texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Décima quarta de dezesseis apresentações confirmadas para 2024 (três novas datas – Rio, Salvador e Porto Alegre – foram anunciadas para 2025), a estreia em São Paulo do show que reúne no palco os irmãos Caetano Veloso (82 anos) e Maria Bethânia (78 anos) traz todos os ingredientes de uma celebração popular, e ainda que a magnitude da produção os coloque num pedestal que os afasta do público e dificulte improvisos engessando o roteiro e, por conseguinte, os irmãos, é impossível negar a emoção de ver e ouvir os dois, juntos, entoando clássicos da música brasileira, mais da metade composta pelo próprio Caetano.
Trazer o público para dentro do show em um estádio é um desafio que todas as grandes produções enfrentam (Paul McCartney costuma colocar a seção de metais na arquibancada no começo do show e conversar muito com o público enquanto Bruce Springsteen – e St. Vincent – se jogam literalmente no meio dos espectadores e o Coldplay crie palcos alternativos – um deles fora da pista premium! – para quebrar o gelo da audiência), pois uma coisa é você tocar próximo do público, olho no olho (que sonho seria ver esse show numa casa pequena) e outro é se apresentar num palco alto com fãs a dezenas de metros de você. O calor se esvaí…
A seu favor, Caetano e Bethânia (assim como o Titãs, que também se apresentou no Allianz Parque com sua turnê comemorativa) tinham um arsenal de sucessos a seu dispor, e escolheram a maioria das canções que o público sabia realmente cantar – em um estádio é muito mais fácil deixar se levar pelo coro incessante do público do que ficar buscando nuances da delicadeza dos arranjos (o que todo mundo verá com calma no vindouro DVD) da ótima banda composta por 11 músicos para um set de pouco mais de duas horas de duração – o que, somado à garoa insistente, deve ter feito muita gente voltar rouca pra casa.
“Alegria, Alegria” (1967) abriu a noite de forma calorosa, com o público urrando nas entradas de Maria Bethânia, que, nessa primeira parte da noite, iria alternar estrofes de canções com o irmão, algo que se seguiu com “Os Mais Doces Bárbaros” (1976), primeiro número do show a marcar a ausência de Gal Costa entre nós. Ainda que a postura de Caetano, mais agitada, chamasse a atenção, foram os detalhes da performance de Bethânia que mais renderam bons momentos na festa (descontando o olhar fixo no teleprompter), como quando ela exibiu seu colar na frase “Gente é pra brilhar”, para delírio da audiência, ou quase cantou inteirinha “Vaca Profana” (outra do repertório de Gal) empolgada fora do microfone – nesse número, Bethânia só participa do refrão.
Com o telão dividido para cada irmão (olhando o palco de frente, o da esquerda ficou para Bethânia e o da direita para Caetano), o lado do palco dela parecia mais lotado que o dele, o que não é de se estranhar: Caetano é um compositor genial e um ótimo intérprete, mas sua irmã é uma deusa suprema da voz chegando a impressionar como mesmo olhando fixamente o teleprompter em boa parte da noite, ela ainda cante com segurança, força e clareza. A Cesar o que é de Cesar: Caetano é um compositor magnifico, e Bethânia uma cantora incomparável – uma pena que sua tradicional declamação de poemas tenha ficado de fora do set.
Os bons momentos se atropelam: “Não Identificado”, “Samba de dois-dois”, “Tropicália”, “Um Índio”, “Marginália II” (do sensacional disco do fardão de Gilberto Gil), “Cajuína”… Bethânia, então, deixa o palco, e Caetano abre seu momento solo (escudado por Lucas Nunes, no violão) com o maior sucesso de sua carreira, sua versão para “Sozinho”, de Peninha, seguida de “O Leãozinho” e outro flerte com o brega, “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, de Fernando Mendes, que Caetano gravou para a trilha sonora do filme “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), e que surge ambientada por uma guitarra estridente de Lucas Nunes (Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, faria o diabo nessa versão). A brega chique “Você é Linda” antecede o momento mais marcante da turnê, em que Caetano não apenas canta um louvor do pastor Kleber Lucas (que o próprio Caetano também gravou), como também expõe o “interesse que me desperta o crescimento das igrejas evangélicas no Brasil”.
O louvor foi, como tem sido em toda a turnê de Caetano e Bethânia, recebido com frieza pelo público paulistano. Questões religiosas de lado (o que é difícil, sabemos), uma música (fraca) dessas ocupar o espaço de “Fora da Ordem”, “O Ciúme”, “Irene” ou algo do “Transa”, por exemplo, é um pecado, mas Caetano (mais interessado na provocação do que na qualidade musical do ato) nunca deu ponto sem nó, ainda que em diversos momentos de sua carreira tenha errado o ponto, como agora. Mestre em criar situações de marketing para colocar seu nome em voga e, assim, atrair os olhares do público para um novo disco ou show, Caetano utiliza sua justificativa (importante: mais do que a própria música) para tocar “Deus Cuida de Mim” como ferramenta de divulgação da turnê (rolou até questionário sobre o assunto na Folha de São Paulo, divulgação gratuita dos shows).
O fato da execução da canção “Deus Cuida de Mim” ser o momento menos cativante e cantado pelo público no show, no entanto, remete diretamente à Roberto Carlos, já que nos shows do Rei, sua versão para “Nossa Senhora” tem sido a canção com o coro mais efetivo do público em toda a apresentação, encobrindo um repertório tão poderoso, o que deixa um incomodo gostinho ateu na ponta da língua, afinal a pessoa saí de casa para ouvir hinos do quilate de “Detalhes”, “Sua Estupidez” ou “Emoções”, e se surpreende que a canção mais cantada de toda a noite será um louvor para Nossa Senhora. Há, claro, diferenças geracionais (o público de Roberto é muito mais velho – e careta – que o de Caetano, por exemplo) e, principalmente, de religião, mas as canções de Caetano se sobreporem a um louvor coloca um sorriso tolo no rosto.
Passada a saia-justa, Bethânia retorna solo ao palco para arrumar a casa que o irmão bagunçou, e traz pra isso um caminhão de sucessos de sua fase mais lucrativa: “Brincar de Viver”, “Explode Coração”, “As Canções Que Você Fez Pra Mim” e “Negue” são a Bethânia que todo mundo aprendeu a amar ouvindo no rádio. Dai pra frente, há homenagem para Gal Costa (com “Baby”, “Vaca Profana”, fotos de Gal gostosa no telão e Caetano dizendo que ela “foi o mais perfeito eco da bossa nova e a mais bela tradução do que tinha de mais rock’n’roll no tropicalismo”), uma sofrível versão big band Las Vegas de “Gita”, de Raul Seixas (que não é citado), uma interessante versão de “Fé”, de Iza (que, inclusive, foi lançada em single pelos irmãos), e, de forma improvisada, “Sampa”, no bis, homenageando São Paulo (e Rita Lee, sua mais perfeita tradução, sem foto no telão).
Como um todo, o show conjunto de Caetano & Bethânia versão 2024 é muito bom e bonito, ainda que distante e inferior às apresentações solo de ambos os artistas na cidade nos últimos anos: Maria Bethânia fez um show arrasador no Coala Festival 2022, daqueles que dá arrepio só de lembrar, e Caetano brilhou tanto revisitando o passado (a gente devia emoldurar aquele show do “Transa” no Espaço Unimed, viu) quando defendendo ao vivo o repertório do ótimo álbum “Meu Coco” (2021) – aliás, “Não Vou Deixar” caberia muito no set desse show conjunto. Diminuído pela escolha e defesa equivocada de uma única canção, e imensamente lucrativa nos cofres, a turnê de Caetano e Bethânia encerra 2024 de maneira grandiosa, mas, ainda assim, menor do que poderia ser. Se Deus existe (e criou Beethoven, Mozart, Bob Dylan, Caetano Veloso e… todos nós), ele também prefere boa música a jogadas de marketing. É preciso aprender mais de Deus (e de músicas boas). Amém.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br
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