texto por Renan Guerra
“A Metade de Nós” é um filme que pode ser resumido de forma bastante direta e simples: um casal de meia idade lida com o luto após perder um filho para o suicídio. A espinha dorsal d história pode ser resumida nesses poucos fatos, mas a complexidade do longa de Flavio Botelho é bem mais difícil de exprimir em palavras. Ganhador do Prêmio do Público de Melhor Filme de Ficção Brasileiro na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “A Metade de Nós” integra agora a programação do MixBrasil 2023.
Primeiro longa-metragem de Botelho, “A Metade de Nós” surge de uma experiência pessoal do diretor: em 2007, a irmã dele se suicidou e esse processo de luto que ele experienciou ao lado de sua família foi o motor para que o filme se desenvolve-se, pois, segundo ele, o tópico do suicídio precisa ser falado de forma mais ampla. Baseado numa longa pesquisa em torno do tema, a trama se construiu tanto a partir do roteiro de Botelho e Bruno H. Castro quanto do longo processo de ensaio e construção dos personagens que o diretor fez ao lado de Denise Weinberg e Cacá Amaral. Os dois atores se embrenharam juntos nas complexidades desse casal de protagonistas e acabaram se tornando o principal motor da obra.
Denise é Francisca, a mãe que mergulha de forma perigosa no suicídio do filho, tentando esmiuçar essa morte como uma forma de aplacar sua própria dor. Cacá é Carlos, o pai que tenta achar seu modo de encarar essa morte, mesmo que isso signifique tentar seguir sua vida de forma caótica em meio ao luto. As formas distintas com que cada um lida com a perda é o que os une e os afasta durante a condução do filme e tudo isso é expresso na atuação de ambos. Denise se mostra árida na tela, sua dor é tão dilacerante que as lágrimas secam e dão espaço para a incompreensão e a incredulidade. Já Cacá constrói seu personagem dentro desse devaneio doloroso, em que as lágrimas e as lembranças se misturam e o levam a viver experiências novas, quase que na busca por esse filho perdido.
Outros atores vão circundar essa narrativa, como Kelner Macêdo – que vale dizer está em excelente atuação – e Clarice Niskier, porém o filme inteiro é de Denise Weinberg e Cacá Amaral. A forma como a obra capta cada detalhe da atuação de ambos é uma aula de cinema: as construções detalhadas, os olhares bem captados pela câmera, a minuciosidade do roteiro em cada ação deles, tudo é construído para nos fazer mergulhar nesse processo de luto junto deles. “A Metade de Nós” não busca razão no suicídio, nem fala sobre saúde mental de forma direta, na prática o roteiro se debruça sobre aqueles que ficam após a nossa falta. E seria simples fazer desse um drama choroso, de cenas catárticas e grandiosas, mas pelo contrário, a história de Botelho se debruça sobre a banalidade de termos que continuar existindo mesmo perante a dor mais absurda da morte: voltar a trabalhar, ter que fazer as refeições diárias e lidar com memórias que insistem em surgir.
De forma mínima e enxuta, Flavio Botelho consegue criar um filme amplo e profundo sobre o luto, personificando nesse casal toda a universalidade dessa dor que perpassa todos nós em algum momento da vida. E faz isso enchendo a tela de humanidade e complexidade, dando nuances amplas para esses personagens, para que ao final dessa jornada, nós, espectadores, também nos sintamos tão transformados quanto. Esse é daqueles pequenos filmes que são grandiosos em sua amplitude artística e que pedem todo o silêncio do cinema para si.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.