Cinema: “Kasa Branca”, de Luciano Vidigal, mescla drama e humor num poderoso filme sobre amizade e amadurecimento

texto de Renan Guerra

Dé (Big Jaum) é um jovem negro que mora na periferia do Rio de Janeiro junto de sua avó Dona Almerinda (Teca Pereira). A idosa está na fase terminal da doença de Alzheimer e o adolescente é o único familiar responsável por sua saúde e seus cuidados. Lidando com questões complexas como o desenrolar do caso da avó, as complicações de se viver dependente do SUS nas periferias brasileiras ou as dificuldades financeiras de tentar gerir a casa sozinho, Dé acaba encontrando a parceria de seus dois melhores amigos, Martins (Ramon Francisco) e Adrianim (Diego Francisco). Essa é a premissa de “Kasa Branca”, de Luciano Vidigal, filme nacional que chega agora aos cinemas após uma boa carreira em festivais em 2024 – Vidigal, por exemplo, se tornou a primeira pessoa negra a vencer o Troféu Redentor de melhor direção de longa-metragem de ficção na competição principal do Festival do Rio 2024.

“Kasa Branca” tem como ponto de partida o cotidiano familiar de Dê e Dona Almerinda, o que poderia resultar em um filme dramático sobre envelhecimento, falta de acessos e luto, porém Luciano Vidigal, que é diretor e roteirista do filme, opta por uma outra via, transformando essa história em uma espécie de “coming of age” da periferia carioca. Com isso, o filme ganha nuances de humor e de aventura, transformando a amizade de Dé, Martins e Adrianim em um fio condutor para uma jornada de amadurecimento, de descoberta e de transformação. No desenrolar da trama, os três meninos sofrem por amor, descobrem e experimentam o desejo sexual, compreendem os meandros da vida adulta na periferia e ainda lidam, de forma conjunta, com a dor da perda. Para que tudo isso se desenrole, os três personagens principais são cercados de interessantes figuras secundárias, trazendo para a trama a participação de nomes como Gi Fernandes, Roberta Rodrigues, Babu Santana, Otávio Müller e até mesmo uma participação do rapper L7nnon. De todo modo, o coração do filme está na tríade formada por Big Jaum, Ramon Francisco e Diego Francisco.

Big Jaum é sucesso nas redes sociais com seu trabalho como humorista, ator e diretor. Natural de Guadalupe, na Zona Norte do Rio, Jaum é a grande surpresa do filme e preenche de humanidade seu personagem Dé. Com um trabalho sempre calcado no humor, aqui o ator tem a chance de explorar outras nuances, que fogem completamente do óbvio que é relegado a atores negros e gordos. Dé é um personagem que equilibra força e medo, delicadeza e dúvida, tudo em possibilidades que são bem desenvolvidas por Jaum seja nos momentos de maior drama ou nos deliciosos momentos de humor do filme. Ramon Francisco e Diego Francisco criam essa dupla de alicerce para Dé e se mostram dois personagens cheios de complexidade, que trazem a dose necessária de humor para a trama, desenvolvendo seus dramas extremamente adolescentes: os primeiros amores, as primeiras experiências sexuais, os medos pelo futuro e a ousadia que apenas a leveza da juventude nos traz.

Bem construído em sua complexidade, “Kasa Branca” é um interessante exemplo das potencialidades do cinema brasileiro atual, num espaço que nos possibilita apresentar outras narrativas, novas, distintas, um olhar que só é possível com o fomento para essas outras histórias. Luciano Vidigal desenha novas vias para o cinema negro brasileiro, criando paralelos com outros artistas que também vem desenvolvendo novas possibilidades audiovisuais, como Jeferson De em São Paulo, Grace Passô e André Novais Oliveira em Minas Gerais ou Ary Rosa e Glenda Nicácio na Bahia. E é interessante que em “Kasa Branca” isso é feito com atores de diferentes gerações, indo da veterana Teca Pereira aos jovens protagonistas, passando pela presença ilustre de Roberta Rodrigues e Babu Santana. Roberta, aliás, entrega leveza e delicadeza em suas poucas cenas; já Babu é sempre um deslumbre, pois é um ator que cresce e surpreende quando colocado em papéis que pedem a sua vulnerabilidade; vê-lo em cena ao lado de Big Juam cria um dos momentos mais complexos e delicados do filme – uma cena curta, mas cheia de potência.

Além de tudo isso, “Kasa Branca” é cativante por conseguir criar outros imaginários de periferia: Luciano Vidigal sabe muito bem explorar as dores e os dramas desses personagens, mas também sabe, na mesma medida, apresentar suas potencialidades, alegrias e individualidades. Tudo isso cria um filme que consegue nos levar do choro ao riso, da dor ao afago, em um clima que navega muito bem pelo formato de filme jovem, como uma sessão da tarde mais realista, mais brasileira, bem mais nossa. Um filmão para relembrar que temos muitas outras histórias para serem contadas e descobertas.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.

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