Cinema: “Tipos de Gentileza” é “odioso, cruel, nojento, desumano, sórdido” e inteligentemente doentio

texto de Marcelo Costa

No século 5 a.C, um historiador e general grego de nome Tucídides percebeu, entre tantas coisas (incluindo a importância da vacinação, algo que alguns idiotas no século 21 ainda ignoram), como o local de nascimento e convívio social moldava um povo (ao comparar os moradores de Atenas e de Esparta no clássico livro “História da Guerra do Peloponeso”, travada entre a Liga do Peloponeso espartana e a Liga de Delos ateniense entre (431 e 404 a.C.). Suas observações seguem válidas 26 séculos depois, principalmente se tomarmos como exemplo o cineasta (e compatriota) Yorgos Lanthimos e seu novo e deliciosamente provocante filme, “Tipos de Gentileza” (“Kinds of Kindness” no original), talvez o mais grego de seus filmes – ainda que filmado em New Orleans e sem nenhuma citação (aparente) à tragédias gregas.

Lanthimos você conhece, certo? Seus dois filmes imediatamente anteriores foram indicados a 21 Oscars (10 para “A Favorita”, de 2018; 11 para “Pobres Criaturas”, de 2023), e lendo assim até parece que estamos diante de um cineasta de fácil assimilação, acessível e pop, mas basta ler alguns comentários no Google sobre a aventura que é entrar na sala de cinema e se deparar com “Tipos de Gentileza” para colocarmos as coisas em uma balança de perspectiva: “Achei o filme odioso, cruel, nojento, desumano e sórdido”, diz uma espectadora; “Um filme que talvez seja bom para perversos, tarados ou sádicos”, comenta outro; “Repugnante e bizarro”, completa uma terceira. Lanthimos acertou novamente.

Quando chamou a atenção do mundo cinematográfico em 2009 com o bizarro “Dente Canino” (premiado no Festival de Cannes), Lanthimos logo depois entregou uma peça apaixonadamente desapaixonada, o brilhante e surreal “O Lagosta” (2015), vencedor de três prêmios em Cannes e indicado ao Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original. Quem esperava que o cineasta grego fosse amaciar seu cinema para conquistar Hollywood nunca poderia prever “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, uma tragédia grega sem concessões, o foda-se que ele enviou como recado para aqueles que poderiam pensar em domá-lo. Dessa forma, “A Favorita”, e “Pobres Criaturas”, ainda que mais comedidos na estranheza, pero no mucho, são filmes de autor com assinatura, e “Tipos de Gentileza” atualiza o foda-se soando quase como um “O Sacrifício do Cervo Sagrado, Parte 2”.

Em sua nova epopeia depravada e satírica, Lanthimos conta três histórias levemente conectadas e encenadas pelos mesmos atores, mas com personagens diferentes em posições de destaque alteradas em cada passagem. Apenas um deles participa das três histórias: R.M.F., interpretado por Yorgos Stefanakos, e mesmo ele é coadjuvante em certo momento. Na primeira história, “A morte de R.M.F.”, o espectador acompanha a rotina de um homem (Jesse Plemons) que passou os últimos 10 anos vivendo de acordo com as regras impostas por um magnata (Willem Dafoe), da hora em que ele deveria fazer sexo com a esposa (que também foi escolhida pelo magnata) ao que ele deve beber, comer e vestir. O relacionamento (real) dos dois é abalado quando o magnata faz um pedido que nosso amigo teme em cumprir, e a história (de quase uma hora de duração) flagra o resultado de sua decisão tanto quanto marca seu primeiro encontro com um dos personagens de Emma Stone no tríptico.

A segunda parte, “R.M.F. está voando”, é a que mais remete a “O Sacrifício do Cervo Sagrado”: nela observamos um policial (Plemons) vivendo um momento difícil após o barco em que estava sua esposa (Emma) naufragar no oceano. Um piloto de helicóptero (R.M.F.) a encontra, mas quando ela retorna pra casa, o policial acredita que, embora pareça muito com sua esposa, na verdade é uma impostura, e ele levará essa sua certeza até os extremos para ter seu verdadeiro amor de volta. Já na parte 3, “R.M.F. come um sanduíche” (vale a pena esperar pela cena extra em meio aos créditos), temos uma espécie de seita que está em busca da pessoa escolhida, uma irmã gêmea (cuja gêmea está morta) que tem o dom de curar ferimentos e trazer pessoas mortas de volta à vida. É a trama mais “leve”, nonsense e cômica do filme, ainda que perturbadora.

Se numa esfera visual é difícil não conectar “Tipos de Gentileza” com “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, no modo teórico a conexão direta é com “Dente Canino”, pois ambos os longas tratam de jogos de poder e da ausência de livre arbítrio. Porém, se em “Dente Canino” temos um pai autoritário buscando “proteger” os filhos do mundo “lá fora” em sua forma absurda de amor, em “Tipos de Gentileza” o autoritarismo também surge canalizado no amor como algo absolutamente doentio, mas o núcleo familiar do primeiro sai de cena para dar lugar (notadamente nos episódios 1 e 3) a uma certa forma de religião, de seitas, pelas quais as pessoas podem arriscar suas vidas por outras mais poderosas apenas para serem aceitas. É um tema interessante, ainda que Lanthimos não facilite testando não só a paciência, mas também a resistência e principalmente o estômago do público (muitos não tão acostumados a obra pregressa do diretor ao lado do co-roteirista Efthimis Filippou, colaboração datada a exatamente de “Dente Canino” a… “O Sacrifício do Cervo Sagrado”).

Dito tudo isso, já deu para perceber que “Tipos de Gentileza” (com classificação 18 anos como “Pobres Criaturas”) não é um filme para todo o tipo de público, certo? O que sugere até uma pegadinha do diretor: “Vocês vieram aqui pelas 22 indicações ao Oscar de filmes meus? Então olha o quanto eu posso ser agressivo, perturbador e doentio”. Ainda assim, mesmo não tendo uma citação direta a tragédias gregas (“O Sacrifício do Cervo Sagrado” era inspirado em “Ifigênia”, escrita há 2400 anos pelo poeta Eurípedes), “Tipos de Gentileza” é essencialmente grego na maneira como destrói genialmente mitos românticos como o da pessoa que precisa morrer para provar seu amor verdadeiro; da outra que precisa arrancar suas tripas seus traumas de dentro de si mesma para renascer; e daquela que consegue salvar a todos, menos a si mesma. Inserir tudo isso em meio a canibalismo, sexo grupal e uma dança desengonçada de Emma Stone é apenas para Yorgos, o grego. Palmas.

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– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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