texto de Vinicius Lemos
fotos de Leandro Godói (Audio)
A comemoração dos 30 anos do álbum “Da Lama ao Caos” (1994) pela Nação Zumbi é algo muito importante, mas, ao mesmo tempo, inusitada. Chico Science & Nação Zumbi foram responsáveis pela criação de um movimento, o manguebeat (junto a outros nomes, como a Mundo Livre S/A), pela inserção de Recife como uma cidade altamente criativa no imaginário nacional e pela possibilidade de exportar Pernambuco para o mundo, uma conexão de mangue + frevo + rock + vocal de repente, tudo na melhor qualidade do que seria a mais autêntica world music.
Não à toa, Chico Science & Nação Zumbi fizeram duas tours mundiais, passando por diversos países e com convites para uma terceira que não se concretizou devido ao acidente que vitimou Chico em 1997. Chico Science & Nação Zumbi era o novo, uma combinação de mescla de tambores e uma guitarra extremamente pesada e contemporânea, era tudo junto e misturado, uma novidade para o Brasil e para o mundo. A estranheza era o início, a aventura o durante e a música cativante o resultado.
Quando Chico morre, naturalmente, a Nação Zumbi tinha que se reencontrar. Não era fácil, seja no aspecto pessoal, seja no aspecto para onde ir. E a Nação Zumbi atravessou o luto e construiu um trabalho imenso posterior, com seis álbuns autorias e muitas músicas de sucesso, ainda que sem ter um grande hit o radiofônico (algo que nem na época com Chico eles conseguiram), contudo com uma bolha imensa de fãs que sabem músicas de todas as épocas.
A Nação Zumbi se reconstruiu de modo diferente da época de Chico Science, com mais peso, mais guitarra, mas também com uma pegada mais convencional, mais pop, menos world music, menos misturas, mais previsível, ainda que ótima, como nos dois primeiros sucessos pós-Chico: “Quando a Maré Encher” e “Meu Maracatu Pesa uma Tonelada”.
Os tambores ainda eram a base, mas a cadência diferente, a guitarra ali de maneira contundente e o vocal de Jorge Du Peixe ganhando forma e sendo a cara de uma nova Nação Zumbi. Menos versátil, mais parado, mais previsível, só que com uma sintonia com a banda, com o novo som.
Temos então o trajeto de uma banda que defende o legado junto com Chico Science dos dois primeiros álbuns – históricos – e de world music, mas trilhou um caminho posterior diferente, próprio, ainda diversificado, mas cada vez mais convencional, ótimo e pop (como em último álbum, “Nação Zumbi”, de 2014, com “Um Sonho”, “Cicatriz”, “Foi de Amor” exibindo uma guinada já visível em “Fome de Tudo”, de 2007).
Só que o tempo passa, o mundo gira e parte do entretenimento é feito de datas: 30 anos do “Da Lama ao Caos”. É um senhor motivo para uma volta da Nação Zumbi aos palcos depois de um hiato e com um show que revisita integralmente o primeiro disco, o disco que levou o manguebeat pro mundo, o álbum de estreia, a cara de Chico Science e da aquela época do início dos anos 1990.
De Recife pro mundo e do mundo pra São Paulo. Show na Audio lotada, com abertura da Devotos. Cannibal tem um carisma imenso, começa falando ao microfone quem são, os motivos de estarem ali, de como arte transforma vidas, de como Chico Science transformou a Devotos. Entregaram um show de abertura que se conectou com o manguebeat mostrando que o movimento foi maior do que Chico Science & Nação Zumbi e a world music, englobando tudo que pudesse ser arte no Recife, como o punk rock hard core deles. Destaque para a “Eu Tenho Pressa” e “Punk Rock, Hardcore Alto José Do Pinho”.
Uma pausa para o público ganhar fôlego e Nação Zumbi em cena. O jogo já estava ganho. Não era preciso fazer muito para um público que queria ouvir qualquer versão da Nação Zumbi, ainda mais num show de um álbum histórico. A cortina abre e “Monólogo ao Pé do Ouvido” já demonstra uma catarse, todo mundo cantando e declamando, de cor e salteado e emendando com “Bandistismo Por uma Questão de Classe”, seguida da excelente “Rio, Pontes & Overdrives” e “A Cidade”.
Um jogo que já começa com um gol, catártico, emocionante e parecendo que o álbum foi feito numa sequência pensando nesse show e não o inverso. A primeira pausa para conversar com o público que cantou todas e vem “A Praiera”, gritada por geral. Obviamente que Du Peixe traz em sua voz uma versalidade diferente de Chico, uma outra cadência que exibe um peso maior, mas o público nem se importa, o que importa é cantar todas as músicas.
“Samba Makossa” é recebida ainda com entusiasmo, só que num momento da partida em que tudo se acalma, parecendo um time que começa a administrar o resultado. Só que a próxima é “Da Lama ao Caos” e, realmente, o caos chega. Tudo gritado ao extremo pelos presentes.
“Maracatu de Tiro Certeiro” começa empolgante e pesada, bem recebida, só que com novamente um respiro para o público. Na próxima, “Salustiano Song” a participação de Maciel Salú, rabequeiro, cantor, compositor, mestre de maracatu-rural e militante das tradições populares, com toda a representação do mangue e maracatu, com uma intervenção artística e com muito dub. Momento viagem total e com o público encantado.
Como o show é o álbum tocado na íntegra e em ordem, as próximas são as menos conhecidas e seguem um padrão do público atento e o show empolgante, mas sem a catarse em “Antene-se “Risoflora” e “Lixo do Mangue” até chegar “Computadores Fazem Arte”, com nova empolgação e acompanhada com todo mundo cantando.
“Côco Dub” encerra o álbum e o show, Du Peixe emenda: “Poderíamos sair, esperar o bis e voltar, mas vamos já emendar o bis”. Ou seja, a empolgação era no público e no palco. Cinco músicas para um bis, cinco músicas para resumir a carreira pós álbum de estreia. Cada presente teria cinco músicas diferentes? Talvez, só que não cabia nenhuma mais pop, era uma sequência para cantar, pular e empolgar.
A sequência foi matadora e mostrou que a carreira da Nação Zumbi, mesmo pós Chico, merece muita atenção. “Foi De Amo”r iniciou num ritmo que o bis não parou mais, todo mundo cantando todas as músicas, com a sequência de “Manguetown”, “Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada”, “Quando a Maré Encher” e, claro, por último, “Maracatu Atômico”.
Essa versão atual da Nação Zumbi traz os fundadores Jorge Du Peixe (vocal), Dengue (baixo) e Toca Ogan (percussão) ao lado de Marcos Matias e Da Lua (tambores), que entraram na banda na virada dos anos 1990 para os 2000, Tom Rocha (que assumiu a bateria em 2014) e Neilton Carvalho, guitarrista da Devotos que desde 2023 substitui Lucio Maia na guitarra. Uma Nação que mostra muito fôlego num show comemorativo e espaço para mostrar mais músicas do restante da carreira. Cabia mais músicas? Cabia, mas ninguém saiu insatisfeito da Audio.
Um grande show para rodar o Brasil comemorando um dos álbuns mais importantes da música brasileira.
– Vinicius Lemos e advogado, mas já escreveu sobre música para o Diário da Amazônia e é o criador e responsável pelo Festival Casarão, em Porto Velho
Texto muito interessante.