texto de Renan Guerra
“Verão de Lenço Vermelho”, de Elena Malíssova e Katerina Silvánova, é narrado em dois tempos: em 2006, o jovem adulto Iura relembra um verão 20 anos antes passado no Andorinha, acampamento de férias para os pequenos jovens socialistas da antiga URSS. Naquele ano de 1986, Iura passa por diferentes mudanças em sua vida e talvez a mais simbólica de todas se dá pela forte amizade que desenvolve com Volódia, um dos monitores do acampamento. Com uma pecha de ter atitudes intempestivas e bagunceiras, Iura acaba sendo modificado por sua relação com o certinho Volódia, que de uma amizade e uma proximidade acaba se transformando rapidamente em um amor que marca e modifica o futuro dos dois personagens – futuro esse que é marcado também por mudanças globais, como o fim da URSS, a queda do muro de Berlim e a pandemia do HIV/AIDS.
O romance da russa Elena Malíssova e da ucraniana Katerina Silvánova foi publicado por uma editora russa independente e logo se transformou em um dos grandes sucessos editoriais do início do ano de 2022. De todo modo, esse ano seria um marco de reviravoltas no mercado editorial do país. “Verão de Lenço Vermelho” se tornou um fenômeno – especialmente impulsionado por redes sociais como o TikTok -, conquistando jovens leitores e se tornando objeto de culto geral, tanto que ainda no mesmo ano as duas autoras aceleraram o processo de lançamento do livro que dá sequência à narrativa de Iura e Volódia. Obviamente, esse sucesso com os jovens também veio acompanhado de uma onda de ódio dos ativistas e políticos conservadores e anti-LGBTQIA+, que lançaram uma forte campanha para banir o livro, com críticas de que a obra “desfigura a ideia do que era a União Soviética”, “promove valores ocidentais” e contém “propaganda LGBT”.
O lançamento da sequência da história em outubro daquele ano apenas causou ainda mais fúria na extrema direita russa. Com ameaças e uma pressão crescente, as autoras deixaram o país e hoje Elena vive na Alemanha. Nesse meio tempo, o Parlamento Russo se apressou para elaborar uma legislação mais rigorosa, visando criminalizar qualquer demonstração de homossexualidade em mídias, incluindo livros e filmes, inclusive entre o público adulto. Em tempo recorde, já em 5 de dezembro de 2022, foi aprovada uma lei para banir toda a literatura queer e qualquer menção a temas LGBTQIAP+ nas obras veiculadas no país. Esta legislação é um marco bastante simbólico dos ataques e perseguições que a comunidade LGBTQIA+ sofre na Rússia e os retrocessos que têm acontecido no país. Nesse cenário, “Verão de Lenço Vermelho” se transformou numa obra de resistência e de luta pela liberdade de existências plurais.
E quando se fala assim de um livro de resistência quanto aos avanços dos conservadores, você pode até pensar que estamos falando de um livro extremamente transgressor e chocante, não é? Mas não é nada disso, o livro de Elena Malíssova e Katerina Silvánova, que chega agora ao Brasil em lançamento da editora Seguinte – o braço jovem da Companhia das Letras -, é basicamente um romance de amadurecimento, uma narrativa delicada e terna sobre a descoberta do primeiro amor e sobre todas as agruras do amadurecimento, bem dentro dos ditames do gênero que hoje em dia costuma-se chamar “young adult”. A narrativa se constroi a partir da visão de Iura, em que acompanhamos tudo tanto pelo seu olhar de homem adulto quanto pelo calor de suas memórias juvenis de adolescente a descobrir as sensações e desejos de seu próprio corpo.
E nisso tudo, o que se destaca em “Verão de Lenço Vermelho” é a destreza das duas autoras em criar um livro envolvente e extremamente sincero na hora de descrever todos os detalhes que envolvem um primeiro amor, do frio na barriga de cada toque, no desejo de cada olhar, nos ciúmes banais, nas saudades intermináveis de cada pequeno afastamento e em todas aquelas questões que parecem as mais intensas do mundo quando se tem 16 anos. Malíssova e Silvanóva nos colocam dentro daquele acampamento e somos mergulhados durante muitas e muitas páginas num universo completamente distinto dos nossos, quando nos tornamos íntimos dessas crianças e adolescentes soviéticas. É um olhar muito interessante o de se pensar em refletir sobre um império em declínio por uma perspectiva de personagens que parecem alheios aquele mundo político, mas que são diretamente impactados por isso – a perestroika em curso e esses personagens apenas tentando achar sentido nas suas paixões e existências em um mundo que é homofóbico demais.
A obra de Malíssova e Silvanóva é uma jornada romântica e delicada, que nos envolve nesse cenário quase idílico de amor juvenil, porém vai se aprofundando em complexidades desses personagens, nos levando em uma jornada que é bem mais delicada e dolorosa, ampliando o leque de possibilidades desses personagens. Pelas páginas de “Verão de Lenço Vermelho” o leitor também vai se apaixonando por aquele universo e por aquelas histórias e memórias, tanto que já recomendamos a leitura do livro enquanto aguardamos o lançamento brasileiro da sequência dessa história de amor.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.