texto de Leandro Luz
“Mais um Dia, Zona Norte” (2023) foi o grande vencedor do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 2023, levando sete prêmios, incluindo o Troféu Candango de melhor longa-metragem pelo Júri Oficial da Mostra Competitiva Nacional. Na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme ganhou uma grandiosa exibição ao ar livre na praça e contou com a presença do diretor e da equipe para um debate após a sessão, que foi recheada com os sons e os aromas da rua que insistiram em interferir na fruição. Uma maravilha! – a experiência e o filme de Allan Ribeiro.
Acompanhamos quatro trabalhadores periféricos da cidade do Rio de Janeiro, moradores da Zona Norte (Ilha do Governador, Maria da Graça, Cachambi e Irajá, ainda que a geografia do Rio tenha sido muito bem aproveitada para além desses bairros). Lara é uma bailarina, passista da escola de samba Acadêmicos do Engenho da Rainha. Circula pela cidade com o seu namorado, que é persuadido a gravar vídeos para que ela possa postar em suas redes sociais. Os dois vivem um amor leve e tentam equilibrar as obrigações do dia a dia com os hobbies favoritos. Na feira de antiguidades da Praça XV ela tenta se decidir entre um colar colorido e outro de prata. “Este é bonito para sair à noite”, defende Silvio, outro protagonista. Ele trabalha na feira aos sábados vendendo discos de vinil, CD’s e bugigangas mil. No decorrer da trama, descobrimos que ele é casado com outro homem e que faz espetáculos de transformista no Seven Bar, uma mistura de boteco e boate literalmente embaixo do viaduto de Cascadura. Lá para o final do filme, Silvio nos presenteia com uma performance belíssima que Ribeiro filma com devoção.
Esse entrecruzamento dos personagens não é exatamente indispensável. Na verdade, essa escolha por colocá-los em diálogo possui muito mais uma proposição de ritmo, uma asserção de como traduzir o tempo no cinema, do que exatamente uma função dramática. Silvio conhece Valéria, que frequenta a sua casa e vai até o Seven Bar no dia de sua apresentação surpresa. Ela chora ao vê-lo no palco. O espectador imediatamente se conecta a Silvio, ao marido e a Valéria, e periga chorar também. A cena é forte pelo encontro desses personagens e funciona pelo acúmulo do que vimos até aqui.
Os acontecimentos em “Mais um Dia, Zona Norte” são todos corriqueiros, e não por isso menos cativantes. Valéria, que trabalha como gari, grava um vídeo denúncia indignada porque um morador varre o seu próprio quintal todo dia pela manhã e empurra o lixo para a calçada pública. Silvio revela que tratou mal o marido quando ainda estavam se conhecendo, fazendo-o se humilhar por ele (“como alguém teria a coragem de ficar com uma pessoa assim?”, ele indaga). Lara é desafiada no trabalho e precisa ajudar a mãe em casa, que a acompanha nos momentos mais importantes de sua atuação na escola de samba.
Ribeiro adota uma abordagem dupla: em certas horas reafirma o teor ficcional dos acontecimentos, filmando com expressividade os diálogos e algumas ações, utilizando-se de plano e contraplano, peças musicais e outros artifícios comuns à ficção; em outras, finca a câmera no tripé e propõe conversas mais diretas com os personagens, que contam suas histórias tal como um documentário comum, ou aproveita na montagem os registros de celular e alguns inserts, com as vozes em off, deles olhando para a câmera. Essa confusão entre o real e o fictício é bem-vinda para Ribeiro, que organiza toda a sua narrativa no compasso dessa tênue conexão.
Por fim, cabe apresentar Victor, o quarto personagem que completa a constelação de “Mais um Dia, Zona Norte”. Ele se autodenomina herói insulano (palavra que remete àquele que é nascido ou morador de uma ilha) – e, de fato, se veste como tal, com direito à capa e um collant azul e amarelo. Victor faz diversos bicos, pega carona com o mototáxi do bairro e trabalha frequentemente como locutor para uma galeria em Copacabana. Ele também é comediante e tenta a sorte na indústria do stand up comedy. Um dos momentos mais inventivos é quando Victor conta uma piada em um show, levando o público (de dentro do filme) às gargalhadas. Nós, espectadores, também achamos graça, mas não exatamente da piada em si, e sim do fato de já a conhecermos por conta de uma cena que nos é apresentada anteriormente, na qual Victor ensaia para uma (então sonhada) apresentação. É nesse desvio que mora a singularidade. Ribeiro nos conduz a veredas diversas, com farto input emocional, apesar de extremamente sutil, muitas vezes revelado pela presença da trilha sonora, pelo figurino ou pela utilização magistral da composição.
Voltemos a Valéria. Além de trabalhar como gari, ela ama dançar charme e ir à praia nas horas vagas. Em uma longa sequência, Ribeiro aposta na força da música e na presença dos corpos em estado de dança. As luzes são intensas, o flashback rola solto nas caixas de som do baile e os corpos em cena dançam sem parar – os planos escolhidos pela direção salientam a beleza dos passinhos, da coreografia mimética e do suor que escorre pelo pescoço. Em outro trecho, Valéria é filmada no ônibus voltando para casa e seu pensamento reflete sobre como, no final de um dia inteiro de folga tomando sol na praia da Urca, ela percebe que não mora naquele bairro e precisa traçar todo o dispendioso caminho de volta. Um lapso de realidade que toma conta do que antes era sonho, fantasia.
Allan Ribeiro nasceu e viveu na Zona Norte até os seus 26 anos de idade. Também por isso conhece bem a gravidade e a expressividade de se filmar um vagão de trem. A sequência inicial como um todo é ótima: recortes de uma estação do ramal Japeri, sobrepostos por uma trilha sonora singela e emotiva. Não é de hoje que Ribeiro registra imagens como essas. O longa-metragem é uma continuidade em relação a “O Brilho dos Meus Olhos” (disponível no Vimeo do cineasta), curta que realizou em 2006 ainda num contexto de formação enquanto estudante de cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense). Talvez um avanço, muito por conta da trajetória do próprio Allan Ribeiro até aqui, mas também pelo rumo que o cinema brasileiro tomou de meados dos anos 2000 até aqui.
De lá para cá surgiram e consolidaram-se Adirley Queiróz em Brasília, os mineiros da Filmes de Plástico, Affonso Uchôa e João Dumans também de Minas Gerais, enfim, uma série de cineastas que pensaram e seguem pensando o cotidiano periférico e a natureza do trabalho no Brasil. Evidentemente que não exclui-se, aqui, o legado de Nelson Pereira dos Santos (como sugere o título), mas os últimos anos do cinema brasileiro são muito fortes para se ignorar.
Se em “O Brilho dos Meus Olhos” o personagem principal canta “Sangrando”, de Gonzaguinha, em um videokê, em “Mais um Dia, Zona Norte” Victor é eleito para protagonizar uma sequência musical tão bonita quanto, desta vez cantando uma música composta pelo próprio diretor e que depois, nos créditos finais, é interpretada pela voz inconfundível de Ney Matogrosso. Quando a mesmice do dia a dia é confrontada com o instante de fantasia, eis o cinema.
Mais sobre a Mostre de Cinema de Tiradentes
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.