Entrevista: Paula Cavalciuk fala sobre “Pangeia”, um dos grandes discos do ano, e da reaproximação com a viola caipira

entrevista de Marcelo Costa

Paula Cavalciuk é daqueles segredinhos encantadores que a gente assopra nos ouvidos dos amigos mais próximos, despretensiosamente, esperando que sua música os conquiste da mesma forma que nos conquistou. Assim foi com “Morte & Vida” (2016), seu disco de estreia, um álbum – produzido por Bruno Buarque e Gustavo Ruiz e com participação de Kiko Dinucci e da rapper Fernanda Teka – que é essencialmente pop psicodélico experimental na combinação radical de estilos (de samba ao rock, de guarânia ao tango, do carimbó à música africana), mas doce na voz e assertivo nas palavras. Oito anos depois – e uma pandemia, um casamento, uma gravidez e uma filha – Paula Cavalciuk está de volta com “Pangeia” (2024), que se apoia no som da viola caipira – tocada pelo parceiro Anderson Charnoski – para falar de temas universais e atemporais de modo cativante.

“A viola caipira entra como proposição estética e política, um signo de um modo de vida totalmente sustentável. Quer maior radicalidade que o estilo de vida caipira?”, questiona Paula na conversa abaixo. Crescida em Tapiraí, cidade de 8 mil habitantes no interior de São Paulo, e hoje radicada em Sorocaba, a 70 quilômetros de onde cresceu, Paula conta que, quando mais jovem, “achava que só o rock me salvaria (e salvou) e só uma guitarra distorcida me representaria”, mas assume que “a viola caipira sempre esteve presente nas minhas referências musicais mais antigas, mais profundas. Acho que a maturidade me fez assumir sua influência, que veio com toda essa ideia de “Pangeia”, dando ao instrumento o destaque que sempre mereceu em meu trabalho”.

Na conversa abaixo, Paula Cavalciuk revela como foi chegar ao estúdio de seu produtor para gravar seu segundo disco sem edital aprovado e com zero reais (meio como Cat Power fez para gravar “Sun”, com a diferença que Chan “se separou e cortou o cabelo”, e Paula estava grávida de 8 meses), conta das influências de Rita Lee e Fernanda Takai (e Pato Fu), além de Legião Urbana, e dos desafios de colocar um grande disco como “Pangeia” na estrada: “Eu sabia que seria um desafio voltar aos palcos depois de um hiato considerável e com uma filha pequena no colo, mas o fato é que eu vejo tudo quanto é artista reclamando de circulação de show, então tem mais coisas rolando”, observa. Para os interessados, Paula Cavalciuk fará shows dia 15 de dezembro no projeto gratuito Café com Música, do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em três sessões: domingo 13h, 15h30 e 17h30). Nos vemos lá? Antes, leia a conversa. Está uma delícia 🙂

“Pangeia”, seu segundo disco, foi lançado no primeiro semestre e destaca uma presença marcante da sonoridade da viola caipira, que chegou a estar presente em uma canção de seu disco de estreia, “Morte e Vida” (2016), mas se ampliou agora. Como se deu essa aproximação? Você já estava compondo as canções pensando nessa sonoridade?
A Pangeia que idealizo, a Mãe Gaia, a Pachamama é um lugar futurista, onde todo esse asfalto virou flor e não existe mais necessidade nenhuma de fronteira, o quintal da gente é o mundo. É uma proposta radical. Aí é que entra a viola caipira como proposição estética e política, um signo de um modo de vida totalmente sustentável= o modo caipira. Quer maior radicalidade que o estilo de vida caipira? Sim, esse mesmo a quem Monteiro Lobato passou certo tempo ridicularizando, inferiorizando em suas teses eugenistas, representa, na verdade, um modo de vida que prezava pelo ócio, pelo lazer, pelo aproveitamento das estações, dos alimentos, dos recursos naturais. O caipira respeitava ciclos, o tempo da semeadura, da colheita. Podia não ter diploma, mas isso nunca significou que não tinha inteligência para lidar com o mundo, enquanto pudesse pisar o chão. Imagina que beleza pro planeta, se passássemos a agir assim, do nada?! rs

Quando mais jovem, morando numa cidadezinha de 8 mil habitantes (Tapiraí/SP), tendo um coração mole e muita revolta, eu achava que só o rock me salvaria (e salvou) e só uma guitarra distorcida me representaria (pra piorar, eu ainda tinha que cantar na missa, aos domingos de manhã, por vontade da minha mãe, imagine!). Hoje eu continuo tendo um coração mole e muita revolta, mas uma viola afinada em “cebolão” me representa mais.

Outro fator importante, e isso Freud explica, é que meus pais faleceram em 2011 e 2012 e essa sonoridade é também uma herança, acaba que isso me conforta e me aproxima do que preciso para dar continuidade à essa árvore genealógica, depois da chegada da minha filha, Sara. Agora, outro fator determinante para a aproximação com a viola acontecer, foi a aproximação com Anderson, meu companheiro. Quando nos conhecemos ele contou que tinha uma viola, que havia ganhado de seu avô, mas nunca tinha tocado de verdade. Aí como eu estava trabalhando nas músicas do “Pangeia”, fez muito sentido explorar isso. A viola caipira sempre esteve presente nas minhas referências musicais mais antigas, mais profundas. Acho que a maturidade me fez assumir sua influência, que veio com toda essa ideia de “Pangeia”, dando ao instrumento o destaque que sempre mereceu em meu trabalho.

Quem já foi Pangeia não tem medo de partir?
Não. Nem de partir de um lugar (nos últimos quatro anos, me mudei de casa quatro vezes), nem de partir o pão, nem de ver o chão se partir diante dos pés, dando origem a mais um continente, que é a pira de Pangeia, de acordo com a teoria da deriva continental. O grande continente que se abriu e deu origem ao mundo como conhecemos.

Em comparação com o “Morte e Vida”, que tinha algumas participações (Alex Tea, Fernanda Teka e Kiko Dinucci), “Pangeia” é centrado em você e na banda. Como foi trabalhar com o Bruno Buarque, que produziu os seus dois álbuns (o primeiro dividindo a função com o Gustavo Ruiz), e com a banda? O disco que você tinha na cabeça é esse que a gente ouve agora?
Bruno Buarque é um baita dum cara massa demais! Abriu as portas do estúdio Minduca todas as vezes que bati, sendo que desta última vez, eu não tinha edital aprovado, estava grávida, tinha zero reais e um financiamento coletivo ainda por lançar. Ele acreditou demais, saca?! Além disso, é fácil trabalhar com o Bruno e eu cheguei com mais repertório, com vocabulário mais certeiro (e isso economiza um tempão em estúdio), com as referências muito na cara e os arranjos elegantemente desenhados pelo Anderson, que, aliás, gravou todos os instrumentos, praticamente. Eu gravei voz, Bruno gravou percussões e Anderson gravou viola, violão de aço, violão de nylon e baixo. Gravamos muito rápido. Reservamos dez diárias e usamos apenas quatro. Esse disco tem a sonoridade que eu queria, porque eu só queria mesmo era apontar os microfones nos instrumentos acústicos e na minha boca e gravar. Foi uma sonoridade muito típica da nossa casa. Conheci Anderson cinco meses antes da pandemia. Nos casamos na pandemia e nossa casa sempre foi permeada por essas canções e os arranjos que ele foi escrevendo. Sempre respeitando a canção, a história por traz de cada letra, de cada nota. Produzir o “Pangeia”, gravar, foi um processo em que me senti muito respeitada e muito à vontade. Com exceção do dia em que fomos de ônibus pra SP e andar de metrô em SP com uma barriga de 8 meses, cansaço extremo e sensibilidade aflorada, me fez sentir bem pouco respeitada, mas esse perrengue é papo pra outra hora, senão eu não paro de escrever rs.

Tocando nesse assunto, “Pangeia” foi gravado não apenas no período de pandemia, em 2022, mas também no trimestre final de sua gravidez. As canções também são desse período, ou eram mais antigas? Como foi gravar cercada por tantas mudanças (pessoais e sociais)?
A canção que dá nome ao disco é de 2015, toda essa ideia, na verdade. Eu já inscrevi diferentes repertórios em discos de mesmo nome em editais que nunca foram aprovados, por exemplo. Daí, enquanto você não finaliza um projeto, fica sempre mexendo nele. Fui somando capítulos ao disco, digamos assim. “Eu Gosto Tanto de Você”, por exemplo, fiz pro Anderson no dia do seu aniversário em 2020 (estava sem grana e não poderia deixar passar em branco). “Nhô João” é uma das mais recentes do disco, parceria minha com o Anderson, homenageia essa figura importantíssima da história, cultura e fé sorocabana. João de Camargo Barros, um homem ex-escravizado que teve algumas visões espirituais que o incumbiram da missão de construir a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim da Água Vermelha e ali prestar atendimento fraterno até o fim de sua vida. Foi o que ele fez até sua morte, em 1942. Essa música foi o Anderson quem trouxe a ideia, já com um refrão, daí eu fiz melodia e letra pro verso. Eu estava grávida, inclusive, e se o bebê fosse menino, se chamaria João (pelo menos eu não fiz chá revelação rs). “Mamífera” foi fruto de um poeminha visual que deixei sobre a mesa e dias depois, pedi ao Anderson pra harmonizar uma melodia que tinha acabado de pensar e saiu assim, de primeira. Dois meses depois eu estava grávida (premonição musical? rs). Isso foi em 2021. “Caravana” é a mais recente, é parceria minha com o Anderson. O nome da nossa filha é Sara em homenagem a Santa Sara Khali, a padroeira dos ciganos. No dia em que chegou o bercinho da Sara, eu estava na metade da gravidez, parece que algo se materializou no meio de todas essas expectativas que cercam a gestação da vida humana. A gente sentou no quarto, diante do berço montado (eu que montei, adoro mexer na casa rs) e aí saiu essa música.

Aqui e ali no disco é possível perceber influências de Pato Fu e Rita Lee (aqui no site a gente aproxima “Pangeia” de uma banda que a gente admira demais, o Deolinda, até pela viola, no caso deles, portuguesa), seja nas composições, seja no jeito de você colocar a voz ou mesmo na força das suas letras. Eu queria que você falasse um pouco da influência dessas mulheres na sua música?
Duas baita referências pra mim! Um tempero de ambas que eu me identifico, pra além de questões musicais, é o humor. Rita Lee eu já conhecia desde a infância, mas em 1998 saiu seu “Acústico MTV” e eu definitivamente comi com farinha esse álbum! Cheguei a decorar seus arranjos. Fui com gosto pro violão. “Doce Vampiro” foi a primeira música que tirei de ouvido. Tive que tirar, pois na minha cidade não tinha internet facilmente, aí me restavam as revistinhas de cifra compradas na casa lotérica, mas a maioria eram da Legião Urbana (que aliás, é outra banda que amo e me influenciou muito, mas isso é papo pra outra hora). Depois eu mandei uma carta pra revista ShowBizz (você lembra disso, Marcelo? Diga que sim! Rs – Nota do editor: Eu também mandava carta pra lá!) e tinha uma sessão, na última página, onde você mandava seu nome, endereço e uma banda que curtia, para que outros fãs da mesma banda trocassem figurinha com você. Eu tinha 12 anos quando passei a trocar cartas com deus e o mundo e hoje entendo o descontentamento do meu pai, quando um amigo com quem eu trocava cartas, veio do Japão e quis me visitar em Tapiraí rs. O fato é que foi nessas trocas de cartas que um dia recebi uma fita k7 com um compilado de músicas d’Os Mutantes. Putz! Aí minha cabeça explodiu! Abriu-se um portal que nunca mais fechou! (Ainda bem!).

Pato Fu é uma grande banda de rock do Brasil e eu acho uma pena existir um abismo entre eles e a atual geração que consome música, pois certamente a galera iria amar o som da banda. Muito atual, muito original. Fernanda Takai é uma figura inspiradora, sem dúvidas. Assim como eu, ela também teve uma educação cristã, tanto é que regravou Padre Zezinho!!! A voz da Fernanda Takai carrega uma suavidade, uma singeleza, de modo que daria pra receber várias notícias ruins vindas da Fernanda, mas ainda bem que ela porta suas músicas maravilhosas. Esse lance dela ser de origem japonesa, também me aproximou dela, pois Tapiraí foi um destino muito forte para imigrantes japoneses, então influenciou muito a cultura local. Minha melhor amiga da infância foi morar no Japão e antes disso, frequentei algumas aulas de japonês com ela (acabei memorizando pouca coisa, além de palavrões rs). Tive o enorme prazer de gravar “Canção Pra Você Viver Mais”, numa coletânea em homenagem aos 25 anos do Pato Fu. Gravar com a Fernanda Takai é um desejo que se mantém vivo. Quem sabe, né?!

Você vive em Sorocaba, interior de São Paulo, e imagino que seja uma batalha pra você e banda circular esse show. Como está rolando o “Pangeia” nos palcos?
Poxa, está rolando muito menos do que eu gostaria. Eu me afastei bastante dos meandros musicais e o “Pangeia” tem sido um retorno. Eu sabia que seria um desafio voltar aos palcos depois de um hiato considerável e com uma filha pequena no colo, mas o fato é que eu vejo tudo quanto é artista reclamando de circulação de show, então tem mais coisas rolando. Eu penso que o comportamento da gente foi moldado pra sempre durante a pandemia, treinamos o distanciamento, o virtual, ao passo que destreinamos o encontro. Parece um pouco mais complicado tirar as pessoas de casa, hoje em dia. Outro fato é que muita curadoria hoje em dia se baseia em números, em engajamento de conteúdo virtual e eu sou orgânica, não posto uma vida perfeita, uso minhas redes sociais pra falar do genocídio do povo palestino, da PM que mata crianças e jovens pretos nesse país racista, das questões de direitos reprodutivos para meninas e mulheres… e essas coisas não engajam.

“Morte e Vida” lhe rendeu uma indicação como Artista Revelação para a Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) em 2016, e, oito anos depois, “Pangeia” já está na lista dos melhores discos de 2024 para a APCA. Como é pra você receber esse reconhecimento?
Ai, Marcelo, é uma alegria imensa! Não vou negar! Porque é tudo feito tão na “raça”, mas tudo com muita verdade. Aí quando acontece um negócio desses, sinto que estou no caminho, que não tô ficando louca de continuar insistindo em fazer música. Estamos vivendo um momento de total desatenção, então quando as canções chegam em ouvidos que se atentam, quando alguém presta atenção, escuta, se identifica, parece que aí tudo isso, todo esse corre e essa vida cheia de dores e delícias vale mesmo a pena. Aí você acorda um belo dia e mesmo fazendo as coisas sem grana, no corre, na vontade, e está numa lista foda dessas, ao lado de Cátia de França, Chico Cesar e Zeca Baleiro, Hermeto Paschoal e toda essa turma, com um disco independente. Gratificante demais!

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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