texto de Davi Caro
Quando Robert Smith falou com a revista Rolling Stone, em Março de 2019, a respeito do novo disco do The Cure – o primeiro desde “4:13 Dream”, de 2008 – muitos não conseguiram esconder o ceticismo com as novas promessas. Não que o membro fundador e líder de um dos mais icônicos grupos da história não fosse merecedor da fé de seus inúmeros seguidores, porém, os comentários a respeito de um trabalho inédito (“São canções de 10 minutos, gravamos 19”) ressoavam como improbabilidades no consciente daqueles que já haviam sido pegos de surpresa com o anúncio do depois abandonado projeto “4:14 Scream”, que deveria ter sido lançado em 2014. E mesmo assim, as sempre memoráveis e apoteóticas performances ao vivo da banda tornavam difícil deixar de lado o sonho de um novo disco dos britânicos. Tudo isso pode ajudar a explicar o verdadeiro júbilo que é, finalmente, poder apertar o play em “Songs Of A Lost World” (2024), o mais novo álbum de Robert Smith e seus asseclas.
Claro que as tais promessas propagadas por Smith não eram de todo infundadas: já na mais recente (e antológica) apresentação do The Cure no Brasil no Primavera Sound de 2023, os fãs puderam testemunhar o poder de fogo de três das novas composições – “Alone”, “And Nothing Is Forever” e “Endsong” – que figuram no tracklist do mais novo trabalho. E se as canções já soavam impactantes ao vivo, as atmosferas conjuradas só encontram ainda mais potência em estúdio, principalmente em meio a um repertório que não só faz jus aos mais distintos e excepcionais momentos da longa discografia da banda, como também ressalta a importância do The Cure e do verdadeiro milagre que é ver um grupo desta estatura lançando um disco tão belo e magnífico. Sim, meus amigos: a espera e a dura batalha contra o ceticismo valeram a pena. Em “Songs Of A Lost World”, Smith (vocais, guitarras, teclados e baixo), Simon Gallup (baixo), Reeves Gabrels (guitarras), Roger O’Donnell (teclados) e Jason Cooper (bateria) fizeram um trabalho que tem tudo para ser mais um obra-prima em uma carreira recheada delas.
É importante fazer referência àquilo que todos percebem ao escutar a primeira faixa (a já citada “Alone”) assim como o segundo single, a potente “A Fragile Thing”: a voz de Robert é um milagre por si só. Um fã incauto que se deparasse com o novo material poderia pensar estar escutando sobras de estúdio de “Disintegration” (1989), ainda que os méritos do disco passem longe de estarem presos às similaridades com êxitos de outros tempos. Dito isso, a beleza da abertura, que em vários momentos lembra a magnitude de “Plainsong”, é notável. Mesmo que o tom baixe com a delicadíssima “And Nothing is Forever” e seus pianos, as maravilhosas cordas de O’Donnell fazem com que a cadenciada faixa ressoe fundo graças às reflexivas letras (“[…] Na serenidade de uma lágrima / Enquanto você me abraça uma última vez / No definhar da vida […]”). Estas, aliás, mostram uma nova perspectiva da mortalidade, ainda que partindo de um compositor que praticamente criou novas formas de se referir à finitude da vida dentro da história da música pop. Com um olhar mais amadurecido e resoluto, esta reflexividade segue em “Warsong”, mesmo que de uma maneira mais raivosa – incluindo incríveis arranjos de seis cordas e vocais de Smith que fazem jus ao título da canção graças a versos como “Nós mentimos um para o outro para esconder a verdade / E odiamos a nós mesmos por tudo o que fazemos”.
O momento de Simon Gallup brilhar chega, enfim, em “Drone: Nodrone”, uma das mais aceleradas do novo repertório, que traz a memória “Fascination Street” graças ao brilhante encaixe do baixista com os ritmos marcados de Jason Cooper. Em mais um show da versatilidade pela qual a banda acabou ficando conhecida, a barulhenta faixa é seguida daquela que talvez seja a mais forte candidata ao prêmio de mais bela canção no disco: “I Can Never Say Goodbye” se ampara nos hipnóticos arranjos de teclados para construir uma das mais apoteóticas músicas gravadas pelo The Cure no século XXI. O arranjo, aliás, é feito para funcionar muito bem ao vivo, juntamente com a faixa que se segue: os ritmos truncados de “All I Ever Am” podem demorar um pouco para cativar os ouvintes de primeira viagem, mas têm tudo para conquistar seu lugar nos novos setlists do grupo – a julgar pela execução na íntegra do álbum que a banda realizou para a BBC (vídeo acima) para marcar o lançamento do disco (contando com a presença do também guitarrista e membro de longa data Perry Bamonte), trata-se de um conjunto de composições que devem perdurar em apresentações por muitos outros anos. O mesmo vale para os incríveis mais de 10 minutos de “Endsong”, com ritmos que relembram as passagens mais percussivas de “Pornography” (1982) e linhas de guitarra intercaladas entre Smith e Gabrels que brilham como poucos seriam capazes de esperar ouvir, em pleno 2024, do The Cure.
O mesmo, no entanto, pode ser dito de “Songs Of A Lost World”, e até mesmo da estatura do The Cure, nos dias atuais. Mais do que simplesmente viver do passado ou se ocupar de recriar os gloriosos momentos vividos entre os anos 80 e 90 – sem falar, claro, de “Bloodflowers” (2000), para muitos o último grande disco lançado pela banda (até agora) – Robert Smith soa mais seguro de si do que jamais esteve, transparecendo mesmo nos momentos mais desesperançosos a maturidade e o senso de desafio inerente aos melhores momentos de sua farta discografia. Além de possuir uma formação desenvolta e para lá de competente, o The Cure consegue se provar relevante de uma maneira impensável em meio a seus contemporâneos, mantendo os olhos no futuro ainda que tomando conhecimento do próprio passado com respeito, e sem nunca soar auto-referente ou complacente para com seu legado. “Songs Of A Lost World” é, em seus pouco menos de 50 minutos de duração, um melancólico, bonito, surpreendente e desafiador tratado de relevância cultural perpetrado por uma das mais influentes agremiações musicais da história, um acerto de contas com o presente de um dos mais talentosos e singulares compositores de nosso tempo. Mesmo os dezesseis anos de espera que o antecederam se tornam minutos frente à imensurável beleza encontrada aqui.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.