Antiprisma se reinventa no disco “Coisas de Verdade”. Elisa e Victor comentam o novo álbum faixa a faixa

texto de Alexandre Lopes
fotos de Elisa Moos e Victor José, do Antiprisma

Em novembro deste ano, a banda Antiprisma – formada originalmente por Elisa Moos e Victor José – liberou seu mais recente trabalho, o álbum “Coisas de Verdade” (2024). Depois do EP “Antiprisma” (2014) e dos discos “Planos para Esta Encarnação” (2016) e “Hemisférios” (2019), o grupo se propôs a criar uma obra que fosse real, humana e sincera sem qualquer pretensão de capturar o ouvinte que não fosse por meio da própria música e poesia. Segundo a dupla, a ideia sempre foi elaborar um álbum que soasse vivo, sem subterfúgios, e que comunicasse sentimentos com quem quer que se deparasse com essas faixas. “As canções devem bastar, ou melhor, as canções precisam bastar”. E assim, “Coisas de Verdade” faz jus ao seu nome.

Como a dupla já tinha adiantado ao S&Y em um entrevistão publicado meses atrás, “Coisas de Verdade” representa uma mudança significativa na dinâmica do Antiprisma: pela primeira vez, Elisa e Victor abriram seu processo criativo para outros músicos, permitindo que a composição e gravação do álbum se transformasse em uma grande experiência colaborativa. Ana Zumpano e Beeau Gomez (da banda irmã Retrato) se juntaram oficialmente ao projeto (assumindo bateria/vocais e baixo, respectivamente) e essa união de quatro talentos e expressões gerou uma energia de banda ao vivo.

O processo de gravação de “Coisas de Verdade” também contou com as participações especiais de Bemti (vocais e viola caipira), Zé Antonio Algodoal (do Pin Ups, guitarra), Mário Manga (violoncelo) Fábio Tagliaferri (viola de arco), Fábio Cardelli (ronroco) e Zé Mazzei (do Forgotten Boys, no contrabaixo acústico). O resultado foi um som mais amplo e orgânico, como se fosse justamente para dar uma boa resposta à pergunta: “como Antiprisma soaria com uma banda completa?”

Neste faixa a faixa exclusivo, Elisa Moos e Victor José nos conduzem pela sonoridade, histórias e peculiaridades de “Coisas de Verdade”, mostrando que este é um disco que pede para ser ouvido com atenção, para que a beleza e profundidade de suas composições se revelem aos poucos. Para completar essa imersão, o grupo pretende em breve lançar a obra também em vinil, para traduzir a proposta do álbum em uma essência ainda mais concreta, de algo “feito para durar”. Mas enquanto aguardamos esse disco físico, leia o faixa a faixa abaixo, aperte o play e mergulhe nesta jornada musical e profundamente humana.

01) “Que Seja” – Elisa Moos: Essa música veio de uma levada que fiz no violão e estava tocando à toa na afinação CACGCE. A partir disso o Victor fez a linha dele e fizemos a melodia e algumas partes da letra. Estávamos ouvindo muito R.E.M nessa época, e com certeza foi uma influência importante, e acho que ela tem uma cara meio anos 1990. Até mesmo o nome “Que Seja” é uma coisa meio “whatever”, bem jovem noventista, rs. Ela é uma das faixas que remetem bastante ao começo do Antiprisma. Se fosse acústica, poderia estar no nosso disco “Planos Para Esta Encarnação”. Mas desde o começo da composição dela queríamos que fosse com guitarras, banda completa e pensamos muito nela com uma sonoridade do “Sky Blue Sky” do Wilco.


02) “Euforia” – Victor José: Eu tinha essa quase que toda composta há um bom tempo, antes mesmo de existir Antiprisma. Lembro que foi uma das músicas que fiz mais rápido na vida, uns 15 minutos e ela já tinha essa cara. Saiu a melodia meio que junto com a letra e tudo. Quando estávamos pensando em gravar o álbum eu lembrei dela, e assim que mostrei pra Elisa ela já se animou. Mudamos algumas coisas na letra e começamos a levantar o arranjo. Lembro que foi a primeira música que ensaiamos nesse período de pré-produção, eu, Elisa e Ana. O Beeau entraria pra banda alguns dias depois. Gosto muito daquele vazio do início, aquele som seco que a gente tentou imprimir em boa parte do disco. O impacto das cordas do [Mário] Manga e do Fábio [Tagliaferri] no final é tipo a “cereja do bolo”. Me arrepiei na primeira vez que ouvi tudo junto. Acho que tem muito dessas curvas dramáticas em todo o disco.


03) “Vampiros” – Elisa Moos: Talvez a faixa mais pós-punk do disco. Assim que ela surgiu nós sentimos que ela pedia uma atmosfera mais noturna. O Victor tinha essa base na viola e eu fiz a melodia, a partir daí fizemos uma letra que contemplasse a vibe que queríamos transmitir com ela. Depois chegamos à conclusão de que no fim das contas estávamos falando de coisas do universo dos vampiros. Ela é uma das composições mais recentes do disco, terminamos ela depois que começamos a gravar. A bateria da Ana trouxe muito da referência que pensamos, meio Joy Division com Sonic Youth, e o baixo do Beeau no refrão é bem melódico e sombrio. Eu adoro essa música. Tanto eu quanto o Victor gostamos muito de pós-punk e raramente tínhamos oportunidade de expressar essas referências de maneira tão direta nas músicas do Antiprisma, que geralmente têm uma associação mais solar – pelo menos à primeira “ouvida”. Uma coisa interessante também é que no fim dessa música colocamos alguns sons sobrepostos com o ruído das guitarras – um deles é o Vinícius de Moraes recitando “O Dia da Criação” tocado no vinil, com umas partes ao contrário, e outro é um trecho de uma entrevista da Hilda Hilst, que termina falando ‘me ajude’. Isso foi dito num sonho pra mim.


04) “Saturnino” – Victor José: A gente ensaiou essa música vez ou outra desde o início do Antiprisma, mas ela sempre acabava ficando de fora dos nossos discos, mesmo a gente curtindo bastante. No fundo é porque a gente sabia que essa deveria ser com cordas e contar com um arranjo mais orientado pra isso. Sempre fui muito fã dessas músicas de baroque pop dos anos 1960, e o Love é uma banda que sempre me inspirou, principalmente o álbum “Forever Changes”, que tem muito disso de folk rock com cordas. A vibe vem principalmente daí. Chamamos Manga e Fábio [Tagliaferri] pra tocar nessa também e tive o privilégio de escrever esse arranjo pra eles. Ficou uma coisa linda, séria, trouxe um tipo de cor que ainda não tinha percebido em nenhuma outra música do Antiprisma. Não parece, mas tem doze vozes nessa música e quatro linhas vocais diferentes. A ideia era não parecer mesmo e ficar essa coisa meio se deteriorando de um jeito bonito. O velho da letra é real e eu vi esse senhor totalmente anônimo que me inspirou. Fiquei muito satisfeito pelo que ela se tornou. E pensar que a gente quase desistiu dessa música.


05) “Coisas de Verdade” – Elisa Moos: Essa foi a última faixa que compusemos e gravamos do disco. Acho que é a composição mais diferente do que já havíamos feito antes. A primeira coisa que veio desta música foi um beat que o Victor fez. A partir dele, ele fez a base na viola caipira. Depois, para gravar, nós (eu, Victor, Ana e Beeau) reproduzimos o beat com “coisas de verdade”, por exemplo batendo chinelos, fechando um livro, batendo numa panela com água e o som de arroz sendo despejado. Gravamos esse sample no dia 1º de janeiro de 2024, ainda meio virados do reveillón aqui em casa. Tem muito daquela sonoridade dos samples dos Titãs da fase “Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas” e “Õ Blesc Blom”. O Victor fez a letra, e talvez seja uma das minhas letras favoritas do disco – essa frase “o devagar depressa dos tempos” ele pegou emprestado do Guimarães Rosa, do conto “A Terceira Margem do Rio”, e acho de uma profundidade absurda. A Ana canta junto comigo nessa faixa, nossas vozes formaram um uníssono que deu um efeito muito bonito.


06) “São Duas Horas e Está Tudo Bem” – Victor José: Quando ela saiu eu achei que essa melodia já existia, fiquei desconfiado. Mostrava pras pessoas e perguntava se já tinham ouvido. Eu adoro essa, a levada, o riff, o jeito que as nossas vozes e guitarras se misturam. Gosto de como ela é direta, simples, essa coisa power pop meio Teenage Fanclub, Big Star… Escolhemos essa como primeiro single do álbum porque achamos que ela resume muito bem a pegada do disco, e também porque é um bom exemplo do que é o “Antiprisma elétrico”. Logo depois que saiu algumas pessoas vieram comentar com a gente como essa melodia gruda na cabeça. Gosto disso! Tocar ela ao vivo é sempre um momento especial.


07) “Wilma Miragem” – Elisa Moos: Eu tinha essa música faz alguns anos, e nunca pensei que usaria no Antiprisma. Ela tinha uma letra em inglês e o arranjo era diferente. Fizemos um arranjo com uma atmosfera meio misteriosa, sombria e meio Velvet Underground, era o som que essa música precisava para existir no mundo. O Zé Mazzei (Forgotten Boys) toca baixo acústico, que deixa ainda mais “climão” e o Beeau toca uma handpan no começo. Ele gravou no banheiro, por isso tem aquele som cheio de reverb. Além do Victor na viola caipira, tem também o Fábio Cardelli no ronroco. Essa faixa me lembra algumas coisas do Dead Can Dance também. Gosto muito de como gravamos ela, ao vivo e de forma bem livre. Nas nossas cabeças, Wilma Miragem é uma cartomante, mas entenda o que quiser…


08) “Um Rosto Desconhecido na Esquina” – Victor José: Nossa música mais longa, com mais de oito minutos. Lembro que quando começamos a compor ela a ideia era que fosse na viola, mas assim que fui pra guitarra ela se estruturou melhor. Eu amo o contraste que tem nessa música, aqueles breques no meio do riff e o fato de ter duas partes tão distintas. A primeira parte, pra mim, carrega um pouco daquela fórmula mágica do Kurt, Pixies e afins, que brinca com a dinâmica da música sujando e limpando as guitarras, tipo uma gangorra. Na segunda parte a coisa começa meio progressiva e vai dar em um noise de leve. O Zé Antônio Algodoal (Pin Ups) participou dessa e colocou várias e várias camadas de guitarra com EBow, que é aquele negócio que faz a guitarra soar com um sustain infinito, tipo o que você ouve na “Heroes” do Bowie, por exemplo. Não sei dizer qual é a minha favorita ou qual a melhor gravação desse álbum, mas posso dizer que esse take é incrível. Nós quatro tocando ao vivo, no maior feeling.


09) “Tente Não Esquecer” – Victor José: A letra saiu muito rápido. Sempre sei o que eu quis dizer em todas as letras que fiz, e mesmo que subjetivamente, elas têm um significado que consigo pegar fácil, mas essa ainda é um mistério. Não sei exatamente se ela é um monólogo, um sermão ou diálogo. Lembro que na época eu estava lendo “Amavisse”, da Hilda Hilst, o que me inspirou muito, e por muito pouco a música não se chama “Porisso”, que é um neologismo que ela costumava usar. Desde a primeira vez que ouvi a demo que fizemos eu pensei no Bemti cantando e a Elisa concordou logo de cara. Foi a própria música quem pediu, e isso é muito valioso quando acontece. Ela ficou com essa pegada totalmente canção, bem do jeito das nossas primeiras gravações, aquele ar de trovador. Mas tem também aquele monte de guitarras que a Elisa colocou e que me faz lembrar um ar de sonho. Tem uma coisa sutil e que fui notar só quando a gente gravou, que é o fato de serem duas pessoas cantando e tocando viola caipira num contexto indie, o que é raro de acontecer. Acho que se alguém se deparar primeiro com essa faixa, talvez não entenda do que se trata todo o resto do disco, mas se ouvir na ordem e encerrar com ela, vai entender perfeitamente por que ela está ali. Pra gente ela soa como um epílogo do álbum. Gosto muito dessa, tanto que lançamos antes como single e com um clipe.

– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br. A foto que abre o texto é de John Di Lallo. 

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