texto de Renan Guerra
A literatura de Édouard Louis é inteiramente construída em torno de suas memórias e suas vivências. Com apenas 31 anos, é meio natural que seus livros iniciais voltassem em diferentes momentos para sua infância, como em sua estreia “O Fim de Eddy” (2014), e para seus conflitos familiares, como na excelente dupla “Quem matou meu pai” e “Lutas e metamorfoses de uma mulher”, espécie de livros-irmãos, lançados no Brasil no ano passado pela Todavia. Porém havia uma falta em suas narrativas: como o pobre menino do norte da França se torna o escritor bem-quisto nas mais altas rodas parisienses? É sobre esse universo que se debruça o livro “Mudar: método”, lançado originalmente em 2021 e que chega agora ao Brasil com tradução de Marília Scalzo.
Nesse novo livro acompanhamos o amadurecimento de Louis e sua transição entre um garoto de interior que não lia livros até a sua transformação em um dos nomes mais interessantes da nova literatura francesa. Durante o processo acompanhamos a transição da vida de estudante de Louis no interior até sua tentativa de mudar insistentemente para Paris, passando por seus diferentes empregos, indo de trabalhos em livrarias e teatros até a prostituição. Nesse sentido, “Mudar: método” talvez seja o livro mais íntimo de Louis, pois diferentemente de seus outros títulos, aqui não são os familiares e amigos que são expostos, mas sim as próprias incongruências, erros e vulnerabilidades do autor. E isso é algo bastante corajoso, pois em nenhum momento Louis tenta limpar sua própria barra, pelo contrário, ele é extremamente sincero e detalhista, o que pode facilmente fazer com que o leitor em muitos momentos discorde ou tenda a repelir as ações narradas por ele.
“Mudar: método” é extremamente interessante e rico por sua sinceridade. Em um universo de aparências, filtros e textos autoindulgentes nas redes sociais, Édouard Louis nos abre seu diário de confissões, deixando claro suas atitudes mais mesquinhas, mostrando como ele construiu sua carreira baseado em interesses, em ações nem sempre louváveis e muitas vezes magoando muitas das pessoas que estavam em seu entorno. Tudo isso, claro, conquista o leitor por causa da maestria com que o autor sabe amarrar cada uma dessas histórias. Se Louis comete atos questionáveis, o ponto principal do livro é que ele sabe contar isso para o leitor com uma força e intensidade arrebatadora, nos deixando ansiosos pela próxima página e pelo próximo passo deste enfant terrible da literatura francesa.
Além da narrativa de seus passos no caminho para a fama – incluindo aí uma amizade cheia de interesses com o filósofo Didier Eribon –, Louis faz de seu livro uma espécie de exorcismo de seus fantasmas, uma forma de acertar contas com seus erros e vacilos com amigos e familiares – em um certo tom de amadurecimento, algo que também pode ser notado nos posteriores “Quem matou meu pai” e “Lutas e metamorfoses de uma mulher”. E é nisso que “Mudar: método” mostra a humanidade de Louis, com todas as nuances possíveis. São nas falhas do autor que o leitor consegue criar vínculo e identificação, pois é como um contrato de confidencialidade: Louis escreve coisas vistas como moralmente erradas como quem nos conta um segredo e nós, leitores, ouvimos como quem diz que não contará aquilo para ninguém. E nesse jogo acabamos nos identificando com todos os percalços passados pelo autor, sempre com aquela sensação de identificação única de quem pensa “ok, não sou só eu que já pensei isso ou aquilo”.
A literatura de Édouard Louis é um emaranhado de auto-ficção em que não sabemos ao certo o que é real, o que é inventado, o que pode ter sido alterado pelas memórias do próprio escritor, que segue uma escola bastante francesa de nomes como Annie Ernaux e o próprio Didier Eribon, de quem Louis foi uma espécie de pupilo. “Mudar: método” talvez seja um dos pontos mais altos da literatura de Louis, que se coloca como personagem central de uma jornada de autodescobrimento – e tentativa de formatação de sua identidade –, tudo registrado com acidez e criatividade. E no final das contas, quando terminamos a leitura, não nos importa mais o que é real ou falso, o que nos importa é que também saímos modificados dessa jornada ao lado de Louis.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.