Oscar 2025: o cinema como resistência, união da América Latina e antítese da lógica de torcidas organizadas

texto de Alexandre Inagaki

Um dos muitos marcos significativos da trajetória premiada de “Ainda Estou Aqui” foi ter se tornado o primeiro longa sul-americano a ter sido indicado ao Oscar de Melhor Filme e o segundo latino-americano a obter esse feito, após “Roma”, a obra-prima do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, ter concorrido na categoria principal em 2019.

Cuarón, inclusive, foi ativo apoiador da campanha de “Ainda Estou Aqui” no Oscar 2025. No final de 2024, ele já havia citado o filme de Walter Salles como seu favorito do ano, descrevendo-o como “uma advertência e um espelho assustador de tempos políticos tensos do passado e do presente”. Outro grande cineasta mexicano, Guillermo Del Toro, também torceu pelo longa brasileiro e vibrou com a conquista no Oscar.

E não podemos deixar de lembrar, claro, de todas as críticas feitas pelo povo mexicano, justamente revoltado com a representação estereotipada de sua cultura, a banalização do tema do narcotráfico que causou o desaparecimento de mais de 100 mil pessoas e a ausência de talentos do seu país no casting de “Emilia Pérez”, que fracassou retumbantemente nas bilheterias do México.

O ator colombiano John Leguizamo, além de criticar o casting de “Emilia Pérez” em suas redes sociais, foi mais contundente ainda ao reagir à declaração do diretor e roteirista Jacques Audiard, de que o espanhol seria um “idioma de países modestos, de pobres e imigrantes”, e o “mandou para o inferno”.

Não é difícil entender como os memes debochando “Emília Perez”, descrito por um de seus muitos críticos como “um filme sobre mexicanos, dirigido por um homem francês, interpretado por americanos, com uma protagonista da Espanha”, proliferaram-se mais do que Gremlins molhados na internet. E consolidaram a união latino-americana em torno da torcida por “Ainda Estou Aqui”, cuja vitória no Oscar foi muito celebrada.

É justiça poética ver esta congregação em torno de um filme do mesmo Walter Salles que, em 2004, dirigiu o road movie “Diários de Motocicleta”, sobre a viagem de mais de 14 mil quilômetros que Che Guevara e seu amigo Alberto Granado fizeram percorrendo trilhas por países como Argentina, Chile, Venezuela e Peru. O longa, protagonizado pelos atores Gael García Bernal (mexicano) e Rodrigo de La Serna (argentino), foi roteirizado pelo porto-riquenho José Rivera (indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2005) e venceu o Oscar de Melhor Canção Original. Este prêmio fez história: foi o primeiro Oscar do Uruguai, país natal de Jorge Drexler, compositor e intérprete de “Al Outro Lado Del Río”; e esta, por sua vez, foi a primeira música em espanhol indicada em toda a história da categoria.

Todos os cinéfilos que acompanham e admiram o cinema latino-americano ficaram indignados, pois, com a atitude da apresentadora Ana Furtado. Que, no tapete vermelho da cerimônia do Oscar, fez um comentário provocativamente juvenil ao entrevistar o ator Selton Mello, como se estivesse fazendo a cobertura de um jogo de futebol da Libertadores. Ana bradou: “Chupa, Argentina!”. Selton, que além de interpretar Rubens Paiva em “Ainda Estou Aqui” dirigiu filmes como “O Palhaço”, não escondeu seu desconforto e prontamente rebateu: “A Argentina tem dois Oscars de filme internacional e a gente nenhum, como assim?” No X, Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que deu origem ao filme de Walter Salles, também reagiu à fala infeliz: “Totalmente sem noção. Desnecessário. Nada a ver. Ela ignora nossas parcerias e admiração mútua. Desconsiderem… Viva o cinema argentino!”

De bate-pronto, Selton lembrou das duas estatuetas de Melhor Filme Estrangeiro conquistadas pela Argentina com “A História Oficial” e “O Segredo dos Seus Olhos”. Mas, se falasse também de outros Oscars vencidos por profissionais argentinos, perderíamos essa disputa de goleada. Afinal, são originários da terra de Ricardo Darín e Lucrecia Martel oscarizados como Gustavo Santaolalla (autor das premiadas trilhas sonoras de “O Segredo de Brokeback Mountain”, de 2005, e “Babel”, de 2006), Eugênio Zanetti (diretor de arte de “O Outro Lado da Nobreza”, que ganhou o Oscar de Melhor Design de Produção em 1995) e os roteiristas Nicolas Giacobone e Armando Bó, que junto com o cineasta mexicano Alejandro G. Iñarritu assinam o roteiro original de “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, vencedor do Oscar da categoria em 2015.

Mas, voltando a falar da premiação de Melhor Filme Internacional, o fato é que a Academia ainda subvaloriza as produções oriundas da América Latina. Dos 78 longas-metragens premiados nesta categoria na história do Oscar, apenas 5 são latino-americanos: além dos argentinos “A História Oficial” (o primeiro a ser premiado, em 1986) e “O Segredo dos Seus Olhos” (2010), tivemos “Uma Mulher Fantástica” (Chile, 2018), “Roma” (México, 2019) e, agora, “Ainda Estou Aqui” (2025). Ou seja, apenas 6,4% dos vencedores. Enquanto isso, os longas europeus, que levaram 60 estatuetas, detêm 76,92% dos prêmios de filme internacional.

Menos mal que, nos últimos 10 anos, esse desequilíbrio histórico diminuiu. Foram quatro filmes europeus premiados: “O Filho de Saul” (Hungria, 2016), “Druk – Mais Uma Rodada” (Dinamarca, 2021), “Nada de Novo no Front” (Alemanha, 2023) e “Zona de Interesse” (Reino Unido, 2024). Três asiáticos: “O Apartamento” (Irã, 2017), “Parasita” (Coreia do Sul, 2020) e “Drive My Car” (Japão, 2022). E os três latino-americanos de três países que pela primeira vez venceram nesta categoria: Chile, México e Brasil.

Espero que o eurocentrismo permaneça menor ao longo dos próximos anos, e que mais filmes africanos sejam premiados (apenas três tiveram o reconhecimento da Academia até hoje: o argelino “Z” em 1970, o costa-marfinense “Preto e Branco em Cores” em 1977 e o sul-africano “Infância Roubada” em 2006).

Por fim, não posso deixar de citar o discurso que Walter Salles havia escrito, caso fosse premiado com o Oscar, e que no calor e na emoção do momento acabou não encontrando. “Ainda Estou Aqui”, assim como “A História Oficial”, fala da resistência a ditaduras militares e do impacto nefasto causado por esses regimes sob a ótica de uma família destroçada. Nestes tempos em que o presente ameaça repetir o passado, a arte é luta contra o esquecimento coletivo.

Em seu discurso de agradecimento original, Salles escreveu: “Governos autoritários surgem e desaparecem no esgoto da história, enquanto livros, canções e filmes ficam conosco. Obrigado a todos, em nome do cinema brasileiro e latino-americano! Viva a Democracia, Ditadura Nunca Mais!”

– Alexandre Inagaki é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero, e consultor de mídias sociais. Já escreveu para a Rolling Stone Brasil, Trip e foi responsável pela criação e planejamento de campanhas online para Coca-Cola, Sony Pictures, entre outros. É curador da Campus Party e youPIX Festival. Publica textos na internet desde 1999. Começou em blogs coletivos e em seu próprio e-zine, chamado SpamZine. Além do Pensar Enlouquece, também foi um dos criadores do InterNey Blogs, um portal brasileiro de blogs.  (linktr.ee/alexandreinagaki)

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