um fiasco. E tem mais gente que concorda com isso http://www.pitchforkmedia.com/reviews/albums/15996-lou-reed-metallica/
Gostei do álbum, já ouvi várias vezes. Gostei até dos vocais entremeados do James Hetfield! Disco bizarro!