entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Uma das mais interessantes propostas musicais que apareceram recentemente no cenário musical português são os Manila. O frescor do EP “Domingo â Tarde”, lançado a 15 de novembro de 2024, as referências e os caminhos do grupo justificavam plenamente um encontro. A conversa decorreu em vésperas do Natal, na esplanada de um quiosque lisboeta no bairro do Príncipe Real, onde compareceram Carmo Braga da Costa (vocalista), Ricardo Pedrosa (baixista) e Zé Lobo da Costa (baterista), três integrantes do quinteto lisboeta. O grupo foi inicialmente composto por Gerard Torres (tecladista), Ricardo Pedrosa e Carmo Braga da Costa, que se conheciam na escola de jazz Luís Villas-Boas (Hot Clube de Portugal), onde iniciaram o projeto, compondo temas originais em português e tocando versões de diversos estilos musicais.
No outono de 2022, o baterista Zé Lobo da Costa juntou-se aos três elementos, dando origem aos Manila. Um ano depois, já com várias músicas compostas em português, o guitarrista João Serra completou o elenco. Nesse momento, a banda começou a gravar o EP de estreia que seria produzido por João Sampayo. “Domingo à Tarde” é um trabalho onde os Manila se assumem como contadores de histórias aliadas a sonoridades como o jazz, soul, funk e pop numa ambiência introspetiva e dançante. A força do EP assenta na voz clara e no sentido melódico de Carmo Braga da Costa, no baixo pulsante de Ricardo Pedrosa e no lado nostálgico português que emana das notas do teclado de Gerard Torres. A conjugação destes elementos marca o tempo e dá corpo, entre outros tópicos, a temáticas como o existencialismo, o amor e a solidão. Existem várias faixas a reter, desde logo a viciante “Estas Ruínas”, uma canção plena de ritmo que ameniza a separação amorosa retratada, a faixa-título com um sabor soul vincado e “Dalila”, um tema reflexivo e alusivo à bisavó de Carmo que era artista.

Dentro do leque, encontra-se também “Mulher”, uma canção reveladora da abordagem direta de Carmo, incluindo um ‘spoken word’ introdutório e apimentado de Rita Lee e que proporciona à banda lisboeta uma boa ponte instrumental entre o relaxamento e a soltura. Sobre a música, a vocalista recorda o seu lado pessoal e um movimento feminino que nortearam a composição. “Escrevi a canção depois de uma entrevista de emprego muito irritante. Eu trabalho em startup’s e nesse universo dizem muito que pretendem uma pessoa que queira dar tudo e trabalhe 60 horas por semana. E eu pensei: “Que seca (saco)!”. Existe também um movimento feminista chamado ‘girl boss’ e a música crítica isso. É um bocado a visão de uma mulher moderna que consegue fazer tudo no trabalho e é uma ótima namorada, amiga, mãe e é igualmente divertida. Cheguei exausta da entrevista e da ideia que as mulheres têm de ser boas em tudo. Por vezes, tem de haver mais calma porque não temos de provar nada a ninguém sobre isso. Nesse sentido, o palavrão da Rita Lee é apropriado”, explica.
Relativamente à composição, num grupo onde predomina uma pluralidade de contributos, Carmo Braga da Costa sublinha diversos pontos que definem a sua escolha: “Eu escuto a música, vejo qual é o ‘mood’ e escrevo a partir daí misturando com o que está a acontecer na minha cabeça. Acaba por ser uma história, porque é importante que as canções sejam histórias e tenham um princípio, meio e fim. Habitualmente, improviso quando ouço a música e faço a letra. Acho que fica com mais musicalidade dessa forma”. Por sua vez, Ricardo Pedrosa complementa as palavras da vocalista enfatizando o procedimento global da banda: “Em grande parte das canções as composições partem das teclas do Gerard Torres e de uma ideia dele focada na harmonia e nos acordes e depois entra a Carmo e concebe a melodia. A partir da mistura de harmonia e melodia de voz ‘on top’ nós fazemos o ritmo. Algumas músicas compostas por mim são mais focadas na base rítmica, mas preciso do Gerard e do João Serra para introduzirem os seus elementos harmônicos e melódicos, bem como as partes rítmicas do Zé Lobo da Costa”.
Presentemente, os Manila já estão a trabalhar no seu álbum de estreia que será lançado em 2025. Em paralelo, o grupo fará duas atuações em Lisboa, no Chapitô (11 janeiro) e na Galeria Zé dos Bois (13 março) onde irão apresentar ao público as canções do EP de estreia e músicas novas ainda não gravadas. Segundo Zé Lobo da Costa, “Algumas das faixas recentes já tinham sido apresentadas nos shows dos últimos meses” e o baterista destaca ainda outra missão do quinteto: “Estamos a pegar em canções concebidas para espetáculos ao vivo e a transformá-las no formato de estúdio”. Sobre o futuro dos Manila, Ricardo Pedrosa assume a ambição e a crença no sucesso do grupo: “Queremos ser uma grande banda, aclamada no universo musical português e atuar nos grandes palcos nacionais. Não podemos recusar festivais como o Rock In Rio ou o NOS Alive. O céu é o limite e não devemos ter medo de ser ambiciosos e acreditarmos no nosso talento” e aproveita para expressar um voto final. “Nós gostamos muito de música e quem faz aquilo que gosta fica bem mesmo que não aconteça o sucesso. Mas vai acontecer”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, os Manila conversaram com o Scream & Yell. Confira:
Como definiriam a vossa proposta musical para quem não vos conhece?
A nossa música transmite introspeção, romantismo e traz igualmente certos aspectos de groove e de uma sonoridade mais indie. Na parte concetual é uma introspecção romântica. Acho que também temos uma vertente ‘silly’, ou seja, é uma música descomprometida e descomplexada. É algo sério, mas não quer ser sério. O processo é muito orgânico. Não temos o propósito de fazer uma canção 100% jazz ou pop, porque os gêneros vão se juntando e cada um tem as suas influências. Quanto à parte ‘silly’, sentimos que não devemos fugir de fazer coisas ‘corny’, porque um pouco ‘corny’ também agrada às pessoas. A Carmo também é assim na maneira de escrever, mas não gosta de levar as coisas muito a sério. Ela escutou muito a Lily Allen na adolescência e apreciava a forma como ela escrevia sobre assuntos sérios e as introspecções românticas da vida dela, mas de uma forma gozada e meio stand-up musical.
Quais são as vossas principais influências ou referências musicais?
É uma questão engraçada porque nós temos uma panóplia de influências musicais completamente díspares umas das outras e alguns pontos comuns. Toda essa experiência musical e aquilo que ouvimos do passado, contribui para a nossa identidade enquanto músicos individuais e conjuga-se muito bem em todos nós. Gostamos de jazz fusion, rock progressivo, música eletrônica, disco, Stevie Wonder e do pop. Em termos de influências musicais, nas melodias que a Carmo faz há coisas que derivam de ter ouvido muita música brasileira quando era mais nova (Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto ou Rita Lee) e é natural que essas coisas mais antigas tenham ficado dentro dela e surjam com naturalidade. O pop influencia-nos tal como a bossa nova e o rock também, mas o gênero musical que todos ouvimos de alguma forma é o jazz. Nós tentamos encontrar um equilíbrio entre o que gostamos, mas todos apreciamos coisas diferentes. Há uma frase que repetimos muito e agora que estamos novamente no processo de criar ela aplica-se bastante que é: “Tem de ter mais ‘groove’!”. Procuramos sempre injetar isso na nossa música e é um ponto em comum no grupo o fato de querermos fazer coisas que ponham as pessoas a dançar.
Quando gravaram o disco já tinham em mente criar esta simbiose sonora entre a dança e a introspeção ou resultou do trabalho com o produtor João Sampayo?
Julgamos que foi uma coisa que aconteceu organicamente. Relativamente á introspeção, não pensamos em escrever uma música sobre um determinado assunto. Normalmente, quando temos um instrumental, a Carmo já tem as notas do iphone abertas à frente dela e começam a sair coisas que a levam a perceber qual é o tema da canção. Muitas vezes é algo muito introspetivo e vai buscar o lado nostálgico português. A sonoridade também é muito contemplativa do lado do Gerard e as notas que saiem do teclado são um pouco melancólicas, mas depois o baixo proporciona um ‘groove’ especial. As componentes principais são a voz, as teclas e o baixo. É difícil explicar porque somos diferentes, mas respeitamos e admiramos o trabalho de todos. Nos nossos ensaios trabalhamos e divertimo-nos e nunca houve um ensaio em que sentimos que foi mau.
Um dos singles do vosso EP, “Estas Ruínas”, retrata a dor de uma separação amorosa com melodia e uma pegada dançante. Esta abordagem positiva acaba por transformar uma temática tendencialmente melancólica num registo prazeroso. Qual é o vosso comentário a esta transformação?
De certa maneira é curioso que esse tenha sido o resultado final, porque nós tivemos imenso cuidado e intenção em colocar no refrão um ritmo bastante ‘groovy’ e disco. Mas não foi algo pensado em termos conceituais com o resto da mensagem e da letra da música. No entanto, ficou bastante interessante essa transformação e até pelo fato da música ter quase três secções, uma mais espacial onde perdemos um bocado o chão, outra mais revoltada (antes do refrão) e depois algo mais positivo e libertador que é o próprio refrão. No fundo, parece quase uma viagem sobre uma separação num relacionamento. Não foi pré-concebido mas, pensando nisso agora, até faz sentido (risos). A temática da letra em si não foi consciente. A Carmo não quis fazer uma música cuja pessoa fosse totalmente negativa. Seria injusto e tudo na vida tem um certo humor. Houve um podcast noutro dia em que falavam daquele desastre de avião de uma equipe de rugby nos Andes. Os sobreviventes contaram na história que pregaram muitas partidas uns aos outros mesmo quando morriam de fome. Nos filmes de terror, normalmente, é tudo sempre sério e aterrorizador. Mas, se nós pensarmos mesmo, as pessoas acabam por se rir a meio das situações, porque em qualquer episódio da vida há humor. Foi isso que a Carmo quis fazer um bocado na letra e a parte musical acabou por encaixar bem.
O clipe de “Fuga em Fá” realça os diferentes tempos da canção e tem um feeling de “ao vivo em casa” que lhe confere um certo encanto como narrativa em movimento. Esta atmosfera particular foi uma ideia exclusiva da realizadora Fabiana Tavares ou vocês também tiveram uma palavra sobre a direção do vídeo?
A Fabiana Tavares (Fá) foi a realizadora deste clipe e dirigiu também o vídeo de “Estas Ruínas”. Ela é uma grande amiga e decidimos que ela iria realizar todos os nossos clipes em 2024. Nós fizemos “Estas Ruínas”, que foi uma produção maior, e para o “Fuga em Fá” a Carmo disse-lhe: “Acho que vamos gravar alguma coisa em casa porque não temos ‘budget’ e não queremos que percas tempo, por isso vamos gravar só a banda a tocar ao vivo”. A ideia era essa e dois dias antes das gravações a Fá ligou a dizer: “Eu não consigo só fazer isso por esse motivo acho que vamos fazer mais”. Então a Carmo pediu-lhe para ir a casa dela e depois andaram as duas por lá e a Fá sugeriu fazermos um ‘one shot’ a andar pela casa e criámos essa atmosfera. Ela é que teve a ideia de fazer aquele ensaio todo em que cada elemento da banda está numa sala diferente e o grupo aparece mais e o final é a cores. Na verdade, somos um conjunto que está a começar, não temos muito ‘budget’ e pensamos na forma de obter o melhor resultado com o menor material possível, de uma maneira divertida. Nós também contamos com o trabalho da Inês Mojo, que é a nossa estilista, e ela também fez o ‘styling’ do clipe “Estas Ruínas” e o objetivo aí foi igualmente conceber alguma coisa que fosse gira (legal) e esteja bem feita num espaço e num tempo limitado. A gravação durou quatro ou cinco horas numa noite de Halloween. Acabou por ser uma experiência muito divertida e o clipe capturou bem a ‘vibe’ do grupo. Tanto a banda, como a Fá e a Inês, crescemos ambos nos anos 1990 e provavelmente isso influenciou o clipe que tem um ‘one shot’ em preto e branco e depois fica a cores.
Têm alguma mensagem a deixar aos leitores do Scream & Yell?
Para os nossos ouvintes do outro lado do Atlântico vamos partilhar uma coisa pessoal: a mãe do Ricardo Pedrosa é do Rio de Janeiro. Por essa razão, ele escuta música brasileira há muito tempo. Globalmente, achamos que a nossa música é muito boa para o público brasileiro. É descomplexada e quer se divertir. Nós temos bastante respeito pela música brasileira em geral e há uma influência que passa muito para cá e para nós. Por isso, as pessoas no Brasil conseguem se identificar de alguma forma. Adorariamos tocar com os Bala Desejo, mas não sabemos se eles gostariam de tocar conosco (risos). A Ana Frango Elétrico está a fazer uma coisa muito fixe (legal). É um trabalho que lembra uma Rita Lee mais eletrônica e arrojada, a primeira vez que a ouvimos foi isso que nos fez lembrar. Somos influenciados pela música brasileira e esperamos que isso também transpareça. É algo que está dentro de nós e deve refletir-se naturalmente.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Fabiana Tavares / Divulgação