textos por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Juliana Linhares no Itaú Cultural (23 de agosto)
Dos grandes discos brasileiros da primeira metade desta década, o conceitual “Nordeste Ficção” (2021) foi lançado no comecinho da pandemia, e ainda que se sustente com brilhantismo em estúdio refletindo com inteligência, suingue e chamego sobre o que é ser nordestino nesses dias confusos (inspirado no livro “A invenção do Nordeste e outras artes”, de Durval Muniz de Albuquerque Jr.), é no palco que ele ganha razão de existir, pois é impossível ficar alheio a força, graça e interpretação de Juliana Linhares. Em certo momento da noite, ela se diz tímida (o público, gracejando, discorda) quando não está diante da plateia, mas em cena ela se agiganta como se o palco fosse sua casa. De figurino exuberante (que remete a uma Maria Alcina e Carmen Miranda futuristas), ela abre o show com a poderosa “Bombinha”, engata o xote “Balanceiro” e, “já que o Nordeste é ficção” (ela pontua), “vamos todos cantar Belchior” numa versão forte de “Comentário a Respeito de John”. O show segue, charmoso, com parcerias suas com Chico Cesar (“Embrulho”, acrescida do trio de libras no palco) e Zeca Baleiro “(Meu Amor Afinal de Contas”). Em certo momento, festeja dizendo que nem em seus melhores sonhos imaginava que mais de três anos depois ainda estaria fazendo o show “Nordeste Ficção”. E completa: “Fico muito feliz de, na contracorrente desse mercado maluquíssimo, a gente poder construir uma trajetória com um disco”. Há espaço para música inédita (a linda “Emaranhada”, presente de Juliano Holanda), as nordestiníssimas (presentes no álbum) “Bolero de Isabel” (Jessier Quirino) e “Tareco e Mariola” (Flávio José) mais “Aburguesar” (outra inédita que ela ganhou de presente, essa de Tom Zé). Para esta noite (acompanhada de Nathanne Rodrigues no baixo, Estevan Barbosa na bateria, Renata Neves no violino e Fred Ferreira na guitarra e programações), novidades como a irresistível “É Mais Embaixo” (Clemilda) além de “Pessoa Nefasta” (Gil) e “O Rabo do Jumento” (Elino Julião) foram cantadas em coro pelo público, coroando uma apresentação irretocável de uma artista que merece, cada vez mais, atenção e audição. Por favor, acompanhe ela!
Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz no Itaú Cultural (24 de agosto)
No dia 9 de julho partiu Luiz Chagas, pai de Tulipa e Gustavo Ruiz. Desde então, como não poderia deixar de ser, Tulipa vem se desdobrando em posts ensolarados de amor e lembranças do Belo, como ele é conhecido por tantos, em seu Instagram. Num deles, escreveu: “Não vejo a hora de tocar com nosso bando, porque a música é o lugar das coisas vivas e todos as notas terão você junto. (…) Teus riffs seguirão soando here, there and everywhere”. Após três apresentações em grandes festivais (em São Luiz, Belo Horizonte e Brasília), Tulipa e Gustavo tinham pela frente o aconchegante teatro do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, com o show Gogó e Guitarra, na cidade que ela (nascida em Santos e crescida em São Lourenço) e o pai (nascido em Goiânia) tomaram para si. Despidos de distrações, olho no olho, os irmãos partiram com duas faixas de “Dancê” (“Reclame” e “Proporcional”) e duas de “Tudo Tanto” (“É” e a paulistaníssima “Dois Cafés”) combinando a voz extraordinária dela com a levada macia dele nas seis cordas. Na sequência, “Banho”, que Tulipa deu de presente para Elza Soares gravar, e a única canção de fora da família presente no set, “Da Maior Importância”, de Caetano. Ela, então, diz que “tinha várias coisas pra falar”, mas preferia cantar. “A gente vai tocar uma música que é do meu pai e que, desde o primeiro momento, a gente soube que ela iria fazer parte do nosso repertório pra sempre, assim como ele”. Surge então “Ás Vezes”, arrebatadora. Em outro momento emocional, Tulipa conta como ela, o irmão e o pai fizeram “Algo Maior”, que surge em versão intensa. “Víbora”, como sempre, impressiona, mas é com “Oldboy” que as lágrimas surgem, delicadas, no palco e na plateia. Depois de “Estardalhaço” (outra canção marcante do set), ela brinca: “Gosto muito de fazer show só eu e o Gustavo porque é o único esporte radical que eu prático”. Para o final, três músicas do debute – a deliciosa faixa título “Efêmera”, a ótima “Sushi” e a balada hit “Só Sei Dançar com Você” – encerraram uma noite que soou como um afetuoso abraço musical, o melhor que Luiz Chagas poderia ter ensinado a seus filhos. Obrigado, Belo, por eles. Obrigado.
Joyce Moreno no Sesc Vila Mariana (25 de agosto)
Em 1975, Joyce estava na Itália em turnê com Vinicius e Toquinho quando o produtor Sergio Bardotti fez a proposta para que ela gravasse um novo disco em formato voz e violão. Ela selecionou então um grupo de canções, muitas delas de autores censurados pela Ditadura Militar brasileira. Nascia “Passarinho Urbano”, lançado na Itália em 1976, e timidamente no Brasil em 1977. Com o tempo, o álbum passou a ser cultuado até ser relançado em CD em 2003 e em vinil em luxuosa edição pela Três Selos em 2022. Em duas noites lotadas no Sesc Vila Mariana, Joyce retornou de maneira intensa e irrepreensível ao álbum, sozinha com seu violão e com a iluminação bela e impressionante de Pedro Altman, acrescentando canções que ampliam o leque contestatório e poético do disco. A dobradinha “Joia” e “De Frente Pro Crime” deu início a um mergulho profundo em um Brasil que não conhece o Brasil. A densa “Pesadelo” surgiu arrepiante trazendo consigo as primeiras novidades do set, “Bodas”, de Milton e Ruy Guerra, e “Amor À Natureza”, de Paulinho da Viola. Ela retorna ao álbum com as brilhantes “Chora, Doutor”, “14 anos” e “A História do Samba” e engata as clássicas “Pelo Telefone” e “Pede Passagem”. O teatro é todo silêncio em “Marcha De Quarta Feira De Cinzas” e “Opinião”, e Joyce alcance o climax com as emocionantes “Minha História” (João do Vale) e “Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa), que, escrita em 1951, é a música que mais representa São Paulo em 2024. O filme denso desenhado pelo repertório é suavizado com “Mistério”, uma música inédita do compositor Carlinhos Cor das Águas que Joyce aprendeu nos anos 1980, e nunca esqueceu. O show segue com o samba “Mulheres do Brasil” e Joyce retorna ao álbum com “Mudando de Conversa”, “Fado Tropical”, “O Trem Atrasou”, “Radiopatrulha” e a antológica “Acorda, Amor”, de Julinho da Adelaide. Talvez a canção que melhor explique esse show seja “Querelas do Brasil”, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, que lá pelas tantas pede “S.O.S. ao Brasil”. O pano sobe com “O Cantador”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, abraçando a faixa título “Passarinho Urbano”. Joyce sai de cena e, quando retorna, diz que não falou nada durante o(s 50 minutos de) show porque “as canções falam tudo”. Alguém da plateia pontua a atualidade das letras, e ela concorda, dizendo que “infelizmente, o Brasil não mudou tanto”. Nos bis, em tempos de IA, oferece ao público “Queremos Saber”, de Gil, e encerra a noite com uma das canções mais poderosas do cancioneiro nacional, “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho, cantada à capella. Em seu Instagram, contou depois: “Foi forte pra mim, uma entrega muito grande, quase como se eu estivesse ali, sozinha, fazendo uma espécie de ópera popular. (…) Saindo esgotada do palco, mas com a sensação de ter dado tudo de mim pra recontar essa história”. Não só um show inesquecível, mas um resumo perfeito da dor e delícia que é amar o Brasil.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.