entrevista de Diego Queijo
É outubro de 2024 em Buenos Aires. Mês em que a cidade se prepara para uma série de homenagens a Charly Garcia, um dos músicos mais célebres e controversos já nascidos em solo argentino. Mas neste ano em que completa 73 anos (23/10/1951), além das homenagens, houve o lançamento do seu mais recente (e também controverso) álbum, “La Lógica del Escorpión” (2024), saudado como obra prima por fãs tanto quanto malhado por pessoas que consideram o trabalho extremamente irregular.
Entretanto, o mês marcou também o relançamento da versão atualizada do clássico livro “No digas nada – Una vida de Charly Garcia”, que começou a inundar as livrarias no início de setembro, com preço que varia de 40 a 45 dólares. O autor de uma das mais completas biografias sobre o músico (ao lado dos dois volumes de “Esta noche toca Charly”, de Roque di Pietro) é o jornalista Sérgio Marchi e, tal como o release disparado pela editora, é a biografia de rock que “alimentou todas as outras” na área publicadas na América Latina hispânica.
A partir da primeira edição, lançada em outubro de 1997, Sérgio Marchi passou a ser referência não só sobre o músico, mas sobre a produção de livros e ensaios que abordam a produção cultural argentina. Hoje, Marchi é um dos jornalistas e biógrafos mais respeitados da cena musical latino-americana, com uma carreira sólida que se estende por várias décadas, escrita de livros sobre ícones como Charly García, Spinetta e Gustavo Cerati, e reconhecimento, em 2022, pela Assembleia Legislativa da Cidade de Buenos Aires como Personalidade Destacada da Cultura. Suas obras são consideradas mais do que simples biografias: elas oferecem um mergulho profundo nas vidas desses músicos, revelando não apenas os aspectos mais conhecidos de suas trajetórias, mas também os momentos íntimos e os desafios que enfrentaram ao longo do caminho.
Nesta reedição de “No digas nada”, em 2024, o autor se afasta de Charly, o que lhe permite ajustar o foco e dissipar a névoa, acrescentando nove novos capítulos aos sete da primeira atualização, feita em 2007, pouco antes do colapso de Charly em Mendoza, em que revela, muitas vezes entre linhas, boa parte dos mistérios desse período da vida do músico.
Sergio Marchi nasceu em 1963 e tem 10 livros publicados. Foi secretário de redação da lendária revista Rock & Pop, trabalhou por nove anos no Clarín, e foi editor da Rolling Stone Argentina. Atualmente ministra cursos online sobre história do rock e jornalismo, escreve para o Clarín e apresenta o programa El ritmo divino pela Radio Universidad de Buenos Aires, todas as quartas-feiras às 22h.
Nessa rápida entrevista exclusiva, Marchi analisa os obstáculos para a divulgação de biografias e ensaios sobre músicos latino-americanos no Brasil e oferece uma visão crítica do cenário editorial, além do jornalismo musical e seu processo de pesquisa. Marchi também compartilha sua opinião sobre a série de Fito Páez, e sua relação com Charly, legado, entre outros pontos.
Você possui uma carreira consolidada nos países da América de língua espanhola, entretanto, é muito difícil encontrar as suas obras no Brasil. O mesmo ocorre com outras obras de escritores latinos, o que não parece ser apenas um reflexo do mercado editorial brasileiro (que apresentou queda na venda de livros físicos pelo segundo ano consecutivo no Brasil, de acordo com a Pesquisa Produção e Venda do Setor Editorial Brasileiro 2024, e aumento de 14% nos livros digitais, segundo a Pesquisa Conteúdo Digital do Setor Editorial Brasileiro). Na verdade parece ser algo histórico mesmo, como uma barreira temática ou de idioma. Mas além disso, quais são os principais desafios que você percebe na publicação de livros sobre músicos latino-americanos no Brasil? Há outros fatores que limitam esse intercâmbio?
Acho que você explicou melhor do que eu poderia: idiomas diferentes, artistas que não são conhecidos. Também não sei se nos meus contratos de livros “internacionais” (Roger Waters, Beatles) consta a opção de tradução para o português. Desconheço o mercado editorial do Brasil. Imagino que deve haver no Brasil pessoas que abordem esses temas. Mas sejamos realistas: um livro sobre Spinetta ou Cerati não venderia muito.
Como você avalia o panorama editorial argentino em relação à demanda por biografias e ensaios sobre músicos nacionais?
Não sei qual é a demanda. Só posso intuí-la, como no caso de Roger Waters, em que escrevi o livro porque vi uma janela de oportunidade com a visita dele à Argentina. Acho que há mais oferta do que demanda, porque existe uma grande quantidade de títulos e não sei se há tantos leitores. Além disso, recebemos muitos livros traduzidos da Espanha, sobre músicos internacionais, o que é uma calamidade porque os traduzem para o “espanhol” e não para o “castelhano”. Mas me pediram poucas traduções: fiz “Os Anos de John Lennon em Nova York” e “Os Young” (AC/DC), ambos pela Planeta, cuja sede fica em Barcelona, então eles mandam os livros diretamente de lá ou usam as traduções e imprimem na Argentina. No meu caso, escrevo sobre o que me interessa ou onde vejo alguma oportunidade de escrever sobre algo que conheço e gosto.
Em uma busca pelo Kindle, é possível encontrar apenas dois livros seus disponíveis, em espanhol: a nova versão do livro de Charly Garcia e o livro sobre Gustavo Cerati. As plataformas digitais podem democratizar, ou facilitar um pouco, o acesso e impulsionar o interesse por livros sobre músicos da América Latina no Brasil. Mas já houve algum movimento para publicação deles em português?
Você deveria encontrar quase todos, na verdade eu mesmo publiquei “Cinta Testigo: La Radio por Dentro” através do Kindle. Em alguns casos, não existia a versão em ebook (antes do livro do Pappo), mas “Spinetta” deveria estar disponível, se não no Kindle, pelo menos na Amazon. Acho que Argentina e Brasil fazem parte do Mercosul, mas funcionam como compartimentos separados. Tenho a impressão de que a música argentina não desperta muito interesse por aí; aqui, por outro lado, alguns músicos do Brasil despertam interesse, mas o rock não, além do que os Paralamas do Sucesso representaram em sua época.

Você tem uma reputação de realizar pesquisas profundas e detalhadas. Como é seu processo de pesquisa e escrita?
É diferente de acordo com o tema abordado e o momento da vida em que estou. A quantidade de trabalho que tenho também influencia. Basicamente, procuro pesquisar tudo e, só depois de ter feito isso, começo a escrever. Dizem que o diabo está nos detalhes, e eu acredito que Deus também está.
O jornalismo musical, especialmente no formato de biografias, pode ser desafiador em termos de ética e precisão. Alguns de seus livros geraram algumas polêmicas, como no caso de Pappo ou talvez Spinetta. Como você lida com críticas ou pressões externas ao escrever sobre figuras tão emblemáticas e controversas?
Quando escrevo, não há pressão nem críticas; elas vêm depois. Na verdade, nenhum desses dois livros gerou qualquer polêmica, mas se você leu isso na Wikipedia, pode parecer que sim. O filho do Pappo reclamou publicamente, mas ele foi o primeiro a saber do que eu pretendia fazer. Ele se irritou porque conversei com a irmã de seu pai. São problemas familiares que não me dizem respeito, embora, de certa forma, façam parte da história. Com Spinetta, alguém reclamou porque não entrevistei uma ex-namorada, mas houve várias outras que agradeceram por eu não as ter entrevistado. Às vezes, criticam a ausência de determinada pessoa sem considerar que há gente que decide não participar ou colaborar. Eu sigo em frente.

Em 2013, o Brasil discutiu sobre o direito à privacidade e à liberdade de expressão, especificamente no que se refere à publicação de biografias não autorizadas. Um grupo liderado por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Roberto Carlos defendia uma “autorização prévia” para biografias, algo como censura, mas a justiça decidiu que essas publicações não deveriam depender dessa autorização. Ainda assim, muitos jornalistas e escritores têm medo de processos em eventuais publicações. Como funciona essa questão na Argentina? É perigoso fazer biografias?
Não é perigoso, a menos que você minta ou difame. Se você é uma figura pública, eu posso escrever sobre você. O que não posso fazer é mentir. Sempre que você faz livros, especialmente se eles têm sucesso, haverá alguém que critica por inveja, por não ter sido convidado a participar ou simplesmente porque o dia está muito quente (NOTA: a expressão original é “o porque es un día muy caluroso”, que pode ter outras interpretações).
Como você vê a evolução do jornalismo cultural e musical na Argentina e na América Latina? E qual o papel do jornalista na preservação da memória cultural?
Honestamente, não faço a menor ideia. Depende dos jornalistas e dos casos. Mas não sei qual é a evolução disso. Eu não penso nesses termos de “preservar a memória cultural”. Gosto de rock pela liberdade que ele me dá, não para que um grupo de barbudos que se autointitulam pensadores julgue se estou preservando a cultura ou não. Fuck them! Há gente que faz isso bem, outros fazem mal, mas eu tento fazer os melhores livros que consigo. Li muitas biografias de músicos estrangeiros, e eram tão completas, tão bem escritas, tão claras, que quis fazer o mesmo. Se acertei ou não, isso é uma decisão entre o leitor e eu. Por mim, não libero um livro até sentir que ele está pronto. Pode ser que eu o sinta pronto e ele não seja bom, mas quem me julga são os leitores.
Charly García e Spinetta são lendas na Argentina, mas no Brasil têm uma inserção limitada. Charly tentou entrar no mercado com shows e discos, mas nunca virou um fenômeno comparável com a Argentina (o último show dele em solo brasileiro ocorreu dia 31 de julho de 2004, em Gramado (RS), com duas horas de duração e direito ao arremesso de um sofá no famoso Lago Negro). Fito Páez conseguiu uma inserção mais abrangente, com vários concertos e um interesse renovado pela série recente da Netflix. Mas o que você acha que explica essa dificuldade dos argentinos em conquistar o público brasileiro?
O idioma e a idiossincrasia. Eu estive na gravação de “Parte de la religión” (de Charly Garcia), por um encontro fortuito com Mario Breuer e Charly nas praias do Leblon (Nota: Charly compôs e gravou muitas coisas no Brasil com o Serú Giran e na sua carreira solo. O disco mencionado por Marchi, além de ser gravado parcialmente por aqui, teve a participação de Paula Toller no hit “Buscando un símbolo de paz”). Adoraria poder ter um mercado para os meus livros no Brasil, que é um país gigante e lindo, mas a realidade é que o idioma e os tópicos que trato não têm um mercado aí.
Aliás, você viu a série sobre o Fito Páez, “El amor despues del amor” (2023)? O que achou?
Achei que as caracterizações e as atuações foram muito boas. O roteiro tem algumas inconsistências, e em alguns momentos pensei em quanto faltava para terminar. Mas conheço a maioria dos envolvidos e todos são mais ou menos como estão representados. Eu vivi toda aquela época e muito de perto. O pior representado foi o Spinetta, mas não porque o ator fosse ruim, e sim porque não acertaram em entender quem era o Spinetta. Isso mostra falhas no roteiro, na pesquisa: o Luis jamais teria dito a Fito uma bobagem como a da série sobre um tema tão doloroso quanto o assassinato de sua tia e de sua avó, que praticamente o criaram. Charly o acolheu no Brasil (à sua maneira), e Luis Alberto e Patricia acolheram Fito e Fabiana em Buenos Aires.
Na nova edição do livro “No digas nada – Una vida de Charly Garcia”, você fala do entorno dele, inclusive do fator Mecha Iñigo (Nota: uma ex-modelo que orbitava ao redor de Charly entre 2007/2008 e que acabou virando sua companheira desde então, tendo sido responsável pelos cuidados da saúde física e financeira do músico, mas sendo atacada ao longo dos anos pelo filho de Charly, Miguel, e por alguns fieis escudeiros do artista, como o baterista Fernando Samalea, acusando-a de manter o músico em uma espécie de cárcere privado), e trouxe à tona quadros de depressão e detalhes até então desconhecidos do incidente em Mendoza em 2008. Mas durante o processo de atualização, você descobriu algo novo ou surpreendente sobre Charly que gostaria de destacar ou que tenha te marcado?
Não, essa é a pergunta que mais me fazem em todos os livros: descobri algo novo? E é a mais difícil de responder, mas geralmente, na hora de escrever, você já descobriu tudo ou deveria ter feito isso. Normalmente, não há revelações como epifanias, mas, aos poucos, você vai completando as peças. E o do Charly é um tabuleiro que conheço muito bem. As surpresas que possa haver são as que escrevo e compartilho com o leitor, estão no texto e eu já não as lembro.
O livro todo aborda de várias formas sua relação pessoal com Charly García. Isso influenciou a forma como você o retratou no passado ou na versão atualizada?
É que minha relação pessoal com Charly é o núcleo do livro. Isso me foi muito criticado: o fato de eu ter usado a primeira pessoa. Como se eu não tivesse o direito de existir nessa história. São coisas que vivi. Por que eu não poderia contá-las a partir de mim? Mas eu pensei em uma biografia descontraída, louca como o Charly, que vai e vem. Há partes em que não uso a primeira pessoa porque falo de fatos que aconteceram antes de eu me relacionar com o Charly. Logicamente, minha relação influencia, e por isso o livro tem diferentes perspectivas: a primeira, muito próxima e cúmplice; a segunda, um pouco mais distante, porque esses fatos foram mais os que investiguei do que os que vivi; e a terceira, já mais crítica, porque o Charly teve atitudes comigo que não gostei. Mas eu escrevo profissionalmente, não uso o livro como ajuste de contas; sendo eu o autor, acho que tenho o direito de ter uma perspectiva. Há uma quarta visão, que é a clínica, já distante do quadro e vendo coisas que antes não podia ver por inexperiência, idade ou proximidade. Essa visão está no “after me”. Muita gente é tão tola que acredita que escrevi em primeira pessoa por egolatria. São tão estúpidos que, em vez de se apropriarem dessa primeira pessoa e serem eles mesmos os que vivem a história, não sabem aproveitar o encantamento que um livro pode ter. Eu li muito Emilio Salgari (escritor italiano, 1862-1911) e eu era Sandokan, Yanez (personagens corsários salgarianos) ou com quem me identificasse: eu era um pirata e vivia aquela história. Talvez seja muito pedir para os leitores esse candor. Mas houve gente que entendeu bem, se esqueceram de mim e se tornaram eu no livro, que foi a intenção.
Como você definiria o legado de Charly García para as novas gerações? O que, em sua opinião, faz dele uma figura tão única e duradoura na cultura musical da Argentina e da América Latina?
Seu legado é indestrutível e acho que eterno. Suas grandes canções, sua ousadia, suas saídas geniais e seu talento musical formam um conjunto que é único e irrepetível.
Durante o trabalho de pesquisa de “Algún tiempo atrás: La vida de Gustavo Cerati”, houve algum momento pessoalmente marcante ou relevante que você lembre e que não está no livro?
Não, houve algumas coisas que ficaram de fora, mas sempre são detalhes ou obsessões do autor.
Trabalhando com histórias sobre personagens da música, imagino que você tenha ouvido muito a obra desses artistas. Você ainda se emociona com a música? O que te emociona?
Claro! Uma boa canção me emociona, uma melodia, uma harmonia, um ritmo de bateria, um deslize do baixo. Sobre os artistas de quem escrevo, eu os escuto tanto que, depois de um livro, os deixo descansar por um tempo. Mas inevitavelmente volto a eles.
– Diego Queijo é jornalista! Acompanhe: instagram.com/diegoqueijo.