Entrevista: Corujones, nova banda de Brasília, fala sobre seu disco de estreia, “Projeções Astrais”

entrevista de Leonardo Vinhas

Mesmo tendo nascido como um projeto solo, Corujones é uma banda. Mais que isso, é a maneira que seus integrantes encontraram para reagir/resistir a um mundo pautado por individualismo, mercantilismo, ”merecismo” e outros ismos que castigam pessoas de todas as idades nesse desgraçado vigésimo-primeiro século.

Tarso Jones (voz e guitarra), Marcelo Moura (baixo), Hélio Miranda (bateria) e Carlos Beleza (guitarra solo) são amigos de longa data e já tocaram juntos em outras bandas do Distrito Federal. Na verdade, não faz muito tempo, os três primeiros estavam juntos na Rios Voadores, que era completada pela vocalista Gaivota Naves e pelo baixista Beto Ramos (Moura tocava guitarra então). Em certo sentido, “Projeções Astrais”, o primeiro álbum da banda, lançado pelo selo goiano Monstro Discos, é “herdeiro” da Rios Voadores. Ao mesmo tempo, o disco também mostra a banda se colocando em um caminho diferente…

Parece confuso? Bem, eles explicam esse imbróglio logo no começo desta entrevista. Mas o que fica claro desde o início é que a Corujones é uma banda de rock influenciada por luminares setentistas e noventistas do gênero, especialmente os brasileiros. Tanto é assim que a segunda faixa – e primeiro single – do disco é uma bela e poderosa versão para “Sentado no Arco-Íris”, composição de Leno com letra de Raul Seixas, presente em sua versão original em “Vida e Obra de Johnny McCartney”, disco gravado entre 1970 e 1971 que foi engavetado pela gravadora CBS na época, e que só seria lançado em CD em 1995 (e em vinil apenas em 2018).

As outras sete faixas do álbum são da autoria da banda, e algumas delas, como “Faroeste Digital” e “Visão Pineal”, mantém a pegada furiosa e direta. Outras, como “Quanto Tempo um Pensamento” e “Fantasma do Amanhã”, embarcam em áreas mais psicodélicas, com resultados igualmente bons. Já “Blues da Metade” e “Santa Maria” se escoram numa estética mais cômoda e menos personalista. Completa o set de canções “Todo Nó Tem Nome”, de riff strokeano e com um bem-vindo apelo dançante. O álbum estará em todas as plataformas a partir de 28 de junho.

Quando se lembra que rock também é música pop – ou seja, que pode ser cantarolável, acessível, ter ganchos melódicos – o Corujones faz bonito, e nas faixas destacadas acima, a banda mostra um material muito mais instigante e promissor do que o registrado em seus primeiros singles. E eles estão conscientes desse processo de transformação que sua música está passando. Tanto que o segundo álbum já está em gestação.

Mas vamos com calma, que ainda há muito a falar sobre “Projeções Astrais”. O Scream & Yell passou uns bons minutos conversando com Tarso Jones e Marcelo Moura por videoconferência, e os dois contaram sobre o processo de maturação da banda, a “promiscuidade” dos músicos de Brasília no que diz respeito aos muitos grupos de que participam, e sobre qual é o sentido de ter uma banda e tentar levá-la para os palcos hoje.

A Rios Voadores era uma banda que tinha dois eixos criativos, um no Tarso e outro na Gaivota. Além disso, você, Marcelo e Hélio integravam a banda. O Corujones é, então, um desdobramento “natural” do fim da Rios Voadores, ou é uma outra história, independente da banda anterior?
Tarso Jones: Bom, o disco “Rios Voadores na Era Sinistroyka” (2019) nasceu em decorrência do caos variado que existia ali. Eu também estava atribulado com a Joe [Silhueta] na época, gravando o disco “Trilhas do Sol”. Ia ser o primeiro álbum da Joe, depois de dois EPs. e um single. Mas o disco da Rios saiu quando a banda já não estava mais em pauta, digamos. O primeiro disco, homônimo, foi gravado em 2014, lá em Porto Alegre no estúdio do [Thomas] Dreher durante a Copa do Mundo. Foi uma experiência incrível, mas a gente só conseguiu lançar no final de 2016, por diversos fatores, e o acidente da Gaivota acontece logo depois, no início de 2017 (nota: a cantora sofreu um acidente gravíssimo em 15 de janeiro de 2017, no qual teve 80% dos ossos do crânio fraturados, entre outros ferimentos). Não muito depois (4 de maio), o Pedro [Souto] falece… (nota: falecido aos 23 anos, o músico era namorado de Gaivota e tocava nas bandas Almirante Shiva e Joe Silhueta).

Marcelo Moura: Foi uma porção de coisas acontecendo em pouco tempo, coisas que aconteceram nas “pessoalidades” de cada um e que acabaram se misturando no lançamento do primeiro disco da Rios. A gente estava pensando em rodar, viajar e não sei o quê, mas nos vimos impossibilitados de fazer isso. Depois disso tudo, a Gavs ficou bem mais intimista, mais para dentro, e buscou outras inspirações, porque ela e o Pedro estavam trabalhando em muitas composições juntos, então ela se sentiu orfã nessa parte de criação. Isso também foi um fator relevante. Eu acabei entrando para tocar o contrabaixo na Joe Silhueta. Então ficou eu, Tarso e Gaivota na Rios Voadores, e nós três também na Joe Silhueta. Isso gerou algumas situações de tensão na Rios. Mas é assim: tem várias coisas do “Era Sinistroyka” que a gente aproveita na Corujones, como a coisa dos arranjos serem mais espaçados. Isso foi bem mais trabalhado nesse segundo disco. No primeiro, era todo mundo tocando junto ali, todo mundo querendo atacar, dar o seu melhor. No segundo já foi diferente, aquela coisa de “nessa parte entra só o piano”, “a guitarra entra só aqui”. A gente foi começando a trabalhar melhor com as camadas. Ao mesmo tempo, a forma de trabalho da “Era Sinistroyka” foi meio que a mesma do “Abbey Road”, dos Beatles, no sentido que a gente sabia desde o princípio que ia ser o disco de despedida da banda. A gente ganhou o edital para projeto do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal e tínhamos que fazer o disco. Mas a gente não tinha os arranjos das músicas, a gente não estava tocando junto, justamente porque quando a gente ganhou o projeto, a Gaivota estava acidentada. Por isso, quando saiu o resultado do edital, foi aquela de “o que a gente faz agora?” A gente não estava bem ativo com a banda, teve que retomar a atividade, só que nesse momento de retomada a Gaivota meio que já estava um pouco fora, sabe? A banda já tinha acabado de certa forma, mas queria cumprir o projeto do FAC, porque a gente acreditava que era justo lançar aquelas composições e aquelas músicas que a gente tinha pra selecionado. Tínhamos que fazer o arranjo delas e prosseguir.

Tarso: A Gaivota já estava envolvida com a Joe Silhueta nessa época, e desde que a Joe começou a girar mais, a Rios naturalmente foi ficando mais de lado. Então esse edital veio como uma surpresa, uma coisa totalmente inesperada.

Bom, essas idas e vindas mostram também o quanto a cena de Brasília é bastante “promíscua”, no sentido de as bandas compartilharem integrantes. Isso, aliás, não é exclusividade da cena do DF. Mas como vocês priorizam a participação nos projetos? Além de todas essas que vocês falaram, o Marcelo ainda toca na YPU, que tem um trabalho autoral e que está agora com um projeto de versões do Gilberto Gil. A Corujones é a “banda principal” de vocês, ou nem é o caso de ter essa “hierarquia”?
Tarso: Quanto mais integrantes uma banda tem, mais dá problema. Não tem jeito, né? São mais opiniões, mais gente trabalhando ao mesmo tempo. No Corujones a gente deu uma simplificada. Na verdade, em 2021, pandemia, eu estava tocando muito teclado nessa época, mas aí comprei um violãozinho de nylon e foi dando uma vontade de tocar guitarra. Somou isso com o isolamento e eu tive o insight de inventar esse pseudônimo e fazer o “Ziggy Stardust tupiniquim”, tipo um “Vira-lata Caramelo Stardust”, saca? (risos) Depois falei com o Marcelo, porque a gente tem uma parceria das antigas, desde quando a gente morava em Aracaju. Viemos pra Brasília mais ou menos ao mesmo tempo, fomos morar praticamente na mesma região, E aí fechou a ideia de ser um trio: eu na guita, o Marcelo fazendo o baixo, e chamamos o Hélio [Miranda, também ex-Rios Voadores] pra bateria. Pensamos em tocar umas coisas da Rios, que são composições minhas, e também desengavetar umas músicas que não cabiam na Joe. Fizemos alguns shows com essa formação de trio, fizemos até uma minitour em Aracaju, que foi ótima, e voltamos já pensando em gravar. Na hora de ir pro estúdio, vimos que iríamos precisar de um guitarrista solo. Eu não sou muito solista, porque, porra, eu conheço o [Carlos] Beleza [também guitarrista da Joe Silhueta], né? Não tem como competir (risos). Então chamamos o Beleza mesmo, porque ela ia resolver com certeza. Já conhecia a banda, já tinha ido nos primeiros shows, estava engajado com a gente desde sempre. Foi quando a gente começou a fazer os arranjos das primeiras gravações que fechamos como um quarteto e vimos que era melhor mesmo. Nisso o Corujones se tornou essa banda nova. Eu não vejo como uma continuação da Rios, apesar de a gente tocar coisas da banda nos nossos shows.

Marcelo: Foi mais a vontade de lançar essas músicas engavetadas que gerou a Corujones. Não era por querer continuar o que a Rios fazia, porque o estilo já difere, nossas referências de hoje são diferentes, e a gente amadureceu também ao longo dos anos. A gente quis aproveitar os músicos com quem a gente tinha intimidade e lançar logo as músicas. Mas respondendo à sua pergunta sobre a promiscuidade (risos): a Joe, por exemplo, é uma banda que já está mais estabelecida. A YPU, na qual eu também toco, já achou o ritmo dela, apesar de ser uma banda relativamente nova. Então a gente meio que consegue tocar os projetos sem que um atropele o outro, porque estão todos maduros em algum grau.

O disco tem mesmo essa… não diria urgência, mas essa intenção clara de “descomplicar”. É um disco que já chegou com a “análise feita”, sabendo o que era e aonde tinha que chegar (risos). É isso mesmo?
Tarso: Essa coisa direta faz parte da percepção mais moderna que a gente foi desenvolvendo. Teve até uma experiência engraçada que a gente teve, acho que em 2016, quando o falecido [Carlos Eduardo] Miranda veio fazer um evento aqui em Brasília. A gente mandou as músicas para ele dar uma analisada, e ele criticou uma música nossa por ter uma introdução muito longa, (imitando o produtor) “por que essa introdução longa? Não, velhinho, a banda tem que chegar logo e mandar um refrão” (risos). Quando ele foi ouvir de novo, ele gostou, mas isso foi um aprendizado que a gente tenta manter até hoje, ainda mais com essa coisa do “skip eterno” da modernidade, né? Se a música não te dá uma envolvida no começo, ela não pega. Isso está no radar.

Marcelo: Mas eu acho que tem a ver com maturidade também. Você vai envelhecendo e vai abandonando um pouco aqueles sonhos de querer ser, sei lá, o Jimi Hendrix ou o Van Halen (risos). Então a gente faz mais simples porque assim tem mais chances de fazer um bom trabalho (risos).

Tarso: A gente tem optado pelo mais simples mesmo, no sentido de a repetição de refrão ficar mais natural, sem precisar fazer a lá The Police, que fica repetindo refrão até fincar na cabeça (risos). O próximo disco da Corujones já está sendo feito, e estou tentando partir das letras, querendo fazer uma coisa mais direcionada para que elas deem a ideia central das canções. “Faroeste Digital” é a música mais nova que está nesse nosso primeiro disco, e ela já foi feita mais ou menos nesse sentido. Eu quis fazer uma música que falasse de fake news, big techs, essas coisas. Também tenho tentado diminuir a quantidade de solos. Falo pro Beleza pra gente pegar menos notas, tentar fazer uma coisa mais “boogarínica” de pegar uma melodia legal da frase e tentar inserir na música, em vez de ficar naqueles solos setentistas cheios de notas. A gente está buscando fazer algo mais palatável, no sentido de ser algo que todo mundo pode curtir, mas também tentando sentir a composição, saber quando ela está pronta. Pô, “Bohemian Rapsody” era uma música sem refrão, de quase sete minutos, quem ia imaginar que ia ser um sucesso, tocar no rádio? Às vezes tu acredita, acredita, acredita muito no potencial de uma música, ou você sabe que aquilo que você fez está certo, né? Eu costumo falar que a música tem que pedir o que ela quer. Como músicos, a gente está a serviço dela, é canal para isso. Então como é que eu vou fazer uma música que “as pessoas querem ouvir”, mas eu mesmo não curto aquilo? Essa independência, essa liberdade, é uma faca de dois gumes também, porque você tem que tomar certas decisões sobre as quais não tem certeza, que podem dar errado ou certo, e isso é relevante para o papel do artista. A gente tenta ir pelo caminho do coração, do sentimento, do que está soando bem.

Onde esse disco vai ter espaço para ser tocado ao vivo? Essa é uma discussão antiga em Brasília, principalmente depois da Lei do Silêncio em 2016. Existe uma mistura de falta de espaço com falta de público mesmo, mesmo a cidade tendo alguns festivais grandes, como o Coma, o Porão do Rock e o Piknik. Mas só festival não basta, né? Em que lugar dá para ir ver uma banda autoral tocar sem ter que comprar toda uma “experiência”?
Tarso: (rindo) Não está muito promissor. Está é bem complicado! Tanto que começamos com um projeto chamado Corujones On the Rocks, fazendo covers de clássicos do rock que a gente curte, para tentar vender show para locais que não comportam mais a cena autoral. Aqui em Brasília, o cachê triplica se você vai fazer cover (risos). Tem o Zepelim, uma casa que dá um suporte para as bandas autorais, mas você vai lá, faz um show gratuito na sexta-feira à noite, fala “bora galera”, e chega lá dá umas 20 pessoas, entendeu? Porra, o que está errado, né? O que está rolando? Por que as pessoas não querem ver?

Marcelo: O que está errado é mais o interesse do mainstream, que já não é mais pra essa coisa de banda. Isso deve ter sido muito popular até o começo do Guns n’ Roses, os anos 1990, mais ou menos por aí. Isso de ter banda, solo de guitarra, etc. Hoje em dia a galera está no trap. Você chega nos congressos de produção musical e ninguém tem nenhum instrumento. O único instrumento da pessoa é um computador. A gente estava trocando ideia com o Dinho [Almeida], do Boogarins, e ele falando que um monte de moleque foi no curso dele e chegou só com uma máquina. É um monte de gente que está produzindo assim, mas é gente que não entende nada de harmonia, não entende nada de tempo, de [compassos] 4 por 4, 2 por 4, 3 por 4, mas monta lá uma sequência, faz um loop e não sei o quê, e a música é aquilo que nasce dessa relação inanimada com a máquina. As pessoas estão curtindo isso. E a cena de Brasília, para você conseguir levar as pessoas para um evento, você não precisa mais apresentar música… Você precisa apresentar um festival, que tem um cara que fez um negócio, que botou uma lona assim e assim, e tem que chamar o decorador, figurinista, um monte de outros “istas” para poder fazer a “experiência” do negócio chamar a atenção. Ou seja, parece que as pessoas estão querendo mais a festa do que a música, e aí é difícil até pensar como a gente gostaria. A gente está cada vez mais tentando inserir vídeos, por exemplo, para que o público possa ter um pouco dessa imersão, sempre que possível levar um iluminador. Às vezes é bom, às vezes é ruim. Está tão na moda agora esse negócio de versão redux, com o músico ali, com um violão e umas programações, que isso também ofusca as bandas..

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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